Está em discussão na Câmara dos Deputados, e pode ser votado a qualquer momento, o Projeto de Lei 5829/19, (PL 5829/29) também conhecido como marco legal da geração distribuída. O texto, de autoria do Deputado Silas Câmara (Republicanos – AM), tem como objetivo regulamentar a geração de energia elétrica por mini e micro produtores, que no Brasil é feita majoritariamente através do uso da energia solar. Para Dionízio Paschoareli, que pesquisa as áreas de geração distribuída e fontes renováveis de energia, a discussão sobre o projeto de lei é importante para chamar a atenção sobre uma modalidade de geração de energia emergente e limpa, mas sua eventual aprovação não irá promover a diversificação da matriz energética brasileira em um curto prazo. A principal serventia da nova legislação será a de orientar um mercado em franca expansão.
A geração distribuída é aquela energia gerada junto ou próximo ao consumidor, independentemente do tipo de tecnologia aplicada. A mais conhecida é a energia solar, comumente gerada a partir de placas fotovoltaicas. Essas modalidades de geração de energia vem ganhando espaço entre consumidores, com destaque para os micro (até 75 kW) e minigeradores (5 MW). Eles são chamados de “prosumidores”, e estão no centro do debate em Brasília.
Atualmente, este setor é regulado apenas por uma resolução da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel). Em seu parecer, o relator do projeto de lei, o deputado Lafayette de Andrada, destaca que o texto deve trazer segurança jurídica, clareza e previsibilidade para um setor em crescimento e responsável pela criação de 74 mil empregos em 2020, e que deve promover investimentos da ordem de R$ 16,7 bilhões em 2021. O relator ressalta ainda a capacidade da geração distribuída em “ajuda a aliviar a operação da matriz elétrica nacional com economia da água dos reservatórios das hidrelétricas, com a redução do uso das termelétricas, (mais caras e poluentes)”.
Pasquarelli, que é professor do Departamento de Engenharia Elétrica da Faculdade de Engenharia do câmpus da Unesp em Ilha Solteira, enxerga como positivo o debate sobre o PL 5829/29, pois joga luz no tema do uso de fontes de energia limpas e na diversificação da matriz energética. Essa discussão ganha especial importância em um momento em que a crise hídrica e a redução da vazão dos reservatórios irão obrigar o Brasil a acionar usinas termelétricas, que em geral funcionam a base de combustíveis fósseis e produzem uma energia mais cara do que a hidráulica.
“Infelizmente, a geração distribuída não vai ajudar a resolver o problema energético em um curto prazo. Ele é o marco regulatório de mercado, e discute principalmente incentivos para que concessionárias e pequenos produtores de energia tenham algum estímulo para investir no setor”, explica.
Mercado em rápido crescimento
De fato, este mercado vem crescendo substancialmente ano a ano. Segundo dados da Associação Brasileira de Energia Solar Fotovoltaica (Absolar), em 2017 a geração distribuída por energia solar tinha 197 MW de potência instalada no país. Em 2021, este número cresceu para 6.024 MW. Ainda segundo a entidade, a fonte solar fotovoltaica representa 99,9% das instalações de micro e minigeração distribuída, englobando desde painéis instalados nos tetos de residências e galpões até usinas de médio porte.
Entre os estímulos citados pelo docente de Ilha Solteira está o sistema de compensação, atualmente em uso, em que a energia gerada por uma residência é devolvida ao sistema e pode ser distribuída através deste para outros usuários.
O sistema elétrico centralizado funciona como uma caixa d’água em que mangueiras abastecem o sistema e torneiras drenam a água. Neste sentido, estes pequenos geradores, além da torneira em que recebem a energia, possuem também uma mangueira em que abastecem o sistema com a energias produzida pelos seus painéis solares.
Hoje, os pequenos produtores têm direito a um crédito, com validade de cinco anos, relativo à energia que devolveram para o sistema, que pode ser abatido na fatura da conta. Este instrumento é polêmico, e tornou-se um dos principais temas em debate na Câmara porque, embora represente um importante incentivo à micro e minigeração distribuída, não considera o custo da estrutura de transmissão instalada.
