“A não especialização é o segredo do sucesso”

Judoca e pesquisador do judô, Antônio Carlos Tavares Júnior critica a alta carga de exercícios e competições aplicada às categorias infantis, e defende modelo de países como Japão e França, onde a especialização esportiva ocorre mais tarde. “Estudos não mostram que vencer competições em criança seja indicativo de ganhar medalhas quando adulto”, diz.

O Brasil ocupa o quinto lugar entre as principais potências olímpicas no judô, tendo conquistado 28 medalhas desde 1972. As conquistas do país no tatame espelham a popularidade do esporte no país, onde se estima que seja praticado por dois milhões de pessoas. E o interesse alcança também a academia brasileira, com um expressivo número de estudos e pesquisas sendo conduzidos em torno do caminho suave. Um desses estudiosos é Antônio Carlos Tavares Júnior, doutor no Programa de Pós-graduação em Ciências da Motricidade do Instituto de Biociências da Unesp, câmpus de Bauru, tendo publicado quatro livros e quase trinta artigos sobre o tema.

A vida de Antônio Carlos Tavares Júnior evoluiu em torno do judô. Começou a praticar o esporte aos cinco anos de idade, e graças à dedicação aos treinos migrou para as categorias superiores, alcançando bons resultados em nível estadual e nacional. Posteriormente, tornou-se professor, treinador de atletas e, já na graduação em educação física na Unesp de Rio Claro, passou a se debruçar sobre a arte marcial japonesa como objeto de pesquisa, ainda em 2003. Atualmente, ele é pesquisador ligado ao Laboratório de Pesquisa em Fisiologia Aplicada ao Treinamento  Esportivo (FITES), no câmpus da Unesp em Bauru, sob a coordenação do professor Júlio Wilson dos Santos.

Em entrevista ao Jornal da Unesp, ele conta dos resultados de sua pesquisa de doutorado, que o levou a observar diretamente o treinamento em judô oferecido no Japão, a principal referência do esporte, e também a analisar os sistemas de treinamento adotados em outros países que se destacam neste esporte, como a França. E diz que o Brasil segue uma abordagem já superada, que enfatiza a especialização esportiva dos jovens em uma idade demasiado precoce.

Por que você se interessou em pesquisar o treinamento de judô para as categorias infantis?

Sou um ex-atleta. Comecei aos 5 anos no judô. Embora tenha alcançado um certo sucesso em nível estadual e nacional, quando cheguei à fase adulta já tinha acumulado muitas lesões durante o processo de treinamento. Quando fui para a Faculdade de Educação Física, a parte da sistematização do treinamento em judô me chamou muito a atenção. Por isso, sempre quis estudar essas questões. O que é o melhor para o treinamento? O que realmente seria o correto para se aplicar em cada faixa etária e em cada fase do treinamento, de acordo com a evolução do atleta?

Então você, antes mesmo de pesquisar, já associava a metodologia de treinamento a ocorrência de lesões?

Sim. E hoje, tendo feito a pesquisa, tenho certeza. As atuais práticas de treinamento, com o tempo, geram um acúmulo de lesões. Então, aplicar às crianças os mesmos métodos de treinamento dos adultos é algo que não deveria ser aceito, nem permitido.

Por exemplo: a gente sabe que, em média, o atleta de judô vai alcançar o seu ápice de rendimento ali pelos 26 anos. Isso é uma média, alguns chegam antes, outros, pouco depois. Fazer com que um moleque de 10, 11, 12 anos seja campeão não vai garantir que ele será campeão aos 26. Muito pelo contrário: estudos mostram que menos de 1% dos atletas que se tornam campeões paulistas na categoria infantil  vão medalhar depois no campeonato paulista sênior, ou no paulista adulto. Não há nenhuma relação entre ser um campeão infantil e ser um campeão adulto. Embora as pessoas acreditem que essa relação exista.

Inclusive, parece que é o contrário: aqueles que se especializam mais tarde, após a puberdade, é que vão conseguir alcançar o esporte de alto rendimento.

Isso acontece também em outros países?

Sim. Aliás, inclusive em países que são potências olímpicas do judô. E nesses países existem diferenças nos treinamentos oferecidos às crianças, e nas regras usadas nas competições para essas categorias.

Pude constatar isso porque, em 2019, a Confederação Brasileira de Judô fez um processo seletivo para mandar alguns treinadores brasileiros de judô ao Japão, para fazerem um estágio por lá. Eu era professor de judô, atuando para a prefeitura de Vinhedo, e fui um dos selecionados. No Japão, vi que as regras de competição das categorias de base eram diferentes daquelas adotadas nas competições de adultos. Daí, pensei: “tem uma coisa aí. Eles não se preocupam só com a questão do treinamento, mas também com a própria competição”.

