O que as estátuas de Bandeirantes têm a nos dizer?

É preciso debater quem serão as figuras que merecem ser homenageadas nas ruas e praças do Brasil

Elas estão espalhadas dos saguões dos museus às praças, trevos de rodovias e entradas de várias cidades do Centro-sul do Brasil. Na capital de São Paulo ou em vias de acesso importantes para bairros de municípios do interior paulista, e em cidades de Goiás, Paraná e Santa Catarina, as estátuas que homenageiam os Bandeirantes se destacam na paisagem pela grandiosidade do seu tamanho, seu peso ou sua localização (o que costuma torná-las referência de lugar e de direção); se o Borba Gato da Avenida Santo Amaro, em São Paulo, possui 13 metros com o pedestal, o menos conhecido Bandeirante Antonio Correia Pinto de Macedo, que fica na Praça João Costa, na cidade de Lages, em Santa Catarina, arca com quinhentos quilos de bronze em toda a sua silhueta.

Fazer uma lista completa com os nomes de todos os Bandeirantes homenageados ao longo do século 20 seria uma tarefa hercúlea. Há um Fernão Dias Paes Leme, em Pouso Alegre, Minas Gerais; um Domingos Jorge Velho em Santana do Parnaíba, um Francisco Dias Velho no centro de Florianópolis, um Gaspar Vaz da Cunha em Campos do Jordão, um Jacques Félix em Taubaté. E, claro, um Bartolomeu Bueno da Silva defronte ao Parque Trianon, na Avenida Paulista. Todos foram caçadores e escravizadores de índios, porque o trabalho na sociedade colonial do Brasil, e em muitas outras partes da América, era baseado na escravidão negra ou indígena.

Assim, o que está por trás do incêndio-manifesto ocorrido no último dia 24 de julho contra a monumental estátua do Borba Gato envolve algo mais complexo do que propriamente estes homens, que posteriormente foram transfigurados na figura do Bandeirante graças a um modelo narrativo épico da história regional paulista, elaborado por uma elite letrada que atuava no Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo (1894) e na Academia Paulista de Letras (1909).

A invenção dos bandeirantes

O livro “A epopéia bandeirante” de Antonio Celso Ferreira explica bem um desses processos de makeup mais bem sucedidos da história: o de transformar mamelucos que aprenderam a trilhar o mato descalços junto com os índios, em heróis de botas. A figura inventada do Bandeirante fornecia um modelo ideal de identidade para a elite cafeeira paulista. Por ser mestiço de índio, estava mais próximo de um referencial branco. Sua história de desbravar sertões desconhecidos oferecia uma referência de vanguardismo e coragem.

Para os modernistas, a figura permitia em parte até uma reconciliação com o passado negro ou indígena brasileiro. Mas o Bandeirante continuava proporcionando uma referência de vanguarda.  Foi a maquete do Monumento às Bandeiras, criada pelo jovem Victor Brecheret na década de 1920, que o fez conquistar a simpatia dos modernistas de São Paulo. Mas a obra monumental teve de esperar até as comemorações do IV Centenário da cidade, em 1954, para exibir definitivamente, nos seus onze metros de altura e pouco mais de 34 metros de profundidade, as aspirações identitárias da elite paulista, que a esta altura já havia se convertido de cafeeira em industrial.

Nem mesmo o fato indefensável, porém explicável, de terem sido escravistas em um momento da história na qual a base das economias e sociedades coloniais era o braço escravo, chega a ser o ponto central do recente episódio do incêndio-manifesto contra o monumento. Tão importante quanto saber quem era o Borba Gato, ou qualquer um dos outros ditos Bandeirantes, é entender por que ele está naquele lugar, e por que o incêndio-manifesto contra a sua figura causou tamanha controvérsia, a ponto de levar para prisão um de seus autores confessos.

Estátua de Borba Gato incendiada em São Paulo. Reprodução da Internet.

Escolhas não debatidas

Quando a República nasceu, em 1889, a expectativa de que se ampliasse a arena de opinião e debate, algo que é próprio de toda res pública, foi prontamente evitada pela não extensão do direito de voto aos analfabetos. Essa medida limitava a possibilidade da maior parte da população pobre e trabalhadora, branca, negra ou mestiça, de escolher seus representantes políticos. Em um país recém-saído da escravidão e sem política educacional de Estado, quem seria alfabetizado?

Debater e ouvir a opinião de negros, índios, mestiços, pobres, trabalhadores e moradores das periferias sempre foi motivo de muito mal-estar para a maior parte das elites políticas, econômicas e letradas brasileiras. Se, em alguns momentos, a perspectiva de debater ou ouvir as opiniões das minorias ficou mais iminente, sempre se deu um jeito para evitar ou calar vozes muitas vezes mais articuladas do que a dos oradores bem adestrados nos manuais jurídicos. Sabe-se que a necessidade de driblar diariamente os obstáculos para levar o pão para casa é uma grande escola, e cria visionários.

Sem recorrer a conceitos ou teorizações, os envolvidos no ato foram certeiros em apontar o problema central desse e de tantos outros monumentos que celebram figuras envolvidas em ações explicáveis, indefensáveis e criticáveis na história do Brasil. Segundo um deles, o objetivo da ação de colocar fogo aos pés do gigante de madeira e pedras era para abrir o debate, sendo ainda emendado por um de seus colegas também ativista de que nesse país “favelado não tem voz ativa”.

Debater e ouvir a opinião desses grupos é tão desconfortável para certos interesses que, recentemente, um projeto da deputada estadual Erica Malunguinho foi parar na gaveta do arquivo por trazer, tal como a primeira constituição republicana do Brasil, os ares da expectativa de consulta ampla  à sociedade sobre os monumentos a serem erguidos na cidade. A proposta da deputada incluía ainda a proibição de homenagear com estátuas personagens da história do Brasil envolvidos com a escravidão, e a criação de um comitê permanente, integrado por legisladores, membros do executivo e da sociedade civil organizada, para discutir as propostas de nomeações e homenagens em praças, prédios ruas e a instalação de monumentos.

Ataque contra imagem que homenageia a vereadora assassinada Marielle Franco. Crédito: Luana Alves/Divulgação

São historicamente explicáveis os esforços das elites econômicas, políticas e letradas para a imposição da identidade Bandeirante à sociedade paulista em vários momentos do século 20, e alcançando até os anos da ditadura militar. Mas, desde a criação da internet e sua disseminação pelo mundo, e principalmente depois da pandemia de Covid-19, não debater e não ouvir a opinião das minorias sobre questões diversas como a dos próprios monumentos é no mínimo um tremendo anacronismo.

Em culturas de herança fortemente autoritária, como no caso do Brasil e de outros países da América Latina, o desconforto em debater e ouvir a opinião dos trabalhadores pobres, negros, indígenas persiste. É como uma ferida que não fecha, como demonstrou, além da prisão do ativista envolvido no incêncio-manifesto o revide com as pichações à imagem de Marielle Franco, mulher, negra, nascida na favela e que chegou à universidade pelos seus próprios esforços, tornando-se uma política defensora do debate e das opiniões de mulheres, negros, trabalhadores, LGBTs.

O incêndio-manifesto contra a estátua do Borba Gato, portanto, evidencia esse descompasso histórico entre uma memória erguida sem consulta sob a forma de altas e pesadas estátuas que se tornaram referência espacial em ruas cada vez mais percorridas e ocupadas por trabalhadores pobres, negros, das periferias, sem direitos ou reconhecimento. Quem ergue o rosto para admirar ou seguir a direção indicada pelo próprio algoz do seu antepassado e da sua história presente? O debate está aberto. E porque um favelado não pode ter voz ativa na escolha dos monumentos – e algo mais – das ruas da cidade onde vive?

Instalar estátuas ou nomear uma praça ou rua não é um ato inocente. Essa escolha pode desempenhar um grande papel educativo, e contribuir para alimentar a autoestima e o senso de valor de um povo, como pode acontecer com quem contempla a grande estátua do povo indígena Guaicurus, de Anor Mendes, que se destaca na paisagem da cidade de Campo Grande.

Foto de estátua em homenagem a indígena Guaicuru montando um cavalo no Parque das Nações Indígenas, na cidade de Campo Grande. Crédito: Vbacarin/iStock.

Foto de Abertura: Monumento às Bandeiras. Crédito: Wikimedia Commons.

*Denise Moura é professora de História do Brasil colônia no Departamento de História do câmpus da UNESP de Franca

Agradeço aos meus alunos da disciplina Brasil colônia II de 2020. O empenho de cada um no levantamento de monumentos dedicados à Bandeirantes, como atividade colaborativa para a discussão do tema, deu condições para a realização desse texto.