Um dos legados da pandemia de covid-19, no aspecto da ciência, é uma crescente preocupação de que episódios semelhantes possam se tornar mais frequentes, em parte devido ao impacto das mudanças climáticas que já se fazem sentir sobre a flora e a fauna. Estudos recentes na área da ecologia de doenças estão procurando compreender de que forma mudanças na interação entre habitats, vírus e animais podem resultar em novas e mais poderosas ameaças à saúde humana nas próximas décadas.
Um desses estudos, que envolveu a participação de pesquisadores da Unesp, procurou identificar quais podem, no futuro, ser as áreas de concentração de 35 espécies de morcegos hospedeiros de coronavírus semelhantes ao SARS-CoV, tendo em vista as projeções climáticas estabelecidas pelo último relatório do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC). O trabalho, que contou também com a participação de pesquisadores da China, Itália e Estados Unidos, foi publicado na revista Proceedings of the Royal Society B
Possíveis 15 mil eventos de transmissão de novos vírus
Em abril deste ano, um artigo publicado pela revista Nature aqueceu o debate sobre o tema ao estimar que, nos próximos 50 anos, as mudanças no clima e no uso da terra possam resultar em mais de 15 mil eventos de transmissão de novos vírus entre diferentes espécies de mamíferos. Isso acontece porque, à medida que essas espécies precisam se deslocar em busca de temperaturas mais amenas ou em decorrência da perda do seu habitat, encontros inéditos com outras espécies acabam ocorrendo. Ao dividirem o mesmo espaço e interagirem entre si, as espécies de mamíferos também vão transmitir vírus e outros microrganismos umas às outras. Segundo os autores, existem atualmente cerca de 10 mil vírus com a capacidade de infectar seres humanos circulam entre mamíferos. Embora muitos desses microrganismos infectem apenas animais, e que não haja certeza de que o contágio em humanos possa necessariamente resultar em doenças, casos de transmissão zoonótica são amplamente conhecidos na história, sendo a raiva um dos exemplos mais tristemente célebres.
Diante de um cenário que se anuncia como favorável para a transmissão de vírus e para o surgimento de novas doenças para os seres humanos, são necessários estudos para estimar quais regiões do planeta são mais propícias para a “fuga” do vírus de seu hospedeiro animal para o homem, um processo que os cientistas chamam de spillover.
Morcegos respondem por 20% das espécies de mamíferos
Nos esforços para mapear o futuro das relações entre humanos e vírus, os morcegos ocupam um lugar estratégico. Suas 1.435 espécies descritas equivalem a aproximadamente 20% das 6.490 espécies de mamíferos conhecidas. Tamanha diversidade contribui para que esses animais apresentem grande diversidade viral, hospedando inclusive alguns vírus que são nocivos aos seres humanos. É o caso do sub-gênero Sarbecovirus, do qual fazem parte, por exemplo, o SARS-CoV-2, causador da Covid-19, e o SARS-CoV original, que em 2003 causou o surto de SARS na Ásia.
Morcegos foram justamente o objeto dos estudos de Renata Muylaert, que é doutora em Ecologia e Biodiversidade pelo Instituto de Biociências da Unesp, câmpus de Rio Claro, e que atualmente realiza pós-doutorado na Massey University, da Nova Zelândia. Partindo de dados do presente, ela procurou identificar quais poderão ser as áreas onde futuramente o spillover entre humanos e morcegos venha a ocorrer.
Muylaert, que em sua carreira vem se aprofundando no estudo da ecologia de doenças, explica que, para construir um modelo que alcance um bom desempenho, é fundamental que ele consiga predizer onde as populações de morcegos estão hoje. “É preciso levar em conta fatores importantes como o clima ideal, a disponibilidade de habitat de floresta e a existência de cavernas ou áreas rochosas, onde muitos deles vivem”, diz ela.
Os resultados do trabalho projetaram regiões do globo que seriam consideradas hotspots [ver imagem abaixo], ou seja, que indiquem que nestas áreas há uma altíssima diversidade de morcegos que podem ser hospedeiros do vírus similar aos que causaram a pandemia de Covid-19 ou o surto de SARS.
