No Sul do Brasil, uma batalha ambiental está em andamento

Pampa possui rica biodiversidade, mas enfrenta entrada de espécies exóticas e práticas de silvicultura que já resultaram na perda de mais de 30% da vegetação nativa ao longo das últimas quatro décadas. Pesquisadores e militantes ambientalistas buscam na ciência as metodologias adequadas para combater espécies invasoras, respeitando os diferentes contextos em que elas são empregadas nas atividades econômicas do Estado.

“Oh! linhas suaves, como se houvesse em cada coxilha uma saudade do chão e alvos capões de nuvens muito brancas no pampa azul de um infinito azul.” O imortal Augusto Meyer (1902-1970), em seu poema Coração Verde, de 1926, enaltece toda a explosão de azuis que existe nos campos sulinos, despidos de acidentes topográficos e que se expandem até o horizonte.

A etimologia do termo Pampa encerra vários significados, que foram explorados por diversas obras literárias a partir do século 19. Já o bioma propriamente dito recobre, pelo menos em tese, 63% do estado do Rio Grande do Sul.

O trecho que permeia o território brasileiro, onde sopra o vento minuano, é a porção norte da fisionomia ecológica que também abrange o nordeste argentino (províncias de Corrientes, Entre Ríos, Santa Fé, Córdoba, Buenos Aires e La Pampa) e todo o Uruguai. Sua superfície total é estimada em 100 milhões de hectares.

O retrato ambiental dos últimos anos do lado brasileiro da fronteira, entretanto, é menos poético. A conversão da vegetação nativa segue acelerada. Entre 2008 e 2018, segundo dados do MapBiomas divulgados em 2023, três milhões e meio de hectares foram destruídos pela ação antrópica no Rio Grande do Sul. Soma-se a isso o fato de apenas 3,23% do bioma estarem sob o guarda-chuva das áreas públicas de proteção ambiental.

O Pampa brasileiro, uma região de campos nativos sob clima subtropical, abriga pelo menos 12.503 espécies de plantas, animais, fungos e bactérias, segundo revelou um amplo estudo da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) publicado em 2023. O trabalho teve a coordenação do professor Gerhard Overbeck e contou com a colaboração de 120 pesquisadores de 60 instituições.

A pressão pela supressão de vegetação nativa campestre vem de todos os lados. Porém, a real dimensão do dano ambiental causado pela perda de área desse bioma pode ser aferida por outra pesquisa que vem sendo conduzida na UFRGS. A equipe do Laboratório de Vegetação Campestre (LEVCamp) da UFRGS demonstrou, a partir de um levantamento de campo no município de Jaguarão, a existência de 64 espécies de flora em um único metro quadrado de Pampa. Tal constatação foi algo inédito, segundo os cientistas que participaram do estudo.

Em valores inteiros, estima-se que pelo menos 30% da vegetação nativa dos campos do Sul foram trocados por gramíneas cultivadas em quatro décadas (veja abaixo). As florestas plantadas pelos pinheiros-americanos também vêm sendo um problema. Enquanto até meados do século passado as atividades típicas do gaúcho pressionaram menos o bioma Pampa, o impacto passou a ser maior com a agricultura ostensiva e o plantio dos pinheiros exóticos. O bioma, em termos de Brasil, é o segundo que mais perdeu vegetação nativa, após o Cerrado.  

“De forma resumida, há alguns processos importantes em curso que representam entraves para a sobrevivência do bioma Pampa atualmente”, afirma Mateus Marques Pires, pesquisador da Universidade do Vale do Taquari (Univates). “A conversão de habitat para atividades de silvicultura (em especial com Eucalyptus e Pinus) somada às pastagens exóticas formam um dos vetores de pressão. Outro problema é a invasão de espécies de gramíneas exóticas, em especial o capim-annoni (Eragrostis plana), que ocupa cerca 20% das áreas originais do bioma. Ainda há também muito manejo inadequado dos campos”, explica o biólogo da Univates.

Os desdobramentos desse último processo causam tanto a formação de bancos de areia espalhados pelo bioma quanto a expansão de espécies das florestas subtropicais. “O excesso de pastejo pela pecuária ou o oposto, a remoção de pastejadores ou ausência de manejo por meio do fogo, favorecem a expansão de espécies arbóreas”, diz Pires.

No Pampa o gado é aliado da conservação

Diante do diagnóstico carregado de cerração, fenômeno também típico dos campos sulinos, cientistas e membros do terceiro setor têm buscado se articular visando buscar caminhos, calcados na ciência, para que o bioma Pampa consiga muito mais do que sobreviver. Essa ambição, no entanto, não implica remover do bioma as atividades econômicas e socioculturais que os gaúchos vêm desenvolvendo historicamente no Pampa.

“A pecuária extensiva em campo nativo é, comprovadamente, uma atividade econômica que é compatível com a conservação da biodiversidade”, ressalta Gerhard Overbeck, cientista da UFRGS. “Temos, com os campos do Pampa, a possibilidade de produzir carne de alta qualidade com base na vegetação nativa, sem degradar o meio ambiente. No Pampa, o gado é aliado à conservação da biodiversidade e o uso pastoril do Pampa deve ser incentivado”, salienta o pesquisador.

