Proibir o uso de um dos mais populares aplicativos de compartilhamento de mensagens, afetando o cotidiano de milhões de brasileiros. Impedir uma importante renovação no sistema de persecução penal brasileiro, aprovada no Senado e na Câmara, apenas por não estar pessoalmente convencido de que a nova legislação traria benefícios. Suspender a nomeação, pelo presidente da República, de um ministro de Estado, inclusive depois de a posse ter ocorrido, baseando-se em uma gravação divulgada ilegalmente. Todas estas ações polêmicas, com vastas repercussões na sociedade brasileira, foram protagonizadas nos últimos anos por ministros do Supremo Tribunal Federal que decidiram sobre elas de forma monocrática, isto é, tomando por base apenas o seu entendimento, sem que houvesse manifestação ou debate com outros integrantes da Corte.
A reação aos anos de protagonismo do STF na vida pública brasileira, e aos efeitos que ele projetou sobre os poderes executivo, legislativo e mesmo judiciário, está se consolidando agora. Tramitam nas casas legislativas federais diversas propostas legislativas que querem regular ou restringir a capacidade de atuação dos ministros. Boa parte da classe política já sinalizou simpatia por algum tipo de reforma que resulte em algum tipo de freio aos poderes da Corte mais alta do país. Não está muito claro, porém, quanto do que está sendo proposto pode efetivamente colaborar para o aperfeiçoamento da atuação do STF e do seu relacionamento com os demais poderes, e o que é apenas vingança e retaliação política disfarçadas sob a forma de debate legislativo.
Especialistas ouvidos pelo Jornal da Unesp entendem que o debate sobre o funcionamento da Corte é válido, e que algumas propostas hoje em análise no Congresso Nacional são discutidas há décadas no ambiente acadêmico. Mas questionam a motivação e até mesmo a constitucionalidade de algumas das iniciativas que estão sendo apresentadas por senadores e deputados.
Quatro projetos tramitam paralelalemente
A mais adiantada delas, a PEC 08/2021, que tramita no Senado Federal com o apoio do presidente da casa, senador Rodrigo Pacheco, foi aprovada na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) e será colocada para votação em primeiro turno no plenário da casa. O texto, em síntese, impõe limites às decisões monocráticas da Corte, definindo que apenas por decisão colegiada (voto da maioria dos ministros) será possível deferir medidas cautelares que suspendam leis ou atos dos presidentes dos demais poderes, bem como suspender a tramitação de propostas legislativas ou tomar decisões que afetem políticas públicas. A PEC também estabelece prazo para pedidos de vista e fixa prazo para julgamento de mérito das decisões cautelares.
Também no Senado, ainda no início do mês de outubro foi protocolada a PEC 51/2023, que se encontra em discussão na CCJ. O texto define mandatos de 15 anos para os ministros do STF e uma idade mínima de 50 anos para a nomeação de seus integrantes. Atualmente, os parâmetros etários para a indicação de novos integrantes situam-se entre 35 e 65 anos. Os mandatos são vitalícios, embora os ministros sejam obrigados a deixar o cargo quando completam 75 anos. A criação de um limite de tempo para a atuação dos juízes na Corte também é tema principal da PEC 16/2019, em debate na CCJ do Senado. Mas nessa proposta o mandato é mais curto, oito anos.
Já na Câmara dos Deputados foi protocolada, no final de setembro, a PEC 50/2023. O texto permite que o Congresso, por meio de votação, reverta decisões tomadas pelo STF, tanto pelo plenário quanto monocraticamente, caso os congressistas considerem que a Corte extrapolou seus limites constitucionais ao julgar algum tema.
Para a cientista política Maria Teresa Kerbauy, docente da Faculdade de Ciências e Letras (FCL) da Unesp, campus de Araraquara, a reação do Congresso é motivada por algumas decisões que o STF tomou nos últimos meses deste ano de 2023. Em especial, ela menciona o início do julgamento sobre a descriminalização do.porte de maconha para uso pessoal, o julgamento sobre a inconstitucionalidade da tese do marco temporal das terras indígenas e a votação sobre a legalização do aborto até 12 semanas de gestação. “Na avaliação de alguns membros do Congresso, a decisão sobre estes temas é da competência do Poder Legislativo e estas decisões, segundo esses congressistas, desequilibram a harmonia entre os Poderes”, explica.
Ainda que duas das propostas em tramitação no Senado contem com o apoio do presidente do Congresso, Rodrigo Pacheco, com a PEC 08/2021 se aproximando da etapa de votação em plenário do Senado, Kerbauy considera difícil que alguma medida seja aprovada ainda este ano. Existem obstáculos concretos, como o pouco tempo disponível até que o Congresso inicie seu recesso de fim de ano, e o alto número de votos envolvidos. A aprovação de uma PEC exige votação em dois turnos, em cada uma das casas do Congresso, e um placar favorável de três quintos do total dos votos.
“E ainda que a proposta seja aprovada, com certeza será questionada no Supremo, a partir da solicitação de alguma entidade”, avalia a professora do campus de Araraquara. “O artigo 60 da Constituição estabelece as chamadas cláusulas pétreas, que são temas que não podem ser objeto de emenda. E a discussão que está posta envolve a independência e separação dos Poderes”, diz.
