A tragédia mais que anunciada da Cinemateca Brasileira

Espécie de microcosmo do país, a instituição vive uma crise política e administrativa desde 2013, que se agudizou no último ano e explodiu no incêndio no fim de julho

“Previsões são algo muito difícil, especialmente sobre o futuro”, diz um adágio que se popularizou graças à internet, cujo autor original se perdeu, mas que costuma ser atribuído a uma meia dúzia de grandes nomes. Em certas situações particulares, porém, fazer vaticínios acuradíssimos pode ser muito fácil. Infelizmente, em geral, nestes casos as previsões são negativas, e em alguns casos podem esbarrar na calamidade.      

No início da noite de 29 de julho, o primeiro andar do galpão da instalação secundária da Cinemateca Brasileira, localizada na Vila Leopoldina, zona oeste de São Paulo, pegou fogo. Tal possibilidade não fora apenas prevista, mas sim objeto de um alerta formal. Em julho de 2020, o Ministério Público Federal em São Paulo (MPF-SP) entrou com uma ação na Justiça contra a União por abandono da Cinemateca. Em abril deste anoos trabalhadores da Cinemateca lançaram um manifesto alertando para o perigo que o acervo corria sem acompanhamento técnico. Em maio, depois que o governo se comprometeu a solucionar a questão e agir em até 45 dias, a Justiça suspendeu o processo aberto pelo MPF-SP. Porém, o prazo venceu em início de julho sem que a situação de abandono tivesse sido revertida. 

Novamente, em uma audiência realizada no dia 20 de julho, a Justiça deu mais 60 dias para a União agir e solucionar a questão da Cinemateca. Mais uma vez, durante essa audiência, o Ministério Público Federal alertou o Governo Federal sobre o risco de incêndio. E até de fora do Brasil vieram alertas. Em 6 de julho, durante uma entrevista coletiva no Festival de Cannes, o cineasta Kleber Mendonça Filho denunciou as condições difíceis que a Cinemateca enfrentava para a imprensa internacional. Mesmo apesar dos repetidos alertas, o governo nada fez, e o incêndio terminou por se materializar.

As labaredas que varreram parte do acervo da Cinemateca Brasileira, que abriga 250 mil rolos de filmes e que já mereceu elogios de nomes como Martin Scorsese, são o legado de anos de problemas administrativos não resolvidos. Assim como o Brasil, a instituição vem tropeçando numa crise política e administrativa desde 2013. Porém, de um ano para cá, a crise passou a ser alimentada pelo descaso, e os problemas mudaram de patamar.   

Foi em 07 de agosto do ano passado que o Governo Federal exigiu que a Associação de Comunicação Educativa Roquette Pinto (Acerp), a Organização Social que administrava a Cinemateca desde 2019, entregasse as chaves dos prédios e se afastasse por completo das atividades ligadas ao órgão. As chaves foram entregues a Helio Ferraz, então secretário Nacional do Audiovisual substituto. A ocasião foi marcada pela presença de agentes armados da Polícia Federal, convocados sob o pretexto de que poderia haver resistência da Acerp, o que não se verificou em absoluto.  

A Sociedade Amigos da Cinemateca (SAC), uma sociedade civil criada em 1962  para angariar recursos e levar projetos para serem executados pela instituição, e que na prática funciona como uma extensão da Cinemateca, chegou a apresentar um plano de administração emergencial para assegurar a continuidade pelo menos das atividades mais vitais para a manutenção do acervo. Mas a proposta foi ignorada, e a Cinemateca basicamente passou estes últimos doze meses em coma. Seu corpo técnico foi demitido, mas nenhum funcionário recebeu os salários atrasados ou as rescisões devidas pela Acerp.

 

O cineasta Kleber Mendonça Filho fala sobre as más condições da Cinemateca Nacional durante o Festival de Cannes. Crédito: SOS Cinemateca Brasileira.

Depois da inundação, um Incêndio  

De acordo com o Corpo de Bombeiros, o fogo consumiu uma área de cerca de 300 a 400 metros quadrados do galpão.  Para alívio de todos, o térreo, que também abriga um grande acervo, não foi atingido. Entretanto, uma enchente, ocorrida em fevereiro de 2020, já havia danificado parte deste acervo, que havia sido, justamente, deslocado para o primeiro andar do galpão, o local que agora pegou fogo. “O que a água começou o fogo terminou”, afirmou Carlos Augusto Calil, atual presidente da Sociedade Amigos da Cinemateca (SAC), ex-diretor da Cinemateca Brasileira e ex-secretário de Cultura de São Paulo, que foi até o local, na Vila Leopoldina.  

