O anúncio de que a Fundação Cultural Palmares irá excluir do seu acervo obras de autores clássicos, tais como o escritor H. G. Wells (1866-1946), o historiador Eric Hobsbawm (1917-2012) e o folclorista brasileiro Câmara Cascudo (1898-1986), foi recebido com surpresa e indignação pelo meio intelectual brasileiro. Dos mais variados setores têm-se ouvido críticas e questionamentos, alertando contra um possível estreitamento do horizonte de debates na vida cultural brasileira, somado a um crescimento da intolerância.
Na sexta-feira, 11, o presidente da Fundação Palmares, Sérgio Camargo, anunciou, através do site da entidade, a conclusão de um amplo levantamento das 9.546 obras abrigadas no acervo da instituição. Os resultados da pesquisa foram apresentados através de um relatório intitulado “Retrato do acervo – três décadas de dominação marxista na Fundação Cultural Palmares”. O levantamento concluiu que apenas 478 títulos —ou aproximadamente 5% do conjunto — encontravam-se em conformidade com a missão institucional da Fundação e em condições adequadas para uso. Já as mais de 9 mil obras restantes foram reprovadas e, segundo comentário do presidente da Fundação, serão transferidas ou doadas para outras bibliotecas.
Para embasar a decisão para a transferência das obras julgadas fora da conformidade com os fins da Fundação Palmares, o relatório as agrupa em 14 categorias sui-generis de análise. Estas atendem por nomes tais como “sexualização de crianças”, “delinquência juvenil”, “técnicas de vitimização”, “pornografia juvenil”, “obras de/sobre Karl Marx”, “obras obsoletas” etc.
Dentre os autores cujas obras foram consideradas inadequadas após a análise, encontram-se, além dos já mencionados Wells, Hobsbawm e Câmara Cascudo, tanto autores contemporâneos, como o historiador Marco Antônio Villa, quanto pensadores e autores clássicos do porte de Max Weber, Karl Marx, Marquês de Sade e até mesmo Machado de Assis – o exemplar de 1938 de “Papéis Avulsos”, do Bruxo do Cosme Velho, foi reprovado, em parte, por não seguir as regras ortográficas adotadas de 2009 para cá. Para o diretor-presidente da Fundação Editora Unesp e membro da diretoria da Associação Brasileira das Editoras Universitárias (ABEU), Jézio Hernani Bomfim Gutierre, a decisão da Fundação Palmares de se desfazer de grande parte do seu acervo pelos motivos colocados acima é um sinal de obscurantismo. “Isso vai contra o coração da atividade acadêmica e racional, que busca levar em consideração a diversidade de ideias como fundamento para que se possa empreender o debate intelectual”, diz.
Gutierre diz que os membros da ABEU já se mostraram escandalizados com a notícia. “O objetivo das editoras universitárias é fazer com que a circulação de conceitos se amplie cada vez mais. O que estamos vendo, não apenas no caso triste da Fundação Palmares, mas em outras searas da vida intelectual brasileira, é o cerceamento do fluxo de ideias. As pessoas não querem ser contraditadas em relação ao que elas acreditam, não querem ouvir outras visões”, diz. Ele pondera que o fato de que esse cerceamento esteja ocorrendo em instituições que, a princípio, deveriam ser um motor de progresso intelectual, só torna o posicionamento adotado pela Fundação Palmares “mais triste e mais grave.” “Isso é uma tentativa espúria e autoritária de cerceamento de ideias”, avalia.
Na imagem acima, um trecho do relatório elaborado pela Fundação Palmares para justificar a exclusão de obras literárias (Foto: Reprodução)