Nossos ídolos da MPB vinham a Botucatu de Kombi no Circuito Universitário

A censura não dava trégua e muitos artistas, alguns deles recém-chegados do exílio, estavam impossibilitados de se apresentar na televisão

Botucatu, setembro de 1972. Paulinho, 15 anos, completamente desolado, caminhava em direção à sua casa, vindo de um curso que ele resolvera frequentar no Senac.  Estava na Rua Amando, perto da praça do Bosque, deserta naquele momento, pois estava frio e ventava. O show começaria dali a uma hora e ele não poderia assistir, pois havia muitos trabalhos a entregar e ainda precisava estudar para a prova de Biologia, da professora Zenaide. Ele, que havia sonhado tanto com aquele momento.

De repente, completamente absorto, Paulinho foi despertado pela brecada de um carro, mais precisamente de uma Kombi, que estacionou ao seu lado. A janela do lado oposto ao do motorista abriu-se e uma pessoa lhe perguntou: “Você sabe como chegar ao local do show que vai acontecer agora à noite?” Paulinho olhou e não acreditou no que via… Lá estavam eles, os artistas do show que ele não assistiria… Lá estava ele,  especialmente…

Brasil, início da década de 70. A censura não dava trégua e muitos artistas, alguns deles recém-chegados do exílio, estavam impossibilitados de se apresentar na televisão. Tempos difíceis, mesmo para aqueles que já tinham uma carreira consolidada. Alternativas começaram então a ser imaginadas  até que em 1972, por iniciativa de um empresário musical da época, Benil Santos, e do produtor cultural Roberto de Oliveira, criou-se o lendário Circuito Universitário, quando, além das capitais, várias cidades do interior paulista, sul de Minas e Rio de Janeiro, passaram a receber artistas que, a troco da bilheteria, apresentavam-se para o público universitário.

Botucatu foi uma das escolhidas para integrar o Circuito e o Centro Acadêmico “Pirajá da Silva” (CAPS) ficou responsável por fornecer toda a infraestrutura para realização dos shows e hospedagem dos músicos.

A cidade não tinha muitas opções de local para a realização dos espetáculos, e não foi difícil concluir que o Cine Paratodos era o único que poderia ser utilizado. Construído em estilo Art Déco a partir do projeto de um engenheiro da cidade, Camillo Fernandez Dinucci, tinha capacidade para cerca de 800 pessoas sentadas, e embora seu palco fosse muito acanhado, pois era utilizado na época apenas como cinema, daria para acomodar os shows.

Versos na Parede

O primeiro grande show aconteceu em maio de 1972, como parte das atividades da Semana da Agronomia: Vinícius de Moraes, Toquinho, Marília Medalha e Trio Mocotó. No Paratodos lotado, Vinícius sentado à frente de uma mesinha de metal, dessas que a gente aluga em depósitos de bebida, coberta com uma toalha branca, e sobre ela uma garrafa de whisky,  um copo e um balde de gelo. Foi emocionante!  Lembro-me deles cantando “Canto de Ossanha” (https://www.youtube.com/watch?v=z_irYegbDTE), “Berimbau”, “Samba em Prelúdio”, “Samba de Orly”… Vinícius também declamava. Inesquecível! Ao final, foram aplaudidos em pé.

Soube que depois do show todos eles foram para uma chácara aqui nas redondezas de Botucatu. Numa determinada hora, Vinícius resolveu escrever alguns versos na parede da casa. Infelizmente ficaram gravadas por lá somente algum tempo, pois o proprietário resolveu depois pintar novamente a residência. Que triste…

O segundo espetáculo trouxe para Botucatu Luiz Gonzaga, Quinteto Violado, Dominguinhos e um jovem desconhecido, ainda em início de carreira, Gonzaguinha. Dá para imaginar?

O terceiro, em setembro daquele ano, foi o de Chico Buarque e MPB4. Como a expectativa de público era imensa, o CAPS calculou que o Paratodos seria pequeno e o show foi realizado no ginásio de esportes do Botucatu Tênis Clube (BTC).

Lista para a censura

Aí vale contar um episódio: como estávamos em plena ditadura, os promotores do show eram obrigados a enviar a lista de músicas para que a censura antecipadamente apreciasse e autorizasse aquelas que podiam ser apresentadas. Na época, tínhamos uma grande amiga, Nilze Aranha, que trabalhava no Fórum de Botucatu e nos ajudava nesse processo. Não sei como, mas ela enviava uma lista, tramava seus pauzinhos e conseguia que muitas canções fossem liberadas.

Naquele dia, Chico, bem calibrado, terminou seu espetáculo cantando a proibidíssima “Apesar de Você”, com todo o BTC em pé, gritando a plenos pulmões os famosos versos que estavam censurados, em nome da “ordem política e dos bons costumes”. Não sei se a música constava da lista entregue por Nilze às autoridades, ou se Chico resolveu cantar por conta própria, assumindo os riscos, mas aquele momento foi mágico!

