Em 23 de dezembro de 1995, a adolescente Fabiana Esperidião, 13, saiu da casa onde residia na região de Pirituba, em São Paulo. Acompanhada de uma colega, as duas se dirigiram à casa de uma amiga que morava na vizinhança, que comemorava aniversário. Enquanto Fabiana estava fora, sua mãe, Ivanise Esperidião, chegou em casa. Ao perceber a ausência da Fabiana, Ivanise imaginou que sua filha mais velha estivesse esperando que cessasse a chuva forte que caía para retornar. A chuva parou, mas Fabiana não retornou. Ivanise avisou a polícia e depois por conta própria iniciou uma busca por delegacias, hospitais e unidades do Instituto Médico Legal, mas sem sucesso.
Fabiana se tornou uma das 250 mil pessoas que, segundo estimativas do Ministério Público Federal, desaparecem anualmente no Brasil. Já Ivanise Esperidião preside hoje a ONG Mães da Sé, que trabalha para conscientizar as autoridades quanto à gravidade do problema. Sua história chegou a ser apresentada na novela Explode Coração, da TV Globo, que abriu espaço para relatar o drama dos familiares de pessoas desaparecidas. Em maio passado, ela contou sua história durante a cerimônia de abertura do Fórum Social Internacional de Redes Protetivas e Buscas Efetivas às Crianças Desaparecidas, realizado na Faculdade de Ciências e Letras do câmpus da Unesp em Araraquara. “Infelizmente, na minha visão de mãe e militante, [ o desaparecimento de jovens] é uma das maiores violações de direitos humanos. Mas é uma causa invisível aos olhos da sociedade e das autoridades. Nossos filhos são vistos apenas como parte de uma estatística”, afirmou Ivanise.
A mais recente estimativa sobre o número de crianças desaparecidas no Brasil foi feita em 1999: 40 mil ao ano, segundo o Ministério Público Federal. Entre as causas destes desaparecimentos estão problemas graves como exploração sexual, trabalho infantil, adoção irregular internacional e tráfico de menores e outros. Porém, a própria ausência de estatísticas mais recentes contribui para manter esta pauta fora do foco da sociedade, e é um indicador de como autoridades de todos os níveis governamentais têm falhado em desenvolver políticas públicas adequadas para lidar com a questão.
Chamar a atenção para o problema das crianças desaparecidas e a ausência de políticas públicas adequadas para enfrentá-lo foi justamente um dos principais objetivos do Fórum Social Internacional de Redes Protetivas e Buscas Efetivas às Crianças Desaparecidas, que teve à frente Patrícia Borba Marchetto, docente do curso de Administração Pública na Faculdade de Ciências e Letras, câmpus de Araraquara, e Carlos Nascimento, 56, consultor, especialista em desenvolvimento humano e que há mais de 35 anos milita como ativista de direitos humanos.
O Fórum aconteceu entre os dias 24 e 27 de maio e reuniu 275 participantes presencialmente, além de cententas que acompanharam pela internet. Entre as entidades representadas no evento estavam a ONG Mães da Sé, o Tribunal de Contas do Estado de São Paulo, a Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo, a Cruz Vermelha Internacional, o Programa de Localização e Identificação de Desaparecidos do Ministério Público do Estado de São Paulo, além de gestores públicos e conselheiros tutelares de diversos municípios. Ao longo da programação, composta por palestras e oficinas, os participantes puderam ter acesso a refexões e propostas de ações para prevenir e combater o desaparecimento de crianças.
Por quê o silêncio?
Embora a atuação de Patrícia Marchetto na academia não esteja diretamente relacionada a esta temática, ela conta que teve sua sensibilidade despertada a partir de leituras e pela dor expressada pelos familiares de desaparecidos. E chamou sua atenção a baixa visibilidade que o problema suscita. “Se desaparece um cachorrinho na rua, imediatamente posta-se sua foto no Facebook. Em poucos minutos circula alguma notícia, e é possível que até ele venha a ser localizado. Então por que o desaparecimento de uma criança é algo tão silencioso, que não desperta comentários?”, questiona. Para Marchetto, trata-se de um tema que envove a própria noção de cidadania, e que deveria preocupar a todos.
Ao pesquisar o tema das redes sociais, a docente encontrou o consultor e ativista Carlos Nascimento. Nascimento tomou conhecimento da problemática do desaparecimento de crianças a partir do contato com as mães da Praça da Sé, e desde então vem atuando na causa. Em 2021, em parceria com a ONG Mães da Sé, ele empreendeu uma viagem por mais de 80 localidades de quatro estados, com o propósito de apoiar e reforçar o engajamento, e cobrar das autoridades maior ênfase nas buscas por crianças desaparecidas. O projeto chama-se Rota Cidadã YPY.
