O Supremo Tribunal Federal (STF) rejeitou, por 9 votos a 2, a tese do marco temporal para a demarcação de terras indígenas em sessão realizada no dia 21 de setembro. O Plenário decidiu que a data da promulgação da Constituição Federal (5/10/1988) não pode ser utilizada para definir a ocupação tradicional da terra por essas comunidades. A decisão foi tomada no julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 1017365, com repercussão geral (Tema 1.031). Nesta quarta-feira (27), o Plenário vai fixar a tese que servirá de parâmetro para a resolução de, aproximadamente, 220 casos similares que estão suspensos à espera dessa resolução.
O julgamento do marco temporal teve início em agosto de 2021, e se tornou um dos mais importantes e mais extensos na história do STF. Estendeu-se ao longo de 11 sessões, as seis primeiras por videoconferência. Duas foram dedicadas, exclusivamente, a escutar 38 manifestações emitidas pelas partes do processo, por terceiros interessados, pelo advogado-geral da União e pelo procurador-geral da República. A sessão do dia 21 foi acompanhada por representantes de povos indígenas, que se acomodaram no Plenário do STF e em uma tenda montada no estacionamento ao lado do Tribunal.
Segundo o antropólogo Edmundo Antonio Peggion, especialista em etnologia indígena e docente da Faculdade de Ciências e Letras do câmpus da Unesp em Araraquara, a decisão do STF será de extrema importância para a população indígena no país.
“Certamente, a derrubada da tese do marco temporal foi uma vitória para os povos indígenas. De fato, a eleição de um marcador temporal para associar a presença indígena a um determinado território não faz o menor sentido. Afinal, a presença indígena é muito anterior aos invasores europeus que chegaram aqui apenas alguns séculos atrás. Essa votação também tem por objetivo tratar de pontos e situações delicadas que dizem respeito a condições melhores para a preservação dos povos indígenas. Ou seja, a derrubada dessa tese estabelece uma perspectiva de futuro. Muitos povos foram expulsos dos seus territórios originais e até hoje reivindicam o retorno a esses lugares. O que ocorre é um processo de regularização fundiária das terras indígenas que se arrasta há anos, e que é essencial para que esses povos continuem existindo como são.”
Após a decisão do STF, o senador Hiran Gonçalves (PP-RR) protocolou uma PEC (Proposta de Emenda à Constituição) para retomar a tese do marco temporal, sustentando que só podem pleitear o status de terra indígena as ocupações registradas até 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição.
“Essa emenda não visa negar o direito dos povos indígenas às suas terras, mas sim oferecer uma base sólida para a demarcação, evitando conflitos e incertezas que prejudicam tanto as comunidades indígenas quanto outros setores da sociedade”, diz o texto. Além de Dr. Hiran, a proposta recebeu a assinatura de outros 26 senadores.
Para Peggion, o processo de regularização das terras indígenas sempre irá se deparar com obstáculos e medidas contrárias. “Esse tipo de embate ocorre porque há uma correlação de forças, e um grupo organizado dentro do Congresso Nacional visa estabelecer outros parâmetros e colocar em risco as sobrevivências e os territórios indigenas”, analisa Peggion. “Além disso, vale sinalizar que não é a derrubada da tese que vai gerar mais conflitos. Ao contrário, acho que o que gera o conflito é justamente a ideia de criar um marco temporal. Será a regularização das terras indígenas que irá instituir os paramentos para que o Estado e a sociedade civil possam conviver com esses temas com mais tranquilidade”, diz.
Na visão do antropólogo, poderia-se defender uma leitura contrária da tese de marco temporal. Tomando-se por base a data da promulgação da Constituição Brasileira em 1988, o marco temporal deveria ser referência para a reivindicação de compensação por ocupações estabelecidas por “não indígenas de boa fé” em espaços originalmente indígenas. “E quem ocupou área indígena depois de 1988 deveria perder seu direito à terra e à indenização”, diz.
Confira também a entrevista com o professor no Podcast Unesp.
Imagem acima: indígenas em Brasília observam transmissão do julgamento do marco temporal no STF. Crédito: Antônio Cruz/Agência Brasil