Professora do Instituto de Química de Araraquara da Unesp, Vanderlan Bolzani vem construindo uma trajetória extremamente bem-sucedida na academia, que incluiu distinções como o prêmio Distinguished Woman in Chemistry, conferido pela Sociedade Química americana e pela União Internacional de Química Pura e Aplicada (IUPAC), destacando-se como a primeira latino-americana a receber a láurea. E justamente por ter alcançado este reconhecimento, ela conhece bem os labirintos e obstáculos que podem dificultar, ou até mesmo impedir, que mulheres possam explorar plenamente seu potencial nas carreiras científicas. Esta consciência a levou a defender a criação de um prêmio para destacar os feitos de pesquisadoras brasileiras. Ofertado pela Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), o Prêmio Carolina Bori Ciência & Mulher chegou a sua quarta edição em 2022 com o tema “Meninas na Ciência”. As nove vencedoras foram anunciadas em janeiro e premiadas em fevereiro.
Até que o Carolina Bori Ciência & Mulher fosse instituído, em 2019, nenhuma das premiações ofertadas pela SBPC homenageava, em seu título, uma cientista mulher. Em 2022, o total de inscritas, oriundas do Ensino Médio e da graduação, chegou a 446. “Um número fascinante”, diz Bolzani. “As premiações são importantes para combater preconceitos em relação à atuação de mulheres nas hard science.” Não por acaso, mais de um terço das inscritas da graduação foram do campo das Engenharias, Exatas e Ciências da Terra. “Premiar é uma forma de mostrar que mulheres são e podem ser boas físicas, boas químicas, boas engenheiras”, diz Bolzani.
O combate a estereótipos de gênero torna-se especialmente importante num momento em que as mulheres já são maioria nos programas de pós-graduação do Brasil: segundo a Capes, 54,2% dos matriculados no stricto sensu são do gênero feminino. Elas correspondem a 58% dos beneficiários de bolsas, também. Esse equilíbrio, no entanto, fica apenas no campo da formação. Quando o foco de análise de igualdade de gênero se desloca para a carreira docente e a ocupação de cargos de liderança acadêmica, as mudanças caminham a passos muito lentos. Um comparativo feito pelo Laboratório de Estudos sobre Educação Superior (LEES) da Unicamp mostra que, enquanto 51% dos títulos de doutorado entre 1996 e 2014 foram obtidos por mulheres, o número de mulheres docentes nas universidades cresceu apenas 1%, de 44,5% para 45,5%. Esse fenômeno, de escasseamento das quantidades de mulheres à medida que se avança na carreira, está sendo estudado e tem nome: efeito tesoura (veja gráfico abaixo). O efeito tesoura foi o tema central das discussões do seminário “Mulheres na Ciência e Tecnologia: Repensando Gênero e Ciência”, promovido em 6 de fevereiro pelo CNPq (que, em 72 anos de existência, nunca teve uma mulher como presidente).
Segundo a matemática Adriana Neumann, docente da Universidade Federal do Rio Grande Sul (UFRGS) e vencedora do Prêmio L’Oréal-UNESCO para mulheres em ciência de 2016, o efeito tesoura se dá por fatores que vão além das oportunidades mais evidentes de permanência nas instituições de ensino, como bolsas. Esse efeito toca em barreiras invisíveis impostas pela desigualdade de gênero, como assédio e parentalidade.
“Me tornei mãe em 2015. Em 2016, quando ganhei o prêmio L’Oréal, foi pelo que fiz antes da maternidade. Comecei a achar que isso era um problema individual, mas não, é coletivo. Os efeitos da maternidade afetam as mulheres. Isso não acontece com os homens”, diz Neumann, que faz parte do núcleo central do movimento Parent in Science, de discussão da parentalidade dentro do universo da ciência do Brasil, que foi finalista do Prêmio Nature – Mulheres Inspiradoras na Ciência, de 2021. Foi o movimento que conseguiu, em 2021, que o CNPq criasse um espaço no currículo Lattes para registrar o período de licença-maternidade.
