Justiça e inclusão desafiam a vida esportiva das atletas transgênero

Entidades esportivas adotam normativas que dificultam e excluem mulheres transgênero de competições de alto rendimento. Pesquisadores sugerem diferentes abordagens para a questão, mas ressaltam que decisão final não se baseará apenas na ciência, nem irá satisfazer todos os lados

Poucas pessoas na história tiveram a experiência de ver suas decisões mais íntimas e pessoais se transformarem em objeto de debate planetário, e gerarem consequências que podem afetar milhares de pessoas e redefinir o funcionamento das engrenagens sociais. A nadadora e mulher transgênero norte-americana Lia Thomas, 24, é um desses raros indivíduos. “Eu estava presa em uma depressão e lutava contra pensamentos suicidas. Fazer a transição não foi uma questão de escolha. Eu não tinha escolha. Antes de fazer a transição, eu não estava indo a lugar nenhum”, declarou ela em entrevista ao canal esportivo de TV ESPN, depois de haver se tornado, em março, a primeira mulher trans a vencer o tradicional torneio da NCAA, a liga esportiva universitária dos EUA. 

Devido aos ótimos resultados que Thomas alcançou no primeiro semestre deste ano, a Federação Internacional de Natação (FINA), o órgão que regula internacionalmente o esporte, divulgou em junho um novo regulamento que irá restringir enormemente a participação de mulheres transgênero em provas de elite do esporte, tais como campeonatos mundiais e as seletivas para os Jogos Olímpicos. Pelo novo regulamento, apenas as pessoas que passaram pelo processo de transição antes de entrar na puberdade, com limite etário de 12 anos, seriam consideradas aptas a se inscrever nas categorias femininas.

No mesmo dia, a União Ciclística Internacional (UCI) anunciou novas regras relativas à participação de mulheres trans em seus eventos. Agora, atletas que fizerem a transição devem respeitar um período de quarentena de dois anos, o que equivale ao dobro do tempo estipulado pelo regulamento anterior. Já o limite de testosterona no organismo caiu à metade, para 2,5 nanomols por litro de sangue. Dois dias depois, a União Internacional de Rugby (UIR) também tornou pública a decisão de proibir a participação de mulheres transgênero em qualquer partida internacional organizada pela entidade até segunda ordem.

No rastro do anúncio dessas decisões, um porta-voz da FIFA confirmou à agência de notícias DPA que o órgão máximo do futebol está “revisando seus regulamentos de elegibilidade de gênero”, e declinou de dar mais detalhes afirmando que o processo ainda está em andamento. Já o presidente da World Athletics, o britânico Sebastian Coe, participou do evento em que onde a FINA anunciou suas novas regras e também comentou o assunto. “Minha responsabilidade é proteger a integridade do esporte feminino. E se isso significa que teremos que fazer ajustes nos protocolos daqui para a frente, faremos”, declarou. Ele apoiou as mudanças adotadas pela FINA. “É como deve ser. Sempre acreditamos e dissemos que a biologia supera o gênero, e vamos revisar nossos regulamentos alinhados com esta visão”, disse.

Mas não é correto colocar o peso desta onda de críticas e restrições à participação de mulheres transgênero no esporte feminino apenas nos ombros de Thomas. Fatos como a vitória da canadense Rachel McKinnon no campeonato mundial de ciclismo de 2019, na categoria máster, e as primeiras participações de mulheres trans nos Jogos Olímpicos, a levantadora de peso Laurel Hubbard e a jogadora de futebol Quinn, já haviam gerado um turbilhão de questionamentos, críticas e mensagens de ódio. 

Após repercussão sobre o desempenho da norte-americana Lia Thomas em torneio universitário dos EUA, o Congresso Extraordinário da FINA divulgou uma série de condições à participação de atletas trans em torneios da entidade. Crédito: FINA

Porém, os resultados altamente expressivos obtidos por Thomas foram a gota que transbordou a piscina olímpica.  Na piscina, ela chegou a três finais. Nos 500 metros nado livre ela subiu ao lugar mais alto do pódio (mas ficou 8 segundos acima do recorde da supercampeã Kathleen Genevieve “Katie” Ledecky, dona de sete ouros olímpicos). Thomas passou da posição número 445 no ranking nacional dos nadadores masculinos para a posição número 1 no ranking feminino.

Isso não significa, porém, que tenha se mostrado invencível. Nas outras duas finais que disputou em março nas piscinas da Geórgia, ela passou longe do pódio: quinto lugar nos 200 metros nado livre e oitava colocação nos 100 metros rasos. 