Para mim, fez muito sentido. O que norteia o processo de preparação para uma competição é a regra adotada. Se as regras das competições das crianças forem iguais às dos adultos, então essas regras vão orientar também a preparação das crianças. Se [algum golpe] for proibido, não vai fazer parte do treinamento, porque será proibido na hora da competição.

Será que essas diferenças existem em mais países? Foi exatamente esta a indagação que adotei na minha tese de doutorado e que busquei investigar em outras potências olímpicas do judô.

Quais potências?

A maior potência é o Japão, muito à frente das outras. Em segundo lugar, a França, em terceiro, a Rússia, em quarto, a Coreia, e em quinto, o Brasil, se a gente fizer uma análise longitudinal (a partir dos resultados das olimpíadas). A França, assim como o Japão, também possui regras específicas para as categorias de base. São regras muito diferentes daquelas utilizadas nas competições adultas. Inclusive existe um departamento pedagógico específico para cuidar dessas categorias. E a Rússia também adota para as crianças regras que são diferentes daquelas utilizadas nas categorias adultas. Isso foi um achado da pesquisa.

E a pesquisa mostrou diferenças também em outros esportes. Por exemplo, na Alemanha decidiram proibir a cabeçada nas categorias de base do futebol, para evitar os choques de cabeça. E acontece também em esportes que são menos tradicionais no Brasil. No futebol americano e  no rugby existem regras especiais para crianças, a fim de evitar jogadas mais ríspidas, que poderiam causar alguma lesão.

Aqui no Brasil é bem consolidada essa visão de que o craque é craque desde cedo. Por exemplo, os fãs de futebol compartilham vídeos do Ronaldinho Gaúcho quando criança, e ele já era excepcional.

Exato. Por exemplo, o Thiago Camilo, que é um judoca bastante conhecido no Brasil, era craque no judô aos 5 anos de idade e foi medalhista olímpico depois. Mas, quando a gente se apega a essa ideia, está olhando, talvez, para as exceções, não para a regra. Quantos jogadores na base foram tão bons quanto o Ronaldinho Gaúcho, mas não viraram o Ronaldinho Gaúcho no futebol adulto? Esse é o principal ponto que a gente deve abordar.

De qualquer jeito, haverá um ou outro que vai virar esse craque. Agora, trata-se de uma exceção, não  da regra. A gente usa, muitas vezes, uma exceção para confirmar a regra como um todo. No caso do esporte, é muito isso, não tem dúvida. Então, o fato de que quem se destacar nas categorias de base não ser, necessariamente, quem vai se projetar lá na frente é uma característica do esporte, não apenas do judô. E essa ideia de que o craque vem desde as divisões de base está ligada ao fenômeno da especialização esportiva precoce.

O que é isso?

A especialização esportiva precoce ocorre quando o indivíduo desde cedo é exposto a altas cargas de treinamento, frequência elevada, volume elevado. Além de treinar muito, ele é exposto a competições desde muito cedo, e submetido a cobranças físicas, fisiológicas e psicológicas, que são inerentes a um adulto. O adulto estaria preparado para suportar esse tipo de carga. Uma criança não está. Por isso usamos a palavra precoce.

A especialização esportiva é algo natural. Quando ela deve ocorrer? Quando o indivíduo já passou da puberdade, já atingiu uma maturação neural, hormonal, física e cognitiva, mais adequada para suportar uma maior carga de treinamento e uma maior pressão nas competições.

Antes dessa etapa, o esporte deveria estar inserido, para esse indivíduo, mais no intuito de promover participação. Até para permitir que ele experimente diversos esportes e, quando estiver com 13, 14 anos, escolha aquele do qual gosta mais, ao qual deseja se dedicar. Esse seria o cenário ideal, pensando na progressão dentro do esporte.

A gente sabe que o Brasil não é um país poliesportivo. Mas, mesmo que fossem poucas as possibilidades de vivências práticas em modalidades esportivas, o ideal é que ele esteja nesse contexto de participação, conhecendo as regras e desenvolvendo habilidades motoras.

Antônio Carlos Tavares Júnior durante visita à escola Kodokan, fundada pelo criador do esporte, Jigoro Kano.

E existem países onde a especialização só acontece mais tarde?

