No ano do centenário da Semana de 1922, registros de memórias de revistas modernistas brasileiras em portal português expandem fronteiras de pesquisa

Iniciativa liderada por docente da Unesp, em parceria com universidade portuguesa e a BBM-USP, expande possibilidades de análises e releituras de periódicos clássicos, como Klaxon e Revista de Antropofagia; sites serão lançados no dia 29 na Biblioteca Brasiliana.

Seis revistas fundamentais da primeira fase do movimento modernista no Brasil, marcada pela Semana de Arte Moderna realizada em São Paulo em 1922, estão sendo documentadas e indexadas de maneira inédita e inovadora em um trabalho de pesquisa que produz dados analíticos e documentais capazes de ampliar o conhecimento dessas publicações, do papel de seus principais colaboradores e das repercussões que tiveram ao longo da história.

Por meio de um protocolo firmado entre o Seminário Livre de História das Ideias, da Universidade Nova de Lisboa, e a Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin (BBM), da USP, está sendo lançado um website de revistas modernistas brasileiras publicadas na década de 1920, que estão a completar cem anos, dentro do Portal Revistas de Ideias e Cultura, ligado à universidade portuguesa. A parceria surgiu a partir das colaborações realizadas pela professora da Unesp Tania Regina de Luca, da Faculdade de Ciências e Letras (FCL) do câmpus de Assis, com o colega português Luís Manuel Crespo de Andrade, responsável pelo projeto que já possui grande quantidade de periódicos portugueses.

As revistas Klaxon (SP, 1922-23), Estética (RJ, 1924-25), A Revista (Belo Horizonte, 1925-26), Terra Roxa e Outras Terras (SP, 1926), Verde (Cataguases, 1927-29) e Revista de Antropofagia (SP, 1928-29) são as primeiras publicações brasileiras a integrarem a plataforma, iniciativa mantida como uma atividade científica do Centro de Humanidades da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. O Portal Revistas de Ideias e Cultura não se limita a realizar a digitalização dos periódicos, e faz uma indexação minuciosa de cada um dos textos publicados, identificando conceitos, assuntos, autores, obras, lugares citados, o que torna mais ágil o levantamento de informações e a produção de dados numéricos para os interessados na temática. Cada periódico também é acompanhado de um “magasin”, indexador de fontes que ajuda na contextualização da revista em questão.

Um magasin, palavra francesa que remete a “grande armazém” ou ao que conhecemos como “magazine”, reúne nesse caso um conjunto de informações no website para além da revista em si. Nessa aba específica do periódico, o leitor pode encontrar cartas trocadas entre colaboradores, depoimentos contemporâneos, memórias, controvérsias, indícios da recepção das publicações, estudos sobre o título, entre outros materiais com menções sobre a publicação, relacionando-a com outros conteúdos presentes na plataforma, de modo a fornecer o contexto no qual a revista circulou e sua relevância histórico-cultural, seja no momento em que circulou ou em períodos subsequentes.

Tania de Luca: projeto surgiu a partir de colaborações da docente da Unesp com o colega Luís de Andrade – Foto: Fabio Mazzitelli/ACI Unesp

Um exemplo deste trabalho de registro da trajetória das memórias de periódicos marcantes do modernismo é o caso que envolve o escritor Carlos Drummond de Andrade, fundador e editor de “A Revista”, terceiro periódico modernista a ser lançado. Quando o fundou, Drummond era um jovem ainda desconhecido. Quando ele dá o seu testemunho sobre a publicação que lançou com colegas em Belo Horizonte, já era um dos poetas mais importantes do Brasil. “Esse depoimento, atravessado pelo fio da memória e que remete para os tempos da juventude, é de natureza diversa das conversas que ele mantinha por carta, no calor da hora, com o Mário (de Andrade). Procuramos registrar esses diferentes momentos, que remetem para contextos e situações bem diversas”, diz a docente da Unesp, frisando tratar-se de um trabalho intelectual que, em tese, não termina. “São selecionados elementos para que o interessado possa avaliar o impacto daquela revista em diferentes momentos, fornecendo um panorama que pode ser completado. A plataforma é um espaço em constante construção e processo de aperfeiçoamento”, afirma.

Tal configuração traz consigo uma curadoria que permite entender mais facilmente por que as revistas modernistas são parte importante do cenário literário e cultural da época, atravessado por debates acerca da identidade nacional – a própria Semana de 22 se inseriu no contexto da comemoração do primeiro centenário da Independência do Brasil, o que convidava a refletir sobre os caminhos até então trilhados pelo país.

“O agrupamento dos dados no portal permite, por exemplo, que se possa dizer quantas vezes um autor, um lugar ou um livro foi citado numa dada revista, quais os conceitos mais mobilizados pelos seus colaboradores. A novidade está no número de possibilidades analíticas que são geradas. Assim, mesmo no caso de revistas com pequena quantidade de exemplares, saber quantas vezes ‘Mário de Andrade’ foi citado requer bastante trabalho. O site fornece esse tipo de informação de maneira imediata”, afirma Tania de Luca, que é livre docente em História do Brasil Republicano e uma das principais pesquisadoras do país em história da imprensa. “Os dados gerados permite análises mais sofisticadas, usando ferramentas das chamadas Humanidades Digitais.”