Ciência pode contribuir para o debate

“O furor sobre Lia Thomas é muito maior do que seu impacto nos esportes. Ela era uma nadadora muito boa antes da transição e teve um pouco mais de sucesso na natação feminina do que na natação masculina, mas não dominou a competição nos campeonatos da NCAA [competições universitárias]. Ela é alta e não muito feminina em sua aparência, e isso alimentou muito do falatório sobre ela”, afirma a professora da Universidade Loughborough (Reino Unido) Joanna Harper. 

Harper é especializada em desempenho atlético transgênero e consultora do COI (Comitê Olímpico Internacional), e é reconhecida como uma das principais referências do tema atualmente. Também corredora de elite durante anos, a médica de 52 anos concluiu a transição de gênero aos 20 anos. 

“As questões sobre as vantagens e as desvantagens biológicas entre mulheres trans e cis estão longe de serem resolvidas. É verdade que as mulheres trans são mais altas, maiores e mais fortes do que as mulheres cis. Mas mesmo após a terapia hormonal, está longe de ser estabelecida a magnitude da vantagem da força muscular que é mantida. Além disso, as mulheres trans enfrentarão desvantagens potenciais porque seus corpos maiores, depois da transição, estão sendo alimentados por massas musculares menores e uma capacidade aeróbica reduzida. Levará cerca de vinte anos para que a interação das vantagens e desvantagens entre atletas trans versus atletas cis seja totalmente compreendida”, explica Harper ao Jornal da Unesp

O resumo sobre a questão atual dos transgênero nos esportes de elite feito pela pesquisadora nascida no Canadá mas hoje radicada no Reino Unido chega a ser inquietante. Mas é esse ponto de vista baseado em evidências científicas, tanto das áreas biológicas quanto das ciências humanas, que tem feito o debate caminhar de forma saudável e com alto nível. 

“O esporte nunca foi justo, e a inclusão de mulheres transgênero no esporte feminino é uma questão complicada”, afirma a pesquisadora Christina Marie Roberts, que também fez transição de gênero. A pediatra da Universidade do Missouri em Kansas City gosta de apresentar o problema da justiça esportiva sob outras perspectivas. 

“Crianças de famílias abastadas, com tempo para praticar e dinheiro para pagar o melhor treinamento e as condições ideais de infraestrutura desportivas têm uma vantagem sobre as crianças de famílias desfavorecidas que precisam trabalhar ou cuidar de seus irmãos mais novos. As crianças que vivem em uma cidade grande com um bom clube também têm uma vantagem sobre as crianças que vivem em áreas rurais remotas. As crianças nascidas em grupos majoritários da sociedade também apresentam vantagens sobre os jovens de grupos que enfrentam preconceito e discriminação. No entanto, em nenhum desses casos, estamos proibindo crianças ricas e de pele clara dos centros urbanos de participarem dos campeonatos devido à sua ‘vantagem injusta’, ressalta Roberts.

A questão, admite a pesquisadora, muda de patamar quando se faz a diferenciação entre os esportes recreativos e amadores ou os de alto nível, como ocorre na Olimpíada.

No começo da vida, mostram as pesquisas conduzidas no Missouri mas também em outros grupos científicos que se debruçam sobre o tema, a comparação entre homens e mulheres, do ponto de vista biológico, é bem mais fácil. 

“O desempenho atlético é aproximadamente igual em meninos e meninas pré-púberes. É durante a puberdade que os meninos começam a ganhar vantagem no desempenho atlético. Por isso, é depois dessa faixa etária que se protegem as mulheres, e se começa a se competir de forma separada”, afirma Christina Marie. Limitar a competição apenas entre as mulheres, explica a pesquisadora americana, permite que mais mulheres participem e aproveitem os benefícios da participação esportiva. 

“Se as mulheres pós-púberes tivessem que competir cara a cara com os homens pós-púberes por espaço em uma equipe, muito menos mulheres fariam parte das equipes esportivas”, sentencia a pediatra. Portanto, baseando-se nos dados gerados por ela e por vários colaboradores nos laboratórios, a pesquisadora sustenta que o tratamento com hormônios de afirmação de gênero reverte muitos dos benefícios proporcionados pela puberdade masculina que ocorreu antes —  mas não os elimina por completo. 

“Com base na minha pesquisa, são necessários entre dois e três anos de tratamento para eliminar a vantagem no quesito força. Nesse ponto, mulheres trans e mulheres cis têm desempenho atlético semelhante”, diz. 

Tratamento diferente para esporte amador e de alto rendimento

Marie sustenta que na esfera do esporte praticado com propósitos recreativos, ou no âmbito juvenil — que é onde se situa a maioria dos praticantes de esportes, aliás — outras diferenças, como classe social ou habilidade natural, provavelmente exercem um impacto muito maior do que as diferenças biológicas que permaneceram por causa da puberdade masculina. “É justo que as mulheres transgênero possam competir nessa esfera”, diz ela. 