Limitar decisões monocráticas é uma boa ideia
Opinião semelhante tem a professora de Direito Constitucional Soraya Gasparetto, da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp, campus de Araraquara. Ela explica que, ao contrário de outros países, no Brasil permite-se que o STF conduza o controle de constitucionalidade inclusive de uma emenda constitucional. Isso cria a possibilidade de que o Supremo simplesmente declare inconstitucional as PECs propostas pelos senadores. Essa possibilidade, diz ela, abala de fato o equilíbrio entre os poderes e concentra forças no Judiciário. “Mas curiosamente quem deu todo esse poder ao Supremo foi justamente o Poder Legislativo”, diz.
Ela diz que é importante, na análise das PECs, separar “o joio do trigo”, ou seja, distinguir aquilo que há décadas é objeto de debates entre juristas das propostas que parecem ter como objetivo enfraquecer politicamente o Poder Judiciário.
“A decisão monocrática, por exemplo, é muito ruim para o sistema”, diz Soraya, em referência ao conteúdo da PEC 08/2021. “E algumas dessas decisões perduram por décadas.” Ela cita o exemplo de uma decisão proferida em 2013 pela ministra Carmen Lúcia, que suspendeu uma reformulação na distribuição dos royalties do petróleo. Pela nova legislação os recursos dos royalties passariam a ser compartilhados por todos os estados da federação, e não apenas pelos estados produtores. Em março deste ano, completou-se uma década sem que a sentença de Carmen Lúcia tenha sido revisada pelo colegiado. “Penso que não deveria haver medida liminar nos casos de controle de constitucionalidade. Só em casos muito excepcionais, e mesmo assim a decisão não deveria ser tomada de forma monocrática”, diz.
Soraya faz a ressalva de que os ministros costumam justificar as decisões monocráticas por conta do número de processos que se acumulam na Corte. Segundo relatório apresentado pelo Tribunal no final do semestre passado, o STF proferiu mais de 50 mil decisões nos seis meses iniciais de 2023, sendo cerca de 41 mil delas monocráticas, restando ainda 23.991 processos em seu acervo. “Então, de certa forma, essa justificativa do número de processos também confere maior poder à Corte Constitucional.”
Outros países já estabeleceram mandatos para juízes
José Duarte Neto, professor especialista em direito constitucional no curso de Direito da Unesp, no campus de Franca, também vislumbra a possibilidade de aperfeiçoamentos por meio da PEC 08/2021. Ele explica que o tema das decisões monocráticas há muito é discutido no meio acadêmico, uma vez que concede poder exagerado aos ministros. “A meu ver, essa PEC envolve mudanças de natureza processual que aprimorariam o funcionamento da Corte. Tanto que o próprio STF já absorveu algumas delas em seu regimento interno, de certa forma admitindo que são necessárias correções”, diz.
Por sua vez, a proposta de um período máximo para os mandatos dos ministros, que consta da PEC 16/2019, já é uma realidade em outras democracias consolidadas. Na França, Espanha e Portugal, por exemplo, o mandato é de nove anos, e na Alemanha chega a 12 anos. O mandato vitalício dos ministros vigente no Brasil foi inspirado no modelo norte-americano de suprema corte.
Mas a discussão sobre o mandato deve contemplar a busca por um equilíbrio entre a independência e a responsabilização (accountability) das decisões judiciais tomadas pelos ministros, diz Duarte. “Embora os ministros precisem de autonomia para decidir, eles também precisam ser fiscalizados e cobrados pela sociedade. Neste sentido, o mandato traz um maior controle social e a vitalicidade traz uma maior independência”, diz. “Portanto, essa discussão já existe e é antiga. Mas ela não consta na leitura das razões para a proposição da PEC e da redação conferida a ela. Isso faz parecer que o objetivo é superar um mal-estar suscitado pelos atuais ocupantes da Corte”, lamenta.
Debate é legítimo, mas há propostas que sugerem ofensiva do Congresso sobre o STF
Soraya é taxativa ao apontar a inconstitucionalidade da PEC 50/2023, que permitiria ao Congresso anular decisões do STF. “Isso seria dar o controle de constitucionalidade para o Legislativo”, diz. Para ela, a justificativa da PEC está baseada na queixa recorrente de alguns congressistas de que o STF tem extrapolado os limites de seus poderes para atuar como legislador.
“A afirmação de que o Supremo não legisla é na verdade uma critica infundada. Muitas vezes, o Judiciário é um fator importante inclusive para chamar outros Poderes à responsabilidade por omissão. E isso costuma acontecer com certa frequência”, explica a docente. “Muitas vezes, a ‘convocação’ ao STF para que se pronuncie sobre algum tema controverso vem dos próprios partidos políticos, que às vezes não têm representatividade no Congresso e buscam na Corte uma espécie de segunda chance para suas causas”, diz. Propostas para aperfeiçoar o funcionamento do Supremo sempre foram objeto de debate no meio acadêmico.
Para Duarte, é fundamental ter em mente quais são os reais propósitos que estão alimentando a discussão atual em andamento no Congresso. “Defendo que haja um debate racional e técnico, sem paixões. Mas, infelizmente, parece que não temos uma leitura racional do que se passa. Eu faço essa observação porque há de se reconhecer os méritos do STF nos últimos anos em resguardar a democracia. Porém, existem questões que não estão na normalidade constitucional e merecem correção. É legítimo que exista esse debate e que se discuta uma correção de rumos”, diz.
Imagem acima: o STF em sessão em 26/10/23. Crédito: Carlos Moura/SCO/STF.