“Mas não basta que a informação esteja no Lattes, ela precisa se tornar uma regra institucional”, diz a bióloga Fernanda Staniscuaski, docente da UFRGS, fundadora do Parent in Science. “Os editais que avaliam produtividade devem considerar a maternidade nas avaliações. Por exemplo, ampliando o tempo de currículo a ser avaliado para quem teve filho de cinco para sete anos. Ou adotar fator de correção na avaliação dos currículos, tendo em vista a maternidade.” Segundo Staniscuaski, o combate à desigualdade de gênero na carreira acadêmica passa pela adoção de medidas compensatórias nos processos de seleção, de contratação e de cadastro de docentes. Esse foi o assunto, aliás, de uma carta enviada pelo Parent in Science à Plataforma Sucupira em janeiro de 2023: a necessidade de corrigir os problemas no sistema nacional de informações da pós-graduação do Brasil de docentes que não conseguem se cadastrar ou se recadastrar nos programas por causa de queda de produtividade durante a pausa para a maternidade.
Outro problema que merece atenção é a relação dos programas de pós-graduação com as estudantes que se tornam mães, pois aumenta o tempo de titulação. “Na nossa sociedade, quem cuida dos filhos é a mãe, seja na Academia ou em qualquer outro setor da sociedade. A obrigação recai inteira sobre as mulheres. A produtividade cai por causa das tarefas de cuidado. E há o ambiente de trabalho, claro, os preconceitos: se assume que a mulher que se torna mãe perde o comprometimento com o trabalho. Esses são vieses que os homens nunca vão sentir. A sobrecarga de trabalho sobre as mulheres é cultural”, diz Staniscuaski.
Para quem duvida dos efeitos da sobrecarga de trabalho sobre a produção científica das mulheres, basta olhar para os dados: durante o isolamento imposto pela pandemia de Covid-19, em 2020, apenas 47% das cientistas mulheres com filhos estavam conseguindo submeter os artigos científicos que haviam planejado antes do início da pandemia, contra 76% dos cientistas homens sem filhos. Os dados são de uma pesquisa feita com mais de três mil acadêmicos pelo Parent in Science, publicados em 2021 na Frontiers in Psychology.
Os efeitos desse descompasso evidente na produção entre os gêneros certamente se refletirá nas futuras contratações de docentes, caso não haja mudanças na avaliação. Os modos atuais de avaliação são “pouco espertos por parte do sistema”, diz Neumann. “Isso representa uma perda do investimento de todas as bolsas, da iniciação científica ao pós-doutorado, por uma pausa. Uma pausa que joga a mulher para fora do sistema.”
Recorte racial
Entre as docentes do gênero feminino, menos de 5% são negras, segundo o levantamento Open Box da Ciência, divulgado pelo Instituto Serrapilheira em 2020. A distribuição de bolsas também é desigual: só 2,6% são negras. As brancas ainda são maioria, 12,3%. Os dados do Parent in Science também apontam para um recorte racial dentro da desigualdade de gênero: cientistas negras e mães foram o grupo mais impactado pela queda de produtividade durante o isolamento na pandemia: 79% delas relataram dificuldades de trabalhar remotamente diante do acúmulo de tarefas de cuidado com os filhos e de trabalho doméstico.
“As dificuldades começam antes da carreira acadêmica”, diz a biomédica Jaqueline Goes, em fala no seminário do CNPq. Goes coordenou a equipe responsável por sequenciar o genoma do vírus SARS-CoV-2 apenas 48 horas após a confirmação do primeiro caso de Covid-19 no Brasil. “Demorei para acolher meu papel de representatividade da mulher negra. Recebi retornos de meninas que nunca pensaram em ser cientistas, minha foto está em escolas, fui convidada para a Equipe Halo da ONU de divulgação científica”, conta Goes, que recentemente foi modelo para uma boneca Barbie negra cientista e foi listada como mulher de sucesso pela Forbes.
