A Câmara dos Deputados aprovou nesta 3ª feira (30) o texto-base do Projeto de Lei 490/2007, conhecido como o projeto do marco temporal para a demarcação de terras indígenas. O texto recebeu 283 votos favoráveis, 155 contrários e uma abstenção. Agora, a proposta, que restringe a demarcação de terras indígenas e enfraquece direitos dessas populações, será analisada pelo Senado. Porém, os deputados ainda votarão alterações no texto.
O projeto determina que somente poderão ser objeto de demarcação as terras que eram efetivamente ocupadas por povos indígenas em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição. Paralelamente à aprovação do PL na Câmara, o mesmo tema será analisado pelo Supremo Tribunal Federal em julgamento marcado para 7 de junho.
A aprovação do projeto é mais uma vitória do presidente da Casa, Arthur Lira (PP-AL), que já havia se manifestado de forma favorável à tese do marco temporal. Antes da votação, na chegada à Câmara, Lira defendeu abertamente o texto. A proposta foi relatada pelo deputado Arthur Maia (União-BA).
A aprovação foi vista, tanto pela situação quanto pela oposição, como uma vitória da bancada ruralista e uma derrota da agenda dos direitos dos povos indígenas, na contramão das pautas defendidas pelo governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). As demarcações de terras são umas das principais pautas defendidas pelo governo Lula, que criou o Ministério dos Povos Indígenas, a primeira pasta destinada a cuidar exclusivamente das demandas dos indígenas no Brasil. A ministra Sônia Guajajara acompanhou a votação em plenário e afirmou que o projeto era um “genocídio legislado”.
Entre outras disposições, o texto aprovado permite que o poder público instale em terras indígenas equipamentos, redes de comunicação e estradas, além das construções necessárias à prestação de serviços públicos, especialmente os de saúde e educação. O projeto também estabelece que as novas regras já valham para processos administrativos de demarcação de terras indígenas ainda não concluídos.
Integrantes da bancada indígena e deputados governistas apresentaram inúmeras questões de ordem para evitar a votação, porém sem sucesso. Um requerimento de retirada de pauta também foi proposto, mas a maioria dos parlamentares rejeitou a medida. O principal argumento dos deputados contrários ao texto é de que a proposta é inconstitucional, pois a Carta Magna não reconhece esse fator temporal como um limite para as demarcações. Já deputados favoráveis, entre os quais encontram-se integrantes da bancada ruralista, argumentam que as demarcações ameaçam o estoque de terras produtivas no país.
Helena Salim de Castro, que é doutora em Relações Internacionais pelo PPGRI San Tiago Dantas (Unesp, Unicamp, PUC-SP), co-coordenadora do Núcleo de Estudos de Gênero, que é vinculado ao Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional, e que pesquisa a violência de gênero contra mulheres indígenas, aponta os riscos que a aprovação pode gerar.
“Embora não seja uma surpresa diante da composição do nosso atual congresso, a aprovação do Projeto de Lei 490 representa mais um golpe contra o direito dos povos indígenas e contra a proteção do meio ambiente. A principal questão do projeto, que já havia sido apresentado lá em 2007, é o estabelecimento do marco temporal para demarcação das terras indígenas. No entanto, além desse elemento o texto também traz outras propostas, como a flexibilização do contato com os povos isolados e a não expansão dos territórios já demarcados”, diz.
“Como apresentado pela câmara de populações indígenas e comunidades tradicionais do Ministério Público Federal, o Projeto de Lei 490 é inconstitucional. Ele contrapõe a Constituição Federal, e também normativas e convenções internacionais ratificadas pelo governo brasileiro. Na Constituição Federal, a posse e o usufruto das terras pelos indígenas tem um caráter tradicional e essa tradicionalidade é um elemento cultural, e não temporal. Além desse desrespeito, dessa inconstitucionalidade o PL também não considera a necessidade aos povos indígenas, descumprindo assim a convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho”, critica a pesquisadora.
Além do debate no plano das leis, Salim sinaliza que o PL 490 ignora toda a história de colonização e de violência do Brasil. E que o modo de vida de alguns grupos desses povos indígenas são vistos como atrasados, suas crenças como inferiores e seus corpos como descartáveis.
“Recentemente, acompanhamos um conjunto de denúncias e de relatos sobre violações sexuais contra mulheres indígenas do povo Yanomami. Essas denúncias refletem um pouco o modo como esses grupos são vistos de forma geral pela sociedade. Nesse sentido, o projeto representa um passo no histórico processo de invisibilização de povos indígenas e de imposição de uma visão de mundo e de projeto de desenvolvimento que é levado pelo sujeito branco ocidental que busca com esse projeto a exploração dos recursos naturais e também se sustenta em um entendimento de que a natureza está a serviço dos homens, para ser explorada e mercantilizada”, diz.
“No entanto, a relação de muitos povos indígenas com a terra e o território vai além da ocupação física e do uso de recursos. Há um vínculo cultural ancestral e comunitário. Para muitas dessas etnias, o território é um espaço em que a memória é preservada e as práticas vividas em coletividade. A relação com a natureza, a flora e a fauna em muitos casos não é vista como uma relação hierárquica. Para muitos desses povos há uma relação de complementaridade. Assim a aprovação do PL não é apenas uma ameaça à vida material e física desses povos, mas a todo o país que depende da preservação desses territórios. E, além da vida material e física, existe uma ameaça à própria cultura e à memória desses povos. E também, de uma maneira geral, a história do nosso país, que é uma história composta por diferentes grupos, diferentes povos dentro do mesmo território.”
Segundo a pesquisadora, a aprovação do PL 490, bem como o esvaziamento do Ministério dos Povos Indígenas e do Ministério do Meio Ambiente que ocorreu na semana anterior, lançam luz sobre os desafios e as incoerências com as quais o novo governo terá que lidar. “É um governo que se elegeu muito devido ao apoio de ambientalistas, de movimentos indígenas e de grande parcela da população que já não aceitava o desmonte promovido pelo governo anterior. Nós vemos aqui novamente que não é uma surpresa total que a balança pese mais para o lado dos projetos de exploração do que para pautas ambientais e de proteção dos direitos indígenas. Será um desafio enorme.”
Salim diz que, atualmente, há uma mobilização nacional e internacional mais ampla em defesa destas pautas. Porém, a mudança social segue mais lenta no Brasil. “Há uma pressão e existe essa necessidade de acompanhar como serão conduzidas na prática as pautas ambientais e as pautas referentes aos direitos dos povos indígenas. Isto é, o quanto o atual governo conseguirá alinhar essas pautas com as demandas de progresso, demandas de desenvolvimento. Se olharmos para os nossos vizinhos, por exemplo, a Bolívia e o Equador foram países que viveram experiências de mudanças muito mais profundas em relação a essas pautas. Principalmente a pauta dos povos indígenas, onde foram construídas novas constituições baseadas no conceito de bem viver”, diz.
“Aqui no Brasil, essas mudanças ainda são muito mais tímidas; não ocorreram de fato. Então, o desafio do governo, de alinhar esses dois lados, será muito maior. Terá de mostrar que uma das pautas que o elegeu, a criação do Ministério dos Povos Indígenas, não foi apenas uma narrativa, e que irão gerar mudanças na nossa relação com o território, com os povos indígenas e com o meio ambiente.”
Escute abaixo a íntegra do depoimento ao Podcast Unesp.
Imagem acima: Lula Marquês/Agência Brasil.