Entre os resultados, as projeções do artigo indicam Myanmar (onde estão 13 das 35 espécies avaliadas) e China, Laos, Vietnã e Tailândia (onde estão 12 espécies) como os países mais críticos para um possível futuro surto. A Europa também aparece em destaque no mapa, mas com menos espécies hospedeiras em potenciais. Além disso, a projeção para o futuro é que, com as mudanças climáticas, o número destas espécies no Velho Continente diminua ainda mais, principalmente se não houver ações preventivas voltadas para a sua preservação.
Embora a presença de hospedeiros seja um fator essencial para que uma doença de origem zoonótica surja e se espalhe, Muylaert lembra que existem outros fatores que contribuem para o risco de surgimento e transmissão de um novo patógeno. “Uma vez que o ser humano passa a transmitir para outros humanos, como o que aconteceu com a COVID-19 e tantas outras doenças zoonóticas, é possível que ele se torne o hospedeiro com risco de transmissão mais elevado”, explica a ecóloga, lembrando que nem sempre os hospedeiros, ainda que naturais, têm a capacidade de manter um vírus circulando em taxas preocupantes.
Já estamos no pandemioceno?
Segundo Maurício Vancine, doutorando do Laboratório de Ecologia Espacial e Conservação (LEEC), da Unesp, no câmpus de Rio Claro, que também colaborou com o artigo, a região do sudeste asiático desperta preocupação porque, além de rica em hotspots, é densamente povoada. Laos, Vietnã, Tailândia e Myanmar somam cerca de 230 milhões de habitantes, enquanto o sul e o sudeste da China figuram entre as regiões mais populosas do país. Vancine lembra que foram registradas ocorrências históricas de gripe suína e aviária nessa parte do globo. “Locais onde se pode encontrar hospedeiros e vírus, mas com pouca população, não despertariam preocupação. Mas, se existem esses três fatores sobrepostos, aí mora um problema. Nessas regiões há uma sobreposição entre os hospedeiros, o vírus e as pessoas”, destaca.
Em uma época em que a mudança climática e a devastação de florestas devem cada vez mais estimular a migração de espécies para ambientes mais frescos e seguros, a sobreposição de espécies em um mesmo local e, por consequência, a troca de microrganismos entre elas será cada vez mais frequente. Renata Muylaert explica que alguns pesquisadores já aplicam o termo Pandemiceno para esta nossa época.
A palavra é uma referência – e de certa forma, a proposta de um capítulo posterior – ao chamado Antropoceno, uma nova era geológica caracterizada pela dimensão do impacto da atividade humana a ponto de causar alterações em escala planetária que colocam em risco a própria existência humana. “Desde que comecei minhas pesquisas na Unesp, venho utilizando o termo Antropoceno, mesmo quando ainda gerava resistências”, diz. “Agora vemos algo ainda mais alarmante: a possibilidade real de que mais pandemias venham a surgir por conta de mudanças globais por consequência de ações humanas, tanto ligadas ao clima quanto ao uso da terra.”
Com a provável emergência de doenças e viroses decorrentes de hospedeiros animais, estudos como este capazes de projetar populações de hospedeiros podem ser de grande utilidade para embasar políticas para criação de novas áreas protegidas e de conservação de habitats, de forma a manter os animais em seus ambientes naturais, e também de vigilância sanitária, permitindo a prevenção ou a resposta rápida a surtos epidêmicos, ou mesmo ações de mitigação de mudanças climáticas.
“Além disso, conforme mais dados vão sendo coletados por virologistas e biólogos em campo, podemos atualizar esses modelos facilmente, pois criamos tudo com uma filosofia de Open Data e Open Science”, diz Muylaert. A ecóloga ressalta que o Brasil é um país rico em biodiversidade e, consequentemente, em diversidade viral. E que, embora não existam morcegos hospedeiros do SARS-CoV especificamente, já foram identificados por aqui animais com outras espécies de coronavírus. “Há muitas possibilidades de aplicarmos o método do nosso artigo para o contexto e os vírus diferentes que existem no Brasil. Há muito trabalho a fazer”, afirma.
Foto acima: Morcegos-ferradura (Rhinolophus ferrumequinum), cuja distribuição abrange a Europa, norte da África, Ásia Central e Ásia Oriental, descansam em caverna. (DepositPhotos).