São Paulo vacinou 3 vezes mais pessoas identificadas como brancas do que negras

De 5 de fevereiro a 10 de abril, entre aqueles que tiveram a cor/raça informada, 20,5% dos vacinados foram identificados como negros (pretos e pardos), 64,6% como brancos, 14,6% amarelos e 0,2% como indígenas. Reportagem da Agência Mural de Jornalismo das Periferias

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A vacinação contra a Covid-19 na população começou há pouco mais de dois meses na cidade de São Paulo. Desde 5 de fevereiro, 1,5 milhão de moradores receberam, pelo menos, a primeira dose da vacina. A campanha, que é dividida por grupos prioritários, foi iniciada por profissionais da saúde e depois com pessoas de 90 anos ou mais, e reduzida gradativamente até chegar à população com 68 anos de idade – a partir do último dia 26 de março.

Embora a cor/raça do vacinado nem sempre seja um critério anotado no momento da vacinação (57% dos que receberam a vacina não tinham informação a esse respeito), dados obtidos pela Lagom Data, a pedido da Agência Mural, mostram que, até o dia 10 de abril, a capital paulista tinha vacinado três vezes mais brancos do que negros.

Entre 5 de fevereiro e 10 de abril, considerando aqueles que tiveram a cor/raça informada, 20,5% dos vacinados foram identificados como negros (pretos e pardos), 64,6% como brancos, 14,6% amarelos e 0,2% como indígenas. O levantamento foi feito junto ao OpenDataSus, do Ministério da Saúde.1 / 2

Arte: Magno Borges

Em São Paulo, aproximadamente 37% dos moradores se autodeclaram negros (pretos e pardos), 60,2% se autodeclaram brancos e 2,2% se autodeclaram amarelos, de acordo com o Censo Demográfico de 2010 do IBGE.

Arte: Magno Borges

A diferença nessa proporção está ligada a alguns fatores, apontam especialistas e profissionais da saúde ouvidos pela Agência Mural. Entre as causas estão o racismo estrutural, a desigualdade e a morte precoce de negros e negras nas periferias.   

Desigualdade entre paulistanos

Segundo Roberto Jaguaribe Trindade, professor da Faculdade Santa Marcelina e médico de família e comunidade na região de Cidade Tiradentes, na zona leste de São Paulo, considerar apenas a idade cronológica como critério de prioridade na vacinação contribui para gerar mais desigualdade entre os paulistanos.

“O critério escolhido, baseado apenas na idade, acaba criando um abismo ainda maior entre áreas ricas e pobres. A expectativa de vida em áreas mais vulneráveis e predominantemente negras é muito menor do que a de áreas ricas, predominantemente brancas”, explica Trindade.

Arte: Magno Borges

Em São Paulo, a maior proporção de moradores negros e negras fica no Jardim Ângela, no extremo sul da cidade, com 60,1% da população preta ou parda. Dados de 2019, reunidos no Mapa da Desigualdade, da Rede Nossa São Paulo, também mostram que a região é onde as pessoas morrem mais cedo.

Naquele ano, a média de idade com que as pessoas morreram no distrito foi de 58,3 anos – a mais baixa dentre todos os 96 distritos da capital e abaixo das idades consideradas para o período da campanha de vacinação até aqui.

Outros distritos periféricos, como Cidade Tiradentes, na zona leste, Grajaú e Parelheiros, na zona sul, também têm média de mortes abaixo dos 60 anos de idade – e proporção da população negra acima de 56%.

As mortes por causas externas que acometem a juventude negra e a dificuldade em acessar serviços de saúde são alguns dos fatores que contribuem para que tenhamos menos idosos negros com critérios de vacinação que brancos. Eles ‘simplesmente’ não chegam até lá”, complementa o professor.

Periferias expostas

Desde o início da pandemia no país, em março do ano passado, até o dia 12 de abril, a cidade de São Paulo registrou 24.216 mortes em decorrência do novo coronavírus. 

Os distritos de Sapopemba (zona leste) e Brasilândia (zona norte), ambos na periferia da cidade, tiveram mais óbitos até o dia 1º de abril – 954 e 722 (entre confirmados e suspeitos), respectivamente. (Veja a situação de toda a cidade no Panorama da Covid-19)

Roberto Trindade avalia que, se o critério de vulnerabilidade com relação à exposição ao vírus fosse levado em conta na vacinação, a cidade de São Paulo poderia ter muitas mortes evitadas.