Ideia, parceria e execução
A inserção de revistas modernistas brasileiras na plataforma do Seminário Livre de História das Ideias, da Universidade Nova de Lisboa, foi uma ideia aventada anos atrás, a partir das cooperações acadêmicas entre a professora da Unesp e o colega português Luís de Andrade, e ganhou força com a proximidade do centenário da Semana de Arte Moderna, completado neste ano. Para compreender e conhecer o funcionamento do portal, Tania de Luca se dispôs a fazer, de forma voluntária, a indexação de uma das revistas portuguesas presentes na plataforma, cujas atividades são apoiadas pela Fundação Mário Soares e pela Biblioteca Nacional de Portugal. Após conhecer a metodologia, fez contatos com colegas brasileiros – especificamente o professor da USP Antonio Dimas de Moraes, especialista em estudos de periódicos, e a pesquisadora Ana Luiza Martins Camargo de Oliveira, estudiosa da área de revistas – que ajudaram a viabilizar a parceria com a Universidade de São Paulo, que abriga a Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin.

A BBM-USP guarda originais dos periódicos modernistas selecionados, que foram digitalizados e colocados à disposição na plataforma portuguesa. O lançamento do website destinado às revistas brasileiras no Portal Revistas de Ideias e Cultura será realizado na tarde do próximo dia 29, na Sala Villa Lobos da Biblioteca Brasiliana, na Cidade Universitária, zona oeste da capital paulista. Na ocasião, ocorrerá uma apresentação do site com a participação da docente da Unesp e dos colegas Luís de Andrade, Antonio Dimas e Ana Luiza Martins. As páginas dos periódicos brasileiros ficaram disponíveis para o público nesta sexta-feira, 24 de junho: https://br.revistasdeideias.net/pt-pt.

“Este trabalho realizado (com as revistas modernistas brasileiras) interessa tanto para o historiador e para a história literária quanto para a história política, porque a cultura não está alijada de propostas políticas. Então, destina-se a todos aqueles que queiram compreender não apenas a década de 20 do século passado, mas também seus desdobramentos e evocações posteriores”, afirma Tania de Luca.

Segundo os pesquisadores, a escolha inicial de revistas ligadas ao movimento de 1922 justifica-se pela centralidade que elas têm ocupado na construção da ideia de modernismo. A ambição é de ampliar e incorporar outras publicações da própria década de 1920, o que permitirá reavaliar, a partir de perspectiva mais ampla, o lugar dessas revistas no cenário cultural. Espera-se “retroceder e avançar no tempo”, de modo a recompor o campo do periodismo cultural, tal como se observa no caso português.

O trabalho de pesquisa deste projeto foi iniciado em 2019 e se tornou mais complicado em função do surgimento da pandemia de covid-19, em março do ano seguinte. Com as instituições de pesquisa e as universidades fechadas por longos períodos em função do necessário isolamento social, o grupo responsável passou a desenvolver a pesquisa de forma remota, com reuniões virtuais para indexação e produção dos dados analíticos, em diálogo com o professor Luís Andrade e a equipe técnica portuguesa. Mais desafiadora, conforme detalha Tania de Luca, foi a construção do magasin de cada revista, momento em que era indispensável a consulta a acervos. A ajuda providencial veio do diretor da FCL-Unesp, professor Darío Palmieri, que abriu a consulta ao acervo da biblioteca do câmpus de Assis e viabilizou a digitalização do material, na qualidade requerida, junto ao Centro de Documentação e Apoio à Pesquisa (Cedap) da Unesp, o que permitiu cumprir o cronograma de lançamento em 2022. “Isso foi fundamental”, diz a docente.

O grupo de trabalho liderado pela docente foi constituído por pós-graduandas da Unesp, entre as quais Luciana Francisco, que estudou no mestrado duas das revistas selecionadas para o portal. Com o apoio de uma bolsa Fapesp, a pesquisadora investigou os debates em torno do modernismo nos periódicos “A Revista” e “Verde” em sua dissertação, defendida no Programa de Pós-Graduação em História da Unesp e publicada em 2021. A dissertação de mestrado foi selecionada para publicação no selo Cultura Acadêmica, da Editora Unesp. Atualmente, a estudante segue trabalhando em cima do mesmo assunto, atuando para preservar as memórias do movimento modernista.

“A equipe de trabalho é composta por pesquisadores de diversas áreas que têm como interesse comum o estudo de revistas culturais. Com encontros freqüentes, seguimos o rigor metodológico proposto pelo RIC (Portal Revistas de Ideias e Cultura) para descrição de analíticos das revistas e buscamos reunir documentos que possibilitem a contextualização histórico-cultural de cada um dos títulos. Em conjunto, a iniciativa visa atender desde o pesquisador especializado no tema quanto o público em geral que se interesse em conhecer mais dessas revistas”, afirma Luciana Francisco, que ressalta como uma das potencialidades deste processo de construção dos dados analíticos a possibilidade de colocar em perspectiva os “vários modernismos que circularam no Brasil” na década de 1920. “O portal permite uma leitura individual e combinada dos títulos com revistas congêneres que vai além de outros métodos de sistematização de dados.”

Para quem navega no website do portal, a experiência de imersão em um determinado periódico faz lembrar os longos passeios pelas galerias dos grandes museus do mundo, dada a riqueza de detalhes e correlações.

“É para que o leitor culto, que eventualmente nada ou pouco saiba sobre essas revistas, possa antever os bastidores, a ‘cozinha’ na qual se preparava cada volume, o contexto vigente no momento em que ela circulava e, posteriormente, como ela foi retomada, agora do ponto de vista da memória. Trata-se de inserir as revistas em suas múltiplas temporalidades”, resume Tania de Luca. Para navegar no acervo basta acessar o Portal Revistas de Ideias e Cultura e o website destinado aos periódicos modernistas do Brasil (abaixo).

Imagem de abertura e infográficos: Helena Trevizan/ACI Unesp
Reportagem atualizada em 24jun2022, quando a seção brasileira do portal ficou disponível