Sim, em todas as potências olímpicas [do judô]. Vou dar um exemplo do judô japonês. No Japão, antes dos 10 anos, a criança não vai participar de nenhuma competição oficial. E a primeira competição não vai ser individual, mas por equipes, que é uma forma de estimular a socialização. Nessas competições, as regras não são iguais às dos adultos, e as punições muito menos. O árbitro se coloca mais como um professor que fala o que pode ou não fazer.

Esse jovem judoca provavelmente pratica o esporte na escola. Quando chegar ao ensino médio será outra situação, porque daí começam a ser formadas as equipes para realmente competir. Então neste momento, haverá o cara que escolhe fazer judô lá duas vezes por semana, enquanto outro treina todo dia. E, para chegar à olimpíada, ele irá praticar a modalidade também na universidade.

E você viu diferença nos treinos para as crianças no Japão?

Se você for assistir ao aquecimento de uma aula para crianças de 8, 9, 10 anos no Japão, só vai saber que se trata de uma aula de judô porque elas estarão usando quimono. Senão, você vai pensar que é ginástica artística. Elas aprendem a fazer estrelinha, parada de mão, parada de cabeça, ponte… Isso constitui a maior parte do aquecimento, para que elas realmente desenvolvam suas habilidades motoras. Porque, nessa etapa, esse é o principal quesito.

Se um menino de 14 anos possui um amplo leque de desenvolvimento motor, fica muito mais fácil se desenvolver nos aspectos técnico e táctico em qualquer modalidade. Porque ele já tem a base construída, tem uma gama de habilidades motoras muito grande. Isso não acontece só no judô, mas em quase todas as modalidades esportivas, acho. O modelo japonês é quase igual ao americano, e nele só ao chegar à universidade o jovem decide se quer praticar judô como hobby ou se quer ser um atleta. E é na universidade que vai ocorrer esta peneira para as olimpíadas.

O modelo de desenvolvimento de futebol na Alemanha também mostra muito desses elementos. Lá, para promover o esporte, eles primeiro procuraram apresentar o futebol de forma lúdica, para massificar a prática. Porque quanto mais gente estiver participando ali na base da pirâmide, maior será o número dos que vão chegar ao topo. A grande maioria vai ficar pelo caminho: não são todos que vão se dedicar com a intensidade de que o esporte de alto rendimento necessita. E existe um momento certo para o indivíduo fazer esta escolha. Essas questões são tratadas, nas potências olímpicas, de uma maneira mais séria do que em outros países.

Mas há algumas polêmicas, também. Por exemplo, no caso da ginástica artística, o pico de desenvolvimento acontece muito cedo. Então, existe a discussão de que talvez nesse caso não haja como evitar a especialização esportiva precoce. É preciso tomar alguns cuidados com o desenvolvimento, mas, aos 15, 16 anos, o atleta já alcança um nível para disputar o esporte olímpico. Mas há exceções em algumas modalidades, por características destas modalidades.

E qual é a alternativa à especialização precoce?

Existem hoje políticas de desenvolvimento esportivo voltadas para aquilo que é chamado de preparação desportiva de longo prazo. Isso está sendo adotado até em países que até algum tempo atrás não tinham qualquer grande destaque nos esportes, como o Canadá. E agora o Canadá começou a se destacar nas competições panamericanas, e também nos jogos olímpicos. Eles chamam isso de long term athlete development, e é uma política do estado canadense, que envolve  prática do esporte em escala massiva e o uso da comunicação. Eles buscam o correto direcionamento na preparação desportiva, tanto para os indivíduos que vão competir quanto para aqueles que não vão, mas para que estes continuem ativos. Essa política inspira outros países. Por exemplo, o Japão se baseou nesse modelo canadense para lançar uma cartilha com orientações para a preparação esportiva de longo prazo no judô.

Existem pesquisas mostrando que a maior parte dos campeões olímpicos no atletismo não se especializaram cedo demais. A não especialização é o segredo do sucesso.

Essa é uma preocupação constante nos países mais desenvolvidos do ponto de vista do esporte. Existem pesquisas mostrando que a maior parte dos campeões olímpicos no atletismo não se especializaram cedo demais. A não especialização é o segredo do sucesso.

Já no Brasil temos a cultura da especialização esportiva precoce ainda muito enraizada. Não só no judô: em qualquer modalidade esportiva. E volto a enfatizar: tratamos a exceção como regra.

Mas, mesmo assim, tomando como referência os desempenhos nas principais competições, como os Jogos Olímpicos, o judô brasileiro tem apresentado crescimento há décadas, não?

Na verdade, está estável. Desde as Olimpíadas de 1984, o Brasil se mantém entre as principais potências do judô mundial. Não sei se podemos