“Pessoas pretas e pobres são as que estão em maior exposição: são os funcionários do transporte público, de serviços, trabalhadores informais e trabalhadores dos serviços de saúde não priorizados na vacinação”, diz. E acrescenta:

“Priorizar a exposição ao risco seria uma forma mais equânime e protegeria quem realmente está perdendo a vida nesta pandemia.”

O ritmo da vacinação nas periferias reforça esse dado. Um levantamento da Folha de S.Paulo mostra que bairros das periferias tiveram uma proporção menor de idosos vacinados. Como exemplo, 36% dos moradores acima de 70 anos de Pedreira, na zona sul, tomaram a primeira dose – em Pinheiros, bairro rico da zona oeste, 91% foram imunizados.

Além de idosos até 67 anos, também foram ou estão sendo vacinados profissionais da saúde, indígenas, quilombolas, pessoas com deficiência com mais de 18 anos vivendo em instituições de longa permanência, profissionais da segurança pública e administração penitenciária e profissionais da educação a partir de 47 anos.

Distritos mais negros

Bairros das periferias concentram maior proporção de moradores negros. Jardim Ângela, na zona sul, lidera.

Passe o cursor sobre o mapa para ver os percentuais de negros e pardos em cada um dos 96 distritos da cidade de São Paulo.

Racismo sistêmico 

Se, por um lado, nas primeiras semanas de vacinação a população negra era a menos vacinada, por outro lado, é a que mais vem morrendo pela Covid-19. 

Um estudo feito pelo Instituto Pólis mostrou que, no Brasil, as populações negra (preta e parda) e indígena têm 39% mais chances de morrer por Covid-19 do que a população branca. 

Homens negros têm maior risco de morte (52%) do que homens brancos, assim como mulheres negras apresentam maior mortalidade (56%) do que mulheres brancas. O instituto propõe uma abordagem territorial e que leve em conta as desigualdades raciais para a imunização. 

Para Juarez Tadeu de Paula Xavier, professor na Unesp (Universidade Estadual Paulista), câmpus de Bauru, essa discrepância está associada ao chamado “racismo sistêmico”.

“Os grupos que sofrem a violência física e intangível são os grupos que têm maior índice de morbidade e, portanto, menor expectativa de vida. Isso tem chamado atenção, pois quanto mais alta é a faixa etária, mais branca ela vai ficando na sociedade racista”, comenta.

De acordo com ele, a crise sanitária é mais agravada para as populações mais pobres que moram em situações vulneráveis. Além disso, elas tendem a ter um conjunto de comorbidades, como pressão alta, diabetes e outras doenças causadas pela desigualdade estrutural.

“Uma população que sofre a brutalidade do racismo vive num estado de exceção segregada, tem os impactos brutais de uma crise sanitária, agravada pelas desigualdades, tem maior índice de infecção e, quando infectada, tem menor resistência em função das comorbidades”. 

Sem dados, sem políticas públicas  

Os dados obtidos para esta reportagem são do Ministério da Saúde. Procurada, a Prefeitura de São Paulo não respondeu até a publicação desta reportagem. 

Também solicitamos via LAI (Lei de Acesso à Informação) os dados da imunização dos idosos na cidade. No entanto, a gestão diz não poder informar. 

“A Covisa (Coordenadoria de Vigilância em Saúde) teria de despender de trabalho adicional, o que neste momento comprometeria a rotina de trabalho, frente à intensa demanda decorrente da vacinação contra a Covid-19”, disse o órgão, sobre a impossibilidade de informar “o número de idosos vacinados segundo distrito administrativo e cor/raça”.

Sobre os dados do Ministério da Saúde, ainda há outras complicações. A coleta das informações de quem é vacinado é feita manualmente, em um formulário de papel. Por vezes, os servidores encarregados pulam perguntas para acelerar o processo -, o que pode ser uma das explicações para o alto número de vacinados sem essa informação.

Para Juarez, a falta de dados mais precisos sobre o pertencimento étnico-racial dos vacinados, bem como dos atingidos pela doença, é extremamente sério, pois impacta na criação de políticas públicas e medidas para proteger as populações que estão mais expostas.

“O ideal seria que nós tivéssemos esses dados para poder formular políticas públicas mais concretas que pudessem atender às demandas que estão sendo observadas nesse momento de pandemia e as suas implicações em relação à população negra. Não ter esses dados é extremamente sério e vai criando um vácuo na elaboração das políticas públicas.”

*Reportagem feita em parceria com o Lagom Data, estúdio de inteligência de dados. 

Reportagem publicada originalmente pela Agência Mural de Jornalismo das Periferias e reproduzida por meio de parceria de conteúdo com o Jornal da Unesp.

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