Moradora de Americanópolis, zona sul de São Paulo, Efigênia Silvestre tinha apenas três anos quando o voto feminino foi autorizado no Brasil em 1932. Aos 93 anos, ela cresceu vendo as mudanças nas eleições ao longo de décadas, mas ainda sente falta de mais participação. “Está faltando [mulher na política] há muito tempo. Mulher negra, mulher de periferia”, declara.
O voto feminino completou 90 anos em 2022. Foi oficializado pelo Decreto nº 21.076, de 24 de fevereiro de 1932, que incluiu pela primeira vez a participação da mulher na política.
Com novas eleições em curso, a Agência Mural ouviu eleitoras das periferias de São Paulo de faixas etárias distintas sobre os avanços e o que falta para garantir mais presença delas na disputa, nos plenários e nas cadeiras que comandam as decisões sobre políticas públicas.
Efigênia, que abre essa reportagem, viu boa parte dessas transformações. Passou a votar aos 21 anos – idade mínima permitida pela lei na época –, quando o título de eleitor era tirado na prefeitura. Vivia em Piranga, no interior de Minas Gerais, e votou em uma eleição no final dos anos 1950.
Ela conta que a propaganda política era feita por um carro que transitava pelas ruas e anunciava os candidatos. O voto ocorria em praça pública, ao redor do coreto e havia “uma fila pra homem e outra pra mulher.”
Em tempos de ataques às urnas eletrônicas que tem garantido o resultado no mesmo dia da votação, ela lembra que nas primeira vez que votou a apuração levava seis dias, e a divulgação do eleito era feita numa espécie de comício.
Ela também passou pela ditadura militar (de 1964 a 1985) e pelas manifestações de rua, como as Diretas Já, na década de 1980. Além disso, Efigênia presenciou a transição do voto em papel para o eletrônico (na década de 1990). “Achava graça [do novo sistema]”, conta.
Das situações mais marcantes, Efigênia cita a eleição de mulheres prefeitas, como Luiza Erundina (pelo PT, na época, mandato de 1989 a 1992) e Marta Suplicy (PT, mandato de 2001 a 2004), e a chegada de uma mulher à presidência, Dilma Rousseff (PT), em 2010.
Engajamento desde cedo
Efigênia se diz engajada na política. Da infância à adolescência convivia com políticos que frequentavam a casa dela em Minas Gerais. Depois casou-se com Olírio Marçal (falecido há uns 20 anos), também de família de políticos. As discussões sobre o assunto eram comuns entre as moças dessa época, comenta.
Ela vem de um tempo em que as mulheres eram mortas por se envolverem em política. Diz que houve uma mulher assassinada na cidade natal que disputava um cargo político.
Um cenário de violência institucional que ainda persiste, como o caso de assédio que a deputada estadual Isa Penna (PSOL) sofreu do ex-deputado estadual Fernando Cury, em dezembro de 2020. Ou a morte da vereadora Marielle Franco (PSOL), em 2018, no Rio de Janeiro.
Apesar do desejo de participar das eleições, a mãe de Efigênia, Maria Tranquilina Conceição de Sousa (falecida há mais de 40 anos), se contentava com os bastidores, fazendo a “comeria”, a refeição para os visitantes. Efigênia saiu de Piranga aos 42 anos e também trabalhou como cozinheira na casa de pessoas inseridas na política.
Conforme conta, havia muitas mulheres votantes na família, exceto a mãe. Como não sabia ler e escrever, o esposo não deixava que ela votasse. Além disso, a lei da época não permitia o exercício do voto para analfabetos, direito adquirido em 1985 por meio da Emenda Constitucional nº 25. Hoje, é permitido, porém não obrigatório.
A experiência do voto levou Efigênia a valorizar o ato a ponto de exercê-lo até os 80 anos, mesmo com a lei atual que obriga a votação até os 70 anos. Além disso, incentivou os seis filhos a votarem, em especial as quatro mulheres.
A preferência por votar em mulheres foi uma das características dela nesse tempo e diz que é um orgulho quando vê uma delas chegando ao Congresso. “Eu olho e falo ‘Nossa Senhora de Aparecida, que ajuda!’.”