Por iniciativa de Marchetto, e com total apoio de Nascimento, surgiu a ideia de constituir a Rede Estratégica de Enfrentamento ao Desaparecimento de Crianças (REDESPARC/UNESP), da qual o fórum é uma das iniciativas. A Rede alinha pesquisadores, professores e alunos de diferentes unidades da Unesp e instituições internacionais, como a Universidade do Minho, em Portugal, APCD (Associação Portuguesa de Crianças Desaparecidas) e Associação SOS Desaparecidos espanhola.
Nascimento explica que o Estado brasileiro é obrigado a prover legislações de proteção aos direitos humanos, especialmente para crianças e adolescentes. Porém, as políticas públicas efetivas que combatem o desaparecimento da população são praticamente inexistentes. Em 2019, foi aprovada a Lei 13.812, que sinalizou para a criação de um banco de dados nacional e unificado para o cadastro de pessoas desaparecidas. No entanto, já estamos em 2022 e a lei sequer foi regulamentada”, diz ele. Para Nascimento, criar um banco de dados é algo bastante simples. “O que não existe é o comprometimento por parte das autoridades, nem a busca de tornar operacionais as poucas legislações existentes”, diz.
Carta de Araraquara
Combinando os resultados das mobilizações efetuadas nos últimos anos com o resultado dos debates travados durante o evento, os participantes elaboraram um documento oficial, intitulado Carta de Araraquara. O documento contém 27 sugestões práticas às autoridades do país, com especial foco nos municípios, estados e na esfera federal. Estas sugestões são consideradas estratégicas e com potencial para impactar profundamente a esfera das crianças desaparecidas.
Uma das propostas estabelece que os estados desenvolvam junto aos municípios um sistema de progressão de imagens capaz de simular as mudanças das características físicas da pessoa desaparecida, para que se possa ter uma ideia de qual seria seu aspecto hoje. Outra ideia é o estabelecimento de uma promotoria especializada no desaparecimento de crianças e adolescentes em todos os estados brasileiros.Também se debateu o estabelecimento de parâmetros para coleta e armazenagem de material genético, e o aperfeiçoamento da fiscalização nas estradas e em postos de policiamento, com o intuito de evitar o trânsito de pessoas em situação de desaparecimento. Em especial, o Fórum exorta os municípios a cumprirem as recomendações legais vigentes e, assim, sejam constituídas as redes integradas envolvendo Conselhos de Direitos, secretarias municipais e outros órgãos constituídos nos municípios.
Mais propostas apresentadas incluíram a criação de uma lei, no âmbito municipal, que engaje os meios de comunicação na produção e veiculação de materiais para prevenção ou busca de crianças que desapareceram, e a criação de políticas redistributivas com auxílio financeiro, uma vez que é normal que, devido ao desaparecimento de uma criança ou adolescente, suas mães parem de estudar e trabalhar para se dedicarem às buscas e até contratem detetives particulares.
No último dia do Fórum, a Carta de Araraquara foi entregue à secretária de Assistência Social de Araraquara, Jaqueline Barbosa, representante oficial da prefeitura. A carta foi assinada por Ivanise Esperidião, Carlos Nascimento, Patrícia Marchetto e pela própria secretária representando o prefeito de Araraquara, Edson Antônio da Silva.
Para Nascimento, uma forma de acabar com a inoperância das autoridades e dar visibilidade ao assunto é denunciar formalmente o Estado Brasileiro em organismos internacionais, como a Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Ele cita como exemplo a condenação do Estado brasileiro pela Corte, em 2001, por negligência, omissão e tolerância em relação à violência doméstica contra as mulheres. A pressão internacional do órgão e os esforços da farmacêutica Maria da Penha foram decisivos para a criação de projetos de lei que resultaram na Lei nº 11.340, conhecida como Lei Maria da Penha.
Na segunda quinzena de maio de 2023 acontecerá o 2° Fórum Social Internacional de Redes Protetivas e Buscas Efetivas às Crianças Desaparecidas, em Salvador. “Nós esperamos não só o envolvimento emotivo e sensibilizado de toda a sociedade”, diz Patrícia Marchetto, “mas também que entendam a problemática e visualizem a inexistência de políticas públicas para um problema tão sério, e ao mesmo tempo invisível, que nosso país enfrenta.”
Foto acima: sessão do Fórum realizada no Anfiteatro A, no câmpus da Unesp em Araraquara. Crédito: Jadi Nascimento Agência Diário de Insight – Comunicação, Planejamento e Marketing.