Esforços conjuntos ganham corpo para tentar reverter o quadro de destruição ambiental. Nesse contexto, uma iniciativa importante de conservação está representada pela Alianza del Pastizal, uma parceria internacional multi-institucional associada à BirdLife International que busca incentivar produtores rurais a promover a conservação de parte de áreas de campo nativo dentro de suas propriedades, explica Mateus Pires, da Univates.

O trabalho da organização não governamental, na prática, envolve a certificação de áreas privadas rurais com técnicas de manejo favoráveis ao meio ambiente, a oferta de crédito com incentivo para produtores rurais que investem na produção sustentável, a valorização e o marketing para produtos produzidos no Pampa de forma ambientalmente correta (Programa de Carne e Vinhos) e trabalhos de monitoramento de avifauna, mastofauna e flora campestre.

A região da área de proteção ambiental do Ibirapuitã, criada em 1992 com 317 mil hectares pelo governo federal – a maior unidade de conservação do bioma –, é especialmente importante para os estudos de recuperação ambiental. Espalhada pelos municípios de Quaraí, Alegrete, Rosário do Sul e Livramento, a APA abriga uma das regiões mais bem preservadas do Pampa. Mas, ao mesmo tempo, também é permitido o uso do solo sob determinadas regras ambientais, pois há várias propriedades privadas nas vizinhanças da unidade. As pressões típicas do bioma, como a invasão do capim-annoni, exigem uma contundente peleja ecológica na área.

E alguns desses embates já apresentam bons resultados, segundo a botânica Mariana Vieira, da Rede Campos Sulinos de Pesquisa. “Por quatro anos, nós trabalhamos dentro da unidade de conservação de uso sustentável do Ibirapuitã, que é a mais importante do bioma Pampa, exatamente por ser a mais extensa. Nós atendemos 20 famílias nesse projeto, financiado pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento, com ações de manejo de campo nativo tendo como foco a redução da cobertura do capim invasor. O projeto beneficiou principalmente pecuaristas familiares dos quatro municípios do estado que estão na área da APA”, afirma a cientista.

Combater a invasão de pinus

E, no horizonte, já existem outras programações para viabilizar a produção sustentável dentro dos campos sulinos, segundo Mariana. Em 2025, a ideia é trabalhar contra a invasão dos pinus. Apesar dos resultados positivos, entretanto, as pesquisas sobre a conservação e restauração do Pampa ainda buscam a resposta científica para várias perguntas. Entre elas, as metodologias mais adequadas para cada tipo de situação, contra as espécies invasoras. A forma de usar as espécies nativas para repovoar os campos, e quais delas escolher, também ainda é uma questão em aberto. Há muita ciência pela frente, ainda mais para ajudar os governantes das várias esferas a construírem políticas públicas eficazes.

“Dado que a maior parte das unidades de conservação permite algum uso antrópico, a replicação de políticas que favoreçam a preservação de remanescentes naturais do bioma em propriedades privadas é um processo eficiente como estratégia de conservação, além da própria criação de outras unidades de conservação”, sintetiza Mateus Pires, biólogo da Univates.

Mas há outras frentes que precisam do bom combate, segundo os cientistas. Um grupo de 18 pesquisadores publicou uma carta em abril passado na revista Science alertando para o dano que pode causar a aprovação do Projeto de Lei 364/19, que diminui as restrições para que atividades econômicas possam ser desenvolvidas em campos nativos espalhados pelos biomas do Brasil. Uma nota técnica publicada pela ONG SOS Mata Atlântica no início de 2024 mostra que, considerando apenas os campos nativos, o projeto desprotege 50% do Pantanal (7,4 milhões de hectares), 32% do Pampa (6,3 milhões de hectares), 7% do Cerrado (13,9 milhões de hectares) e quase 15 milhões de hectares na Amazônia. Somando-se os 5,4 milhões de hectares expostos na Mata Atlântica, o total de campos nativos vulneráveis ao desmatamento chegaria a 48 milhões de hectares.

“A aprovação do PL 364/19 será um golpe severo para a biodiversidade brasileira e global. As florestas brasileiras precisam de proteção, mas os outros ecossistemas do país precisam ser igualmente considerados. A ausência de árvores não justifica necessidades de conservação mais brandas”, afirma o texto publicado na Science. No caso do Pampa, o bioma contém 9% da biodiversidade brasileira, apesar de ocupar 2,3% do território nacional.

Além da expressiva biodiversidade, os campos nativos fornecem importantes serviços ecossistêmicos para as pessoas, como abastecimento de água, armazenamento de carbono, alimentos e forragem. Além do elevado valor cultural que inspirou, em vários momentos, escritores como o próprio Augusto Meyer. “Este vento faz pensar no campo, meus amigos. Este vento vem de longe, vem da pampa e do céu”, versejou o poeta em seu poema “Minuano”.

Séries Jornal da Unesp

Este artigo faz parte da série Biomas do Jornal Unesp. Nesta série, o Jornal da Unesp mapeia os desafios ambientais presentes nos diferentes biomas do Brasil.

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