Depois do show, Chico e Aquiles e Magro, do MPB4, foram para uma famosa república aqui de Botucatu, a Galinheiro, de estudantes da Agronomia, onde estava acontecendo uma festa que se prolongou por toda a madrugada. Chico assinou na parede, a faculdade ficou sabendo, desceu pro Galinheiro e até um táxi com as moças da antiga Vila Nova apareceu, todas elas  querendo levá-lo para outra festa lá. Aí não deu..

Depois de Chico, ainda tivemos muitos outros shows: Caetano, Gal, Gil, Paulinho da Viola e Elton Medeiros, Elis Regina.

Cena inesquecível: Elis

Gil apresentou-se sozinho, ele e seu violão. Show com mais de três horas de duração. Lembro-me que à meia-noite ele cantou “Expresso 2222”. Inesquecível. Paulinho da Viola também foi maravilhoso e diz a história que ele gostou tanto aqui de Botucatu que resolveu permanecer por alguns dias na cidade, frequentando várias “repúblicas” e participando de rodas de samba.

Quanto a Elis, vê-la cantar no Paratodos foi uma das maiores emoções de minha vida. Na época ela tinha acabado de lançar um LP. (os mais jovens não devem conhecer o que essa sigla representa.[risos].– consultem o Google.), em que ela interpretava várias canções de João Bosco e Aldir Blanc, compositores iniciantes e desconhecidos do grande público. O grupo que a acompanhava era maravilhoso: César Camargo Mariano (teclados), Luizão (baixo) e Paulinho Braga (bateria). Lembro-me dela cantando “Agnus Sei” e “O Caçador de Esmeraldas” ambas de João e Aldir, “Oriente” (Gil) e “É com esse que eu vou”, de Pedro Caetano. Quando o show acabou e as luzes foram acesas, ainda tenho na memória a imagem de Elis extasiada, olhando o público que lotava o teatro e a aplaudia de pé. Nunca mais esquecerei essa cena.

O circuito universitário durou cerca de dois anos. Na época a Unesp ainda não havia sido criada, mas acredito que esses mesmos artistas tenham passado por outras cidades que hoje abrigam unidades de nossa Universidade: Araraquara, Bauru, São José do Rio Preto, por exemplo.  Seria interessante conhecer outros relatos dessa experiência tão marcante. Fui um privilegiado e gostaria que todos os estudantes da Unesp pudessem vivenciar as mesmas experiências que aqui relatei. Dificilmente Chico Buarque voltará a Botucatu e Paulinho da Viola não mais passará uma semana entre nós. Mas há tanto a fazer, tanto a descobrir!

Com a capilaridade que possuímos em nosso estado, podemos, através dos Comitês de Ação Cultural já existentes em nossas unidades, estabelecer uma política cultural que envolva nossos estudantes e as cidades que abrigam nossos institutos e faculdades, em uma troca enriquecedora para todos. Já tive essa experiência e sei que ela é possível. A nossos jovens deve ser dada a possibilidade de criar, de sonhar, de acreditar e não tenho dúvidas de que o resgate de nossa cidadania passa, obrigatoriamente, pela arte e pela cultura. Passada a pandemia, esse é um projeto a se dedicar e a se construir.

De volta a 1972

Paulinho se quedou paralisado, pronto pra virar geleia. Depois de longos segundos conseguiu explicar como se chegava ao Botucatu Tênis Clube. A pessoa dentro da Kombi agradeceu, fechou a janela e seguiu sua jornada. Paulinho retomou seu caminho para casa, ainda não acreditando no que tinha acontecido.

Essa história é verdadeira. Paulinho é Paulo José Amaral Serni, docente do Instituto de Ciência e Tecnologia, do câmpus da Unesp em Sorocaba. Quem lhe pediu informação foi Chico Buarque, que estava acompanhado do MPB4. Até hoje, passados 47 anos,  Paulinho arrepende-se de não ter pedido carona e conseguido uma entrada para assistir ao show. Voltou cabisbaixo para casa, a pé. E Chico foi ao BTC a bordo de uma Kombi.

PS: agradecimentos especiais a Maria Isolina Nogueira Pinto, José Roberto Nogueira Pinto, Cacilda Bonafede, Luiz Resende e André Roso, que contribuíram com informações para este texto.

José Paes de Almeida Nogueira Pinto é professor do Departamento de Produção Animal e Medicina Veterinária Preventiva, da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da Unesp, câmpus de Botucatu. é assessor da Assessoria de Comunicação e Imprensa da Unesp.

Na imagem acima, Chico Buarque de Hollanda canta com o MPB4. Foto: reprodução de vídeo.