No entanto, a mesma conclusão não pode ser transportada para o elitista mundo do esporte de alto rendimento. Nesse caso, outros pontos precisam ser avaliados. Para a pesquisadora do Missouri, provavelmente as vantagens podem variar de acordo com as características de cada esporte. 

“No nível de elite, onde todos são atletas talentosos e têm um bom treinamento, as outras diferenças tornam-se muito menores, e a vantagem da puberdade masculina se torna mais importante.” Para uma atleta transgênero competindo no levantamento de peso, as vantagens podem ser mais expressivas do que no caso das competidoras do iatismo. O que deve ser debatido, pensa Christina Marie, é um julgamento meramente esportivo, dentro de cada modalidade. 

“A inclusão de mulheres transgênero neste nível de competição de alto nível precisa levar em conta se a vantagem obtida durante a puberdade masculina, e que fica remanescente após o tratamento, é grande o suficiente para tornar a competição “injusta” a ponto de ser negado aos atletas trans femininos a capacidade de participar de esportes de alto nível e de todos os benefícios associados a essa participação”, diz Christina Marie. Este é um julgamento que pode ser informado pela ciência, mas não pode ser feito usando apenas a ciência.”

Após ter sido pressionado pela Corte Europeia de Direitos Humanos, o Comitê Olímpico Internacional  (COI) manifestou-se favoravelmente em 2004 à possibilidade de participação de mulheres transgênero nos Jogos Olímpicos. À época, divulgou um documento, conhecido como Consenso de Estocolmo, no qual apresentava como condicionantes para a participação a necessidade de uma cirurgia de redesignação de gênero e de um tratamento hormonal, além de um período de dois anos após a realização da transição. Estas exigências, no entanto, despertaram críticas por serem consideradas muito invasivas, e em 2015 o COI voltou atrás da exigência da cirurgia. 

Hoje é comum que as federações esportivas exijam a medição dos níveis de testosterona das atletas no período de 12 meses anteriores à competição. Se eles estiverem acima de um determinado nível, a inscrição da atleta é indeferida. Mas, apesar de relativamente bem aceito pela maioria dos pesquisadores, esse critério já começou a ser revisto para as próximas grandes competições, uma vez que a participação de atletas cisgênero com níveis naturalmente altos de testosterona já tem levado à exclusão das competições de nomes como a corredora indiana Dutee Chand e da sul-africana Mokgadi Semeya. 

COI deixou decisão com as federações esportivas

Em novembro passado, o COI divulgou um documento intitulado “Guia do COI sobre Justiça, Inclusão e Não Discriminação com Base na Identidade de Gênero e Variações de Sexo”, no qual apontou 10 princípios a serem seguidos na abordagem da questão. O órgão, porém, afirmou na ocasião que caberia às diferentes federações que regulam e organizam as modalidades esportivas elaborarem por si mesmas as regras adequadas para a participação de mulheres transgênero. As novas normativas divulgadas por FINA, UCI e UIR foram recebidas com as primeiras respostas ao chamado do COI.

Em novembro de 2021, o Comitê Olímpico Internacional divulgou documento contendo uma série de princípios para se abordar a presença de atletas trans em competições. Crédito: COI

Tommy Lundberg, pesquisador do setor de Fisiologia Clínica do Instituto Karolinska, em Estocolmo, na Suécia, que este ano foi um dos autores de um grande artigo de revisão médica sobre o tema dos transgênero no esporte, diz que é fundamental debater quais podem ser as soluções justas nesse novo cenário. “No momento, não há terapia que possa eliminar a vantagem injusta [das atletas transgênero]. Portanto, inclusão e justiça não podem andar de mãos dadas”, avalia. 

Lundberg pensa que se a proteção às categorias femininas for preservada, assim como o princípio de competição justa, as mulheres transgênero não devem ser incluídas.  “As organizações esportivas precisam decidir se priorizam as mulheres cisgênero e a competição justa ou se dão prioridade às mulheres transgênero e a inclusão. Não vejo ser possível encontrar uma solução que agrade a todos, infelizmente”, afirma Lundberg, 

Joanna Harper avalia que as incertezas vão predominar. “As políticas sobre mulheres trans no esporte de elite devem ser consideradas como algo em processo, com potencial para, espera-se, serem aprimoradas com mais e melhores dados”, diz. Ela ressalta que há muitas questões biológicas importantes que precisam ser respondidas sobre atletas trans, “mas também é verdade que o mundo precisa considerar que as pessoas trans são quem dizemos ser. Mulheres trans não são homens que pensam que são mulheres. Mulheres trans são mulheres que nasceram com certas diferenças biológicas das mulheres cis”.

Imagem acima: Atletas se preparam para largada em competição de atletismo. Crédito: Depositphotos