Pesquisadora da Unesp se inspira em conceitos do origami para aprimorar instrumentos médicos

Doutoranda Samanta Teixeira explora técnicas de dobraduras capazes de se compactar e se expandir conforme a necessidade. Objetivo é trazer maior conforto e bem-estar em procedimentos médicos

Associado ao Japão e com ramificações na China, o origami é uma arte milenar tão antiga quanto o próprio papel, motivo pelo qual sua origem ainda é tema de debate entre historiadores. Na cultura nipônica seu surgimento está associado inicialmente a cerimônias religiosas e festivas, mas com o tempo foi se difundindo a ponto de ser ensinado às crianças nas escolas. Nas últimas décadas, entretanto, a arte do origami vem se perpetuando para além do aspecto cultural e artístico, estabelecendo relevantes relações com áreas da ciência e tecnologia.

Na década de 1980, o físico e origamista norte-americano Robert J. Lang desenvolveu o projeto de um telescópio espacial chamado Eyeglass, aplicando conceitos e dobraduras inspiradas no origami. O objetivo da equipe do Lawrence Livermore National Laboratory, na Califórnia, era que o instrumento pudesse ser dobrado para caber dentro do foguete que o levaria até o espaço e, já em órbita, pudesse se desdobrar e adquirir seu tamanho original. A estratégia de design inspirado em dobraduras tem sido usada por diferentes agências espaciais para colocar objetos espaciais em órbita, sendo aplicada inclusive ao telescópio James Webb, lançado no final de 2021 e responsável por algumas das imagens mais detalhadas já registradas do espaço.

No câmpus da Unesp em Bauru, uma pesquisadora da Faculdade de Arquitetura, Artes, Comunicação e Design (FAAC) vem explorando aplicações da arte milenar nipônica na Medicina. Samanta Aline Teixeira é aluna de doutorado do Programa de Pós-Graduação em Design e desenvolve sua pesquisa explorando a aplicação da arte da dobradura nipônica para o design de instrumentos médicos.

A pesquisa, que conta com o apoio da Fapesp, estuda como o design de produto inspirado em origami pode melhorar dois aparatos usados pelos médicos: o espéculo vaginal e a bolsa de morcelamento, A partir do uso de técnicas e da criação de novas metodologias projetuais, a finalidade do estudo é tornar os instrumentos mais ergonômicos e eficientes em seu processo de fabricação, por exemplo, usando materiais mais baratos na sua produção.

O interesse de Samanta pelo origami começou no colégio, quando aos 15 anos começou a produzir suas primeiras dobraduras, e vem se desenvolvendo ao longo de sua trajetória acadêmica. A arte tradicional japonesa inspirou seu projeto de iniciação científica no curso de Design da Unesp, também com bolsa da Fapesp. No mestrado, pelo mesmo Programa, Samanta produziu uma dissertação em que investigou justamente o papel científico e projetual que o origami vem desempenhando nas últimas décadas, e como o design de dobras tem contribuído para o processo criativo e para as inovações tecnológicas.

A base waterbomb, uma técnica do origami, é replicada na área médica na fabricação do stent cardíaco, tubo flexível usado em cirurgias de pacientes que sofrem de doença arterial coronariana (DAC). Crédito: Arquivo pessoal

Técnicas de origami permitem explorar compactação e expansão dos objetos

Agora, no doutorado, a pesquisadora faz um recorte específico para uma aplicação inédita e prática do design de produto inspirado em origami na área da Medicina. Após conversar com seu orientador, Galdenoro Botura Junior, e sua co-orientadora, Thaís Regina Ueno Yamada, ambos docente no Programa de Pós-Graduação de Design da FAAC, Samanta começou a pensar em possíveis áreas de atuação. “A Medicina é importante para todo mundo porque, querendo ou não, a questão da saúde está sempre presente nas nossas vidas. Então pensamos que seria interessante contribuir com essa área”, justifica a doutoranda.

Comum na cirurgia laparoscópica, que é considerada um procedimento médico minimamente invasivo, a bolsa de morcelamento é utilizada para a realização de procedimentos na região abdominal do paciente, como biópsias e a histerectomia (remoção do útero), por exemplo. No procedimento, o cirurgião insere essa bolsa na cavidade abdominal para depositar tecidos de interesse e removê-los do corpo do paciente de forma segura.

De acordo com Samanta, o raciocínio do origami é aplicado no design na forma de dobras que melhoram a compactação e expansão do instrumento na cavidade abdominal. Esse ponto é fundamental em uma cirurgia pouco invasiva e pode contribuir para uma melhora de eficácia no procedimento, e por consequência, uma recuperação mais rápida ao paciente.

Por sua vez, o espéculo vaginal é usado no exame Papanicolau, um teste importante na prevenção do câncer de colo de útero em mulheres, e outros procedimentos clínicos e cirúrgicos no canal vaginal. Utilizado na abertura do canal vaginal, o principal problema do espéculo é o desconforto e incômodo que as pacientes enfrentam. Logo, o estudo avalia o uso do design de dobras para que a abertura das lâminas seja mais suave e a aplicação do PLA, um material biodegradável derivado de fontes renovaveis, como a mandioca.