Voto em mulheres
Mas será que votar automaticamente em mulheres resolve? “Ela pode ser mulher e, no entanto, ter um plano que não se adequa ao que eu penso ou imagino para o futuro”, afirma a analista de seguros Sueli Aparecida dos Santos Sanches, 47, moradora do Parque São Lucas, na zona leste da capital.
Apesar disso, ela concorda que a mulher tem um olhar mais sensível às suas demandas.
A vontade de votar não veio naturalmente para ela. “Precisava [votar] para fazer uma série de coisas, se quisesse prestar concurso, entrar em uma faculdade”, diz. Mas hoje vê como positiva a participação de mulheres na política.
Hoje [a mulher] não aceita mais ser subestimada ou desrespeitada e permanecer calada
Sueli Aparecida dos Santos, 47, analista de seguros
Ela adverte que essa emancipação veio acompanhada de muita cobrança, aumento na sobrecarga e desigualdades trabalhistas devido ao machismo estrutural e velado. “O salário não é igual e ainda continuam associando a mulher ao deveres da casa, a educação dos filhos”, desabafa.
Problemática que apresenta relação direta com a política, pois é por meio das leis e de políticas públicas que as empresas são obrigadas a oferecerem melhores condições de trabalho às mulheres, como salários justos, incentivo na contratação, licença maternidade e a manutenção da mulher no mercado de trabalho após tornar-se mãe.
De acordo com informações do TSE (Supremo Tribunal Eleitoral) referentes a 2022, existem mais de 156 milhões de pessoas aptas a votar no Brasil, sendo 53% do gênero feminino. Em São Paulo, são 54% dos 9 milhões de moradores aptos a votar.
Em contrapartida, do total de filiados aos partidos, apenas 46% são mulheres, e concorrendo às eleições deste ano, somente 34% do total dos candidatos, nos dados gerais. No estado de São Paulo, não é muito diferente, 33% dos candidatos são do gênero feminino, e 47% filiadas a partidos.
Sueli cita a necessidade de estímulo por parte do poder público e dos partidos para trazerem as mulheres para perto da política. Para ela, falta informações de como se filiar, concorrer ou contribuir de outras formas, em especial para quem é mais pobre.
Ela vê que muitas mulheres são inseridas nos partidos para fazer número e isso não reflete em representatividade. Por isso, aponta a necessidade de participação ativa e posicionamento, sobretudo das periféricas, nas urnas, cobrando as promessas e ocupando cargos políticos.
“Os ambientes já são muito ocupados pela parte da elite feminina que acaba lutando por demandas a favor delas”, diz. “Se ela [candidata] não sabe pegar um ônibus, para que ela vai lutar para ter mais condições no trem ou no ônibus? ela não vive a minha realidade.”
Primeira votação
Já a estudante e operadora de logística Geovana Alves Rocha, 19, moradora do Parque Pirajussara, em Embu das Artes, na Grande São Paulo, sonha desde a infância em participar da vida política. “Gosto muito desse meio da política. Mas são poucas mulheres que participam. Espero que se envolvam mais.”
Para ela, um dos principais pontos que precisam avançar estão relacionados às oportunidades, em especial para jovens, como a dificuldade para entrar no mercado de trabalho.
“Falta muito oportunidade para mulheres jovens, para trabalhar mesmo. Na minha empresa, por exemplo, só tem eu com a idade de 19 para 20 anos”, diz.
Além disso, aponta que o voto pode contribuir para vencer barreiras como o desrespeito. Ela conta que já passou por problemas em diversos ambientes, onde foi constrangida por conta da roupa que vestia.
Passou por situações de insegurança por ser mulher e presenciou tratamento diferenciado entre homens e mulheres no ambiente de trabalho.
Geovana entende o voto feminino como uma possibilidade de mudança no cenário dos direitos para a mulher.“A gente passa por coisas que eles [homens] não passam. A mulher tem que ter o direito de poder se posicionar e escolher quem ela quer que a represente.”
Reportagem publicada originalmente pela Agência Mural de Jornalismo das Periferias e reproduzida por meio de parceria de conteúdo com o Jornal da Unesp.
Fotos acima: @Jacqueline Maria da Silva/Agência Mural