Filha de funcionários públicos, Goes teve família estável e estímulo aos estudos em sua formação básica na Bahia. Esses fatores podem ser decisivos numa conjuntura maior. Um artigo de 1965 da Science, intitulado “Por que tão poucas?”, atribuía às poucas mulheres que chegavam à docência acadêmica uma “excepcional capacidade e um padrão pouco comum de socialização”. O que seria esse “padrão pouco comum”? Segundo Mercedes Bustamante, presidente da Capes, são “professores, maridos, ambientes que favorecem os talentos. Daí vem a necessidade de estimular esses fatores favoráveis”.
“Estamos falando de um teto de vidro, barreiras invisíveis que impedem que minorias subam os degraus da escada acadêmica ou corporativa, independentemente de sua qualificação e realizações”, diz Bustamante. Goes, por exemplo, afirma ter furado o teto de vidro por causa de sua orientadora, que a despertou para a necessidade de uma atitude de alavancamento de carreiras femininas. “As mulheres são invisibilizadas no ambiente acadêmico”, diz Goes, que afirma ter adquirido essa percepção ao longo de seu trabalho nos laboratórios das universidades: “Um dos fenômenos que mais me atingiu foi o efeito Matilda”, conta a cientista, em referência ao fenômeno, mapeado por estudos de gênero, de quando a pesquisadora se vê na situação de ter seu trabalho explicado ou usurpado por homens. “Eu sofri isso na minha carreira. A consciência do que está acontecendo não vem no momento em que acontece”, conta. “A estrutura nos fere e faz com que não acreditemos no nosso próprio reconhecimento. Demoramos para entender que as homenagens e prêmios que recebemos são importantes para nosso empoderamento.”
Políticas de oportunidade
“É preciso mudar a cultura para as mulheres ocuparem os topos. Para que se tornem reitoras, presidentes de conselhos”, diz Vanderlan Bolzani, ela mesma uma exceção: foi presidente da Sociedade Brasileira de Química (SBQ), de 2008 a 2010. “O cérebro de meninos e meninas é mais do que suficiente para aprender e exercer as ciências”, diz Bolzani sobre o viés de gênero que ainda persiste nas ciências STEM (ciências, tecnologia, engenharia e matemática). As premiações voltadas a mulheres, segundo ela, não são apenas um reconhecimento, mas também uma forma de atrair visibilidade para a atuação de mulheres nestes campos da ciência.
A discussão sobre os vieses de gênero e o impacto que eles podem causar na formação de mulheres é tema do projeto MAES (Matemática e Estatística das Gurias), fundado por Adriana Neumann, uma rede de colaboração de pesquisadoras de diversas universidades, que debatem gênero e sexualidade no mundo acadêmico e oportunidades de carreira para mulheres cientistas. Os debates ocorrem em lives no YouTube e ficam gravados no canal Matemática e Estatística das Gurias. Para Adriana, a discussão de vieses de gênero dentro da ciência é importante na formação de futuras pesquisadoras. “Por muito tempo senti uma dor que eu não entendia. Só fui entender anos depois”, conta.
Segundo Fernanda Staniscuaski, uma medida urgente em prol da equidade de gênero nas ciências são políticas de reentrada da mulher na carreira acadêmica depois da maternidade. “É essencial que tenhamos, a exemplo de outros países, editais de reentrada de carreira, com aporte financeiro para que a mulher retorne à carreira depois da gravidez.”
Por enquanto, os projetos de apoio a cientistas mães correm fora da esfera pública. O Parent in Science, por exemplo, está com o programa Apoie, de doações por mensalidade, para ajudar no provimento de alunas-mães na universidade. “Se pra uma professora com estabilidade no cargo é difícil, imagine para as alunas”, diz Adriana Neumann. “Muitas mulheres são impedidas de seguir na ciência no nível mais alto e é preciso fazer muito mais para evitar e entender esse desperdício de talento.”
Ilustrações: Eduardo Nunes. Publicado originalmente em Unesp Ciência número 17.