Este exemplo de mecanismo compatível, o D-Core, é uma das metodologias utilizadas no estudo de Samanta Teixeira, consiste no design de uma dobradiça formada apenas com dobras curvas e feito com PLA (ácido polilático), um plástico biodegradável derivado de fontes renováveis, e formado apenas com dobras curvas em um material plano. Crédito: Arquivo pessoal

Por desconhecerem o próprio corpo, muitas mulheres não entendem ou sentem medo de procedimentos médicos, que muitas vezes são executados de maneira violenta pelos profissionais da saúde. Nesse contexto, o estudo pretende promover a autonomia, o autoconhecimento em termos de observação e empoderar as mulheres ao tornar o espéculo vaginal mais acessível e menos invasivo. 

O grande desafio da aplicação do design de produto inspirado em origami é usar uma dobra que começa com espessura zero (o papel) para vários tipos de materiais, ou seja, o design adaptado focado na mecânica e na cinemática dos origamis. A dobra é formada por partes rígidas e imutáveis (as faces, ou facetas) e por partes que se mutam (os vincos). Esse conceito pode ser visto em uma simples porta, cujas dobradiças são um exemplo de adaptação de uma dobra com espessura zero para uma espessura grossa, como é o caso da madeira. Na medicina, além de funcionar em termos de cinemática e geometria, o design ainda precisa ser biocompatível, ou seja, seguro para o uso dentro do corpo humano.

A economia de materiais é um dos benefícios da aplicação do design inspirado em origami. Através do mecanismo compatível, uma das metodologias usadas no estudo, é possível eliminar várias peças e processos de montagem para transformar o instrumento em uma peça única. “Hoje, eu acredito que não exista nada que não possa melhorar com origami, é uma linguagem e estética versátil em muitos sentidos”, declara a pesquisadora. 

O estudo propõe formatos mais ergonômicos e sustentáveis para a fabricação da bolsa de morcelamento e o espéculo vaginal, que podem influenciar de forma positiva a logística e os interesses de mercado. De acordo com Samanta, o barateamento da fabricação dos instrumentos médicos pode implicar em procedimentos mais acessíveis para a população.

O padrão de vincos, ou crease pattern, é um dos métodos utilizados no estudo de Samanta Teixeira e consiste em um mapeamento das dobras para transformar planos 2D simples em objetos 3D complexos usando apenas dobraduras. Crédito: Arquivo pessoal

Questionário apontou principais demandas de médicos e pacientes

Após decidir por uma aplicação prática na área da medicina, a pesquisa começou com a aplicação de dois questionários. A intenção dessa indagação inicial era identificar quais os instrumentos que mais apresentam problemas atualmente na perspectiva de médicos e pacientes. De acordo com Samanta, o feedback de dois médicos resultou na escolha do espéculo vaginal e da bolsa de morcelamento, este último não se torna uma questão no caso dos pacientes por ser usado em procedimentos cirúrgicos com sedação. Contudo, quanto ao espéculo vaginal, o instrumento indica um sério problema de ergonomia às pacientes: o questionário aplicado pela doutoranda apontou que, das 152 mulheres que responderam, 84,2% declararam que já sentiram algum tipo de desconforto durante o exame Papanicolau. Em uma escala de 0 a 10, onde 0 é caracterizado como nenhum desconforto e 10 é desconforto extremo, 47,4% das mulheres afirmaram já terem sentido grande desconforto (entre 7 e 10 na escala). 

A criação de um novo instrumental médico é similar à produção de uma vacina, como explica Samanta, com etapas sistemáticas de testes e uma série de readaptações visando à maior segurança possível de seu uso. No momento, o design dos instrumentos está sendo desenvolvido pela pesquisadora, que também conduz testes com materiais biodegradáveis por meio da impressora 3D. Após a finalização do design e antes de chegarem às fabricantes, os instrumentais passam por um longo processo que inclui a fabricação de protótipos, testes de usabilidade e biossegurança, experimentos com médicos e enfermeiros e a protocolização de maneira ética e de acordo com as normas sanitárias.

Ao final do estudo, com a criação de designs bem elaborados e funcionais, a expectativa da doutoranda é fazer o registro da patente. Por este motivo, a pesquisadora não autorizou a divulgação de imagens dos protótipos. O aproveitamento comercial, entretanto, não é um de seus objetivos. A motivação de Samanta é gerar uma contribuição para o bem-estar social e para a consolidação das pesquisas em design de origami no Brasil. Dessa forma, diferente da realidade que enfrentou no começo das pesquisas, quando precisou iniciar sua investigação praticamente do zero, Samanta espera que os próximos pesquisadores interessados no design de origami enfrentem um campo menos nebuloso e tenham os seus estudos como um legado.

Imagem acima: mosaico com exemplos de estudos de Design e origami desenvolvidos pela pesquisadora Samanta Aline Teixeira