O texto em vias de ser colocado em votação na Câmara pretende mudar este benefício. Sistemas que já estejam em funcionamento ou que solicitarem acesso na rede de distribuição de energia elétrica a partir de 12 meses após a data de publicação da lei, irão manter esse benefício por 26 anos, dentro do conceito de direito adquirido. Os demais prosumidores terão essa taxa cobrada progressivamente ao longo dos dez anos seguintes.
“Mesmo que a pessoa tenha um sistema fotovoltaico na sua casa, ela sempre estará conectada à rede. Quando não há Sol, e o usuário não puder gerar a própria eletricidade, o sistema oferece energia necessária, e o usuário não está pagando à concessionária por essa conexão. O ônus dessa infraestrutura vai acabar sendo repassado aos demais consumidores, principalmente os mais pobres que não podem pagar um sistema fotovoltaico”, aponta o professor da Unesp. “A gente não pode esquecer que o imposto é um bem comum. Se o Estado abre mão de impostos, ele abre mão de recursos e vai precisar compensar de alguma forma”.
O argumento da sustentabilidade
Um argumento a favor da manutenção do sistema de compensação é que a própria economia proporcionada pelo consumo de uma energia cuja geração é mais barata do que o acionamento das usinas termelétricas, somada aos benefícios ambientais inerentes da matriz solar, que não gera gases de efeito estufa, compensariam os recursos “perdidos” com a renúncia a taxar o uso da rede. Segundo o professor da Unesp, é fato que a geração distribuída fotovoltaica pode promover benefícios ambientais, mas é necessário fazer uma análise mais detalhada de seus impactos ambientais e econômicos para afirmar com precisão que eles compensariam as cobranças.
Quanto à vantagem em relação ao custo das usinas termelétricas, Dionízio lembra que o preço da energia para o consumidor depende de vários fatores, entre eles a oferta no leilão de energia. Embora possa haver um menor custo na produção, isto não necessariamente se materializa no preço final ao consumidor, que vai depender das condições de mercado. Ainda assim, o aumento na participação das fontes fotovoltaicas na matriz energética pode fazer com que esses valores sejam reduzidos, à medida que elas passarem a ser importantes na matriz energética.
Outro ponto do PL 5829/29 que merece atenção é a diferença de grandezas que estão sendo incluídas sob um mesmo texto de lei. Se a microgeração contempla “prosumidores” de até 75 kW, a definição de minigeradores abarca sistemas de até 5 MW, uma escala quase mil vezes maior. Para as distribuidoras, um cenário com maior número de minigeradores (até 5 MW) pode ser interessante para as distribuidoras, uma vez que a geração estável e mais próxima do consumidor tende a gerar economia com a perda no transporte de energia e com a redução de investimentos em transmissão. Já em um ambiente em que prevaleçam microgeradores de 5 a 10kW a distribuidora não teria a mesma previsibilidade e estabilidade no fornecimento de energia, o que pode afetar a operacionalidade do sistema.
“Quando a geração pequena se dissemina muito, os proprietários podem falhar na manutenção por diversos motivos, e o sistema não irá contar com aquela energia. Já no caso de um consumidor grande, a empresa irá firma um contrato e cobrar a operacionalidade com geração consistente”, explica. Retomando a analogia da caixa d’água, o receio é que as “micromangueiras” não ofereçam a mesma previsibilidade e estabilidade, o que pode prejudicar o sistema como um todo.
Por hora, esta possibilidade mais problemática parece ainda distante da realidade brasileira. Em setembro de 2020 o país bateu o recorde de oferta de energia elétrica a partir de fontes solares fotovoltaicas (seja centralizada ou distribuída). Porém, apesar da marca histórica, esta matriz ainda representa apenas 1,4% de toda a energia ofertada no Brasil. Para Paschoareli, qualquer que venha a ser a decisão final em Brasília quanto ao PL 5829/29, o debate provavelmente será retomado quando a energia gerada pelos prosumidores atingir um montante significativo na matriz brasileira. “Nesse momento, a geração distribuída solar ainda é muito incipiente no país. As resoluções da Aneel têm menos de 10 anos, o que não é nada para o sistema elétrico. Ainda estamos colocando o sistema em funcionamento e este debate é parte do processo”.
Imagem acima: Akarawut Lohacharoenvanich/iStock