José Paes de Almeida Nogueira Pinto
Lançado há 50 anos, no início de 1971, o LP Construção, de Chico Buarque, ainda hoje é considerado um dos grandes discos da história da música popular brasileira. Quinto LP de Chico, foi lançado após seu exílio voluntário na Itália, que perdurou por cerca de 14 meses. Quando de seu retorno, em 1970, Chico já havia lançado um compacto simples, contando com “Apesar de Você” no lado A e “Desalento” no lado B.
Felizmente, os censores da época não consideraram de início essas duas canções obras “subversivas” e as liberaram. Uma surpresa, inclusive para o próprio Chico. Cem mil cópias vendidas e a “ficha” caiu: “você”, de “Apesar de você”, não era uma mulher mandona, autoritária, como o compositor sempre respondia a quem o indagava. Descoberto o “erro”, a canção foi censurada, proibida de ser veiculada pelas rádios e TVs, sendo os discos ainda não vendidos recolhidos pelas forças de segurança.
Se considerarmos o compacto “Apesar de Você”/”Desalento” como um aperitivo, o LP “Construção” revelou-se um banquete de iguarias finíssimas, daquelas que, como diria Vinícius de Moraes, “a pessoa, se fosse honrada mesmo, só devia comer metida em um banho morno, em trevas totais, sonhando, no máximo, com a mulher amada”.
Em dez canções que compreendem exatos 31 minutos e 12 segundos, Chico nos oferece uma obra definitiva, que nos marca “a ferro e fogo, em carne viva”. Mesmo 50 anos depois, não há como sair incólume após a audição desse disco. Para Mauro Ferreira, crítico musical, o LP Construção destaca-se pela coesão do repertório, pelo pulso político desse cancioneiro inteiramente autoral e pela adequação dos arranjos às dez músicas. Dentre elas, comento aquela que dá nome ao disco.
Versos alexandrinos
Maravilhosa, incomparável. Esses são alguns dos adjetivos que qualificam “Construção” de Chico. Versos alexandrinos, todos eles finalizados em palavras proparoxítonas.
Para muitos, “só Chico poderia fazer isso”. Realmente, Francisco Buarque de Hollanda é genial. Ponto. Mas, em relação às proparoxítonas ao final dos versos, uma dupla sertaneja, Alvarenga & Ranchinho, já tinha feito o mesmo, cerca de 20 anos antes da construção buarqueana.
Formada em 1929 por Murilo Alvarenga, mineiro de Itaúna, e por Diésis dos Anjos Gaia, paulista de Jacareí, a dupla iniciou sua carreira apresentando-se em circos no interior de São Paulo. Em 1934, Murilo e Diésis foram contratados pelo maestro Breno Rossi e passaram a se apresentar na Rádio São Paulo.
A carreira consolidou-se após a mudança para o Rio de Janeiro, onde gravaram o seu primeiro disco, em 1936, e passaram a integrar o grupo de atrações do Cassino da Urca. Faziam enorme sucesso com a criação de sátiras políticas, o que lhes valeu, também, uma série de prisões.
Sumiços e rearranjos
A formação original se desfez em 1965, quando Diésis abandonou definitivamente a dupla. Sumiços anteriores já haviam ocorrido, quando então havia sido substituído por Delamare de Abreu, irmão, por parte de mãe, de Murilo Alvarenga.
Com o rompimento definitivo, um “terceiro” Ranchinho surgiu, Homero de Souza Campos, conhecido também como Ranchinho da Viola e como “Ranchinho II” (apesar de ter sido o “terceiro”). Homero cantou com Alvarenga de 1965 até o falecimento deste, em 1978.
Mas e as proparoxítonas? Elas estão presentes em “Drama de Angélica”, canção composta em 1949 por Murilo Alvarenga e M. G. Barreto, tendo sido um dos maiores sucessos da dupla.
Reparem na letra: são 12 conjuntos de textos e cada um deles tem oito versos, sendo que, em praticamente todos eles, as últimas palavras são proparoxítonas.