Ao programa Fantástico da TV Globo, no domingo dia 1 de agosto, o coordenador da Defesa Civil de São Paulo, Rubens Trapiá, afirmou: “nós encontramos bastante material nas prateleiras mas também encontramos bastante material jogado pelos cantos, jogado pelo chão de todo o espaço. Posso dizer que era uma cena de abandono.”  

Segundo os bombeiros civis que trabalhavam no local, o princípio de incêndio ocorreu por conta de uma manutenção no ar condicionado. “Uma empresa terceirizada contratada pelo Governo Federal para fazer a manutenção da climatização do local. Eles estavam utilizando um equipamento para fazer a manutenção do ar condicionado. Não se sabe se houve uma falha neste equipamento, mas por conta desta manutenção ocorreu o princípio de incêndio. Mas a causa em princípio seria esta, da manutenção da climatização”, explicou a tenente porta-voz do Corpo de Bombeiros em entrevista à rede de TV CNN na noite de sexta.  

“Com esse incêndio, se perdeu toda a documentação pública do fomento ao cinema desde 1967. A documentação do Instituto Nacional do Cinema, do Conselho Nacional do Cinema, da Embrafilme, da Secretaria do Audiovisual. Eram documentos de importância histórica muito relevantes dos quais não há cópia”, afirmou Calil.  

Oito décadas de história 

A trajetória da Cinemateca, que em seus tempos áureos chegou a ser considerada uma das principais instituições do gênero no mundo, combina ideais, persistência, crises e até mesmo alguns incêndios (veja a linha do tempo ao longo do texto).  Foi o trabalho de seus criadores, de suas equipes e também da Sociedade Amigos da Cinemateca que assegurou sua existência em um país que nunca priorizou o investimento em cultura e em política cultural. Embora suas origens remontem à década de 1940, quando foi criado o segundo Clube de Cinema de São Paulo, foi apenas em 1997 que ela passou a ocupar os prédios onde funcionava o antigo matadouro municipal de São Paulo, no bairro de Vila Clementino. A esta altura, a cinemateca já havia perdido parte de seu patrimônio em três diferentes incêndios, e suas instalações estavam dispersas por diferentes espaços.   

A aquisição da nova sede permitiu que a instituição se consolidasse e experimentasse o auge de suas atividades.  Em 2001 foi finalmente inaugurado o depósito de matrizes, inicialmente com capacidade para 100 mil rolos de filmes. Em 2003, a Cinemateca, que era à época gerida pela SAC, foi incorporada pela Secretaria do Audiovisual do Ministério da Cultura, depois de seu Conselho Consultivo considerar que o IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) não atendia o escopo da instituição.

Os anos seguintes trouxeram a realização de projetos importantes, como o Censo Cinematográfico Brasileiro, a criação do Sistema Brasileiro de Informações Audiovisuais (SiBIA) e a implementação de programas de estágio. Em 2006, ao completar 50 anos, foi sede do 62º Congresso da FIAF (Federação Internacional de Arquivos de Filmes) e recebeu a visita de Lula, até hoje o único presidente que já visitou a Cinemateca. 

A mudança marca também uma fase em que a instituição passa a ter atenção do governo federal e a receber mais investimento para sua manutenção e funcionamento e também para novos projetos. Isso desperta a atenção do setor cultural como um todo. Ao ser incorporada ao MinC, a Cinemateca passa também a ser um dos pontos importantes para a política cinematográfica do governo federal. 

Em 2008, a SAC se tornou uma Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP) e passou a administrar os recursos da Cinemateca. Com a finalidade de auxiliar financeiramente a Fundação Cinemateca Brasileira, a SAC angariava recursos e levava projetos para serem executados pela instituição. Este período, de meados dos anos 2000, representou o auge da Cinemateca, que chegou a figurar nas listagens de melhores instituições do gênero no mundo.  

Tempos de crise

Em 2013, a Cinemateca Nacional começou a enfrentar um processo de crise político-administrativa que, tal como acontece com o Brasil, se tornou mais agudo com o tempo. À época, o então secretário do Audiovisual do ministério da Cultura, Leopoldo Nunes, entregou um relatório feito pela Controladoria Geral da União (CGU) contendo denúncias de irregularidades na prestação de contas da SAC, que então geria a Cinemateca por meio de um convênio de gestão conjunta. Marta Suplicy, então ministra da Cultura, exonerou Carlos Magalhães, que era diretor da Cinemateca há oito anos, e foi instalada uma auditoria para avaliar a administração da Cinemateca pela SAC.  

A exoneração do diretor-executivo da instituição foi feita sem diálogo com o Conselho Consultivo da Cinemateca, sem as medidas adequadas para sua substituição e sem um plano de transição.  Apesar de terem sido realizadas várias auditorias da Controladoria Geral da União em relação à execução de recursos da Secretaria do Audiovisual pela SAC e à aquisição de acervos pela União, não foram encontradas irregularidades. Como uma das consequências, ao final do ano, dos 124 funcionários ativos antes da crise, poucos permaneceram, dentre eles os 22 funcionários públicos diretamente vinculados ao ministério.  

Para agravar o quadro, o mandato do Conselho Consultivo da Cinemateca, que sempre teve um papel estratégico nas decisões tomadas na instituição e cuja existência está prevista em seu estatuto de criação, havia acabado em 2013 e não foi renovado. “Isso quebrou a autonomia da instituição, que é garantida pelas salvaguardas da incorporação ao governo federal. O Conselho da Cinemateca é um conselho curador. É ele que elege o diretor da Cinemateca, que o governo só nomeia. A partir daí, quem nomeou o diretor seguinte foi a Marta Suplicy e, daí em diante, todos os diretores foram nomeados pelo governo sem passar pelo Conselho, que não existe mais formalmente desde 2013”, explica Calil.  

“O Conselho tem representantes do governo federal, estadual, municipal e representantes da sociedade. E é este Conselho que determina a política da instituição e que elege o diretor. Tudo isso está na ata de extinção e incorporação”, detalha Calil. Estas medidas garantiram sempre a autonomia da instituição. Sem o pilar do conselho, a crise administrativa só se agravou. 

Em fevereiro de 2016 ocorreu incêndio, em uma das instalações da Vila Clementino, o quarto na história da cinemateca (Veja linha do tempo). Foram perdidos cerca de 1.000 rolos de filmes em nitrato de celulose, referentes a 731 títulos do acervo, que no total possui cerca de 44 mil títulos.  No mesmo ano, o Ministério da Cultura, por meio da Secretaria do Audiovisual, assinou contrato com a Acerp (Associação de Comunicação Educativa Roquette Pinto) para a execução de um projeto de preservação e acesso de acervos audiovisuais da Cinemateca Brasileira, como prestadora de serviços.  Em maio do mesmo ano, foi lançado um edital para seleção de uma Organização Social (OS) para gerir a Cinemateca.  Mas foi a vez do impecahment de Dilma se atravessar na trajetória da instituição. Com a queda da mandatária, o novo Ministro da Cultura,Sérgio Marcelo Caleiro, nomeado por Michel Temer, cancelou o edital de contratação da OS. Um novo edital foi lançado meses depois, com alterações.  

Em 2018, a Acerp (Associação de Comunicação Educativa Roquette Pinto), uma Organização Social, assumiu a administração da Cinemateca, após ser selecionada pelo edital. A legislação, no entanto, não permitia que a Acerp firmasse um contrato de gestão diretamente com o Ministério da Cultura (órgão ao qual a Cinemateca estava vinculada), pois a associação já possuía um contrato com o Ministério da Educação (MEC) e uma OS não pode ter mais de um contrato com o governo. Como solução, a gestão da Cinemateca foi oficializada por um aditivo ao contrato principal. 

Descaso e abandono

Em dezembro de 2019, já no governo de Jair Bolsonaro, encerrou-se o período de vigência do contrato da Acerp com o Ministério da Educação.  A associação esperava conseguir prorrogar o outro contrato, para continuar gerindo a Cinemateca, que, a priori, venceria somente em 2021.     

Em fevereiro de 2020, a instalação secundária da Vila Leopoldina sofreu a inundação já citada acima e a penúria se aprofundou ainda mais.  Em maio, já num quadro de crise, e na tentativa de dar a Regina Duarte uma espécie de prêmio de consolação pelo desgaste que ela enfrentou durante sua brevíssima passagem como Secretária Especial de Cultura, Bolsonaro anunciou que a atriz assumiria a direção da Cinemateca. “É ali do lado do teu apartamento, ali em São Paulo. Se você vai ser feliz e produzir muito mais, eu fico feliz com isso”, declarou Bolsonaro num vídeo onde aparecia conversando com a atriz.  

Na época, a atriz declarou: “Acabo de ganhar um presente, que é o sonho de qualquer profissional de comunicação, de audiovisual, de cinema e de teatro, um convite para dirigir a cinemateca que é um braço da cultura em São Paulo”. Mas o fato é que Regina nunca assumiu a direção da Instituição.  E o anúncio só fortaleceu a impressão de que o governo federal não só não administrava bem a crise da Cinemateca como não compreendia sequer como a instituição funcionava.    

A Acerp continuou cobrindo as despesas da Cinemateca Brasileira enquanto negociava com o Governo Federal para firmar um novo contrato para a gestão da instituição, mas não obteve sucesso. Meses depois, a Acerp não conseguiu mais arcar com os custos e a crise se agravou. A decisão oficial pela não renovação jogou a Cinemateca num limbo administrativo, sofrendo com atrasos nos pagamentos das contas de água e luz, salários, falta de vigilância e risco de incêndio.  

Em junho de 2020, aconteceu o primeiro ato em defesa da Cinemateca, que reuniu várias entidades cinematográficas e contou com o apoio de personalidades e cinematecas internacionais. Depois dos protestos, a Secretaria Especial de Cultura destinou verba para a contratação de profissionais de serviços de manutenção, mas os técnicos responsáveis por cuidar do acervo não foram recontratados ou substituídos.  

Em agosto de 2020as chaves da Cinemateca foram entregues à Secretaria Especial de Cultura, que já tinha como titular o atual secretário, Mario Frias. Sem sucesso em obter a prorrogação do contrato de gestão, a Acerp ainda tentou obter ressarcimento do valor que investiu na instituição em 2019 e 2020, um total de R$ 14 milhões. Também não conseguiu. Os técnicos contratados pela Acerp pelo sistema de CLT, que estavam sem receber desde março, foram demitidos. A Cinemateca fechou. 

No dia seguinte ao incêndio, um novo edital

Na manhã seguinte ao incêndio, num movimento que lembra aqueles proprietários que decidem instalar um alarme depois que a sua casa já foi assaltada, o Diário Oficial da União publicou um Edital de Chamamento Público para a seleção de uma OS que irá administrar a Cinemateca pelos próximos cinco anos. Na verdade, a publicação deste edital fora anunciada um ano atrás, depois que a Secretaria Especial de Cultura retomou as chaves da Cinemateca, mas havia sido simplesmente posta de lado. E nem a sua publicação é garantia de solução a curto ou a médio prazo.  

“Este edital, na verdade, quase inviabiliza o trabalho de uma OS”, diz o cineasta Roberto Gervitz, coordenador do Grupo de Trabalho da Cinemateca da Associação Paulista de Cineastas (APACI), e que organizou o primeiro ato em defesa da Cinemateca, em junho de 2020. Ele aponta que o edital prevê uma dotação de R$ 10 milhões para este ano e, ao mesmo tempo, estima um gasto de R$ 22,5milhões para que a instituição atue plenamente. Porém, três anos atrás, a Acer recebia R$ 15 milhões por ano. “No chamamento, também está previsto que a OS que assumir terá de levantar o equivalente a 40 % dos recursos que o governo colocar. Por exemplo, se o governo vai destinar R$10milhões, a OS vai ter de levantar R$ 4milhões. Isso não tem nada a ver com a finalidade de uma OS, que é gerir com competência”, pondera. 

Na busca de fomentar autofinanciamento, o edital propõe que os produtores paguem para ter seus filmes depositados na Cinemateca. “A finalidade básica da Cinemateca é ser depositária da filmografia e da produção audiovisual de um país. Guardar a memória de um país. Como cobrar por isso? Isso é transformar uma instituição que tem um papel cultural de altíssima importância em uma prestadora de serviços”, completou Gervitz.  

“A atual situação é um reflexo da falta de interesse do poder público em prover os meios adequados para gerir a Cinemateca. O orçamento institucional só vem decrescendo”, analisa Leandro Pardi, ex-funcionário da Cinemateca. “Em 2018, a Cinemateca passou a ser gerida por uma OS, num contrato esdrúxulo, que depois foi desfeito por uma canetada e levou junto a instituição. Sem continuidade de políticas públicas, a gente não consegue estabelecer parâmetros para as instituições de memória. Há uma falta de tato para lidar com a política pública cultural no País. Isso obviamente se reflete na Cinemateca, que é um microcosmo da sociedade brasileira atual”. 

Na semana que se sucedeu após o incêndio, o Governo de São Paulo e a Prefeitura se ofereceram para administrar a Cinemateca pelos próximos dez anos. Mas, além do esforço sincero para se solucionar os problemas mais urgentes da instituição, a proposta dos governos estadual e municipal sinaliza a politização da pauta. Mais uma vez, a crise da cinemateca parece representar, num cenário condensado, as tensões e dilemas da vida política brasileira. Só que a própria história já mostrou anteriormente que, nos momentos em que a atuação da Cinemateca foi encarada por um viés mais político, os resultados não foram necessariamente benéficos. O ideal é que, como uma instituição que guarda parte importante da memória brasileira, ela esteja sempre defendida de flutuações e disputas políticas. 

Fotos: Marcelo Yamashita