Há algumas poucas exceções, tais como “perplexo” e “convexo”, mas ao longo da canção isso nem se nota, pois elas também se encaixam no ritmo estabelecido pela letra. Ouça a música, a partir de 8’50’’, no programa Ensaio, da TV Cultura.
Drama de Angélica (1949) – Murilo Alvarenga e M.G. Barreto
Ouve meu cântico
quase sem ritmo
Que a voz de um tísico
magro esquelética
Poesia épica
em forma esdrúxula
Feita sem métrica
com rima rápida
Amei Angélica
mulher anêmica
De cores pálidas
e gestos tímidos
Era maligna
e tinha ímpetos
De fazer cócegas
no meu esôfago
Em noite frígida
fomos ao Lírico
Ouvir o músico
pianista célebre
Soprava o zéfiro
ventinho úmido
Então Angélica
ficou asmática
Fomos ao médico
de muita clínica
Com muita prática
e preço módico
Depois do inquérito
descobre o clínico
O mal atávico
mal sifilítico
Mandou-me célere
comprar noz vômica
E ácido cítrico
para o seu fígado
O farmacêutico
mocinho estúpido
Errou na fórmula
fez despropósito
Não tendo escrúpulo
deu-me sem rótulo
Ácido fênico
e ácido prússico
Corri mui lépido
mais de um quilômetro
Num bonde elétrico
de força múltipla
O dia cálido
deixou-me tépido
Achei Angélica
já toda trêmula
A terapêutica
dose alopática
Lhe dei em xícara
de ferro ágate
Tomou num fôlego
triste e bucólica
Esta estrambólica
droga fatídica
Caiu no esôfago
deixou-a lívida
Dando-lhe cólica
e morte trágica
O pai de Angélica
chefe do tráfego
Homem carnívoro
ficou perplexo
Por ser estrábico
usava óculos
Um vidro côncavo
o outro convexo
Morreu Angélica
de um modo lúgubre
Moléstia crônica
levou-a ao túmulo
Foi feita a autópsia
todos os médicos
Foram unânimes
no diagnóstico
Fiz-lhe um sarcófago
assaz artístico
Todo de mármore
da cor do ébano
E sobre o túmulo
uma estatística
Coisa metódica
como Os Lusíadas
E numa lápide
paralelepípedo
Pus esse dístico
terno e simbólico
“Cá jaz Angélica
Moça hiperbólica
Beleza Helênica
Morreu de cólica!”
Os tijolos e os ‘causos’
Obviamente, a genialidade de ambas as canções não está relacionada somente à presença das proparoxítonas, é muito mais do que isso.
Chico, em alguns poucos minutos, descreve o cotidiano de um operário da construção civil, com todas as suas mazelas e desencantos. As proparoxítonas funcionam como tijolos em uma construção mágica e trágica, em uma tensão crescente embalada pelo também genial arranjo do maestro Rogério Duprat.
Alvarenga e Ranchinho, por sua vez, nos remetem àqueles “causos” que ouvíamos de nossos pais, histórias das quais ansiávamos por conhecer o seu final, mesmo que trágico. Uma verdadeira novela, arrebatadora, com idas e vindas, em uma interpretação perfeita da dupla. Ao final, não há como não gargalhar, a despeito do “Drama de Angélica”.
Chico é um intelectual, com sólida formação cultural. Alvarenga é de origem humilde, iniciou a carreira em circo e se tornou símbolo da música caipira. Tão diferentes e tão geniais. Como diria Caetano Veloso, “salve o compositor popular” do Brasil.
José Paes de Almeida Nogueira Pinto é professor do Departamento de Produção Animal e Medicina Veterinária Preventiva, da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da Unesp, câmpus de Botucatu. É assessor da Assessoria de Comunicação e Imprensa da Unesp
Na imagem acima, a dupla sertaneja Alvarenga & Ranchinho em apresentação no programa Ensaio, da TV Cultura, de São Paulo, gravado em fevereiro de 1973. Foto: captada do vídeo do Canal da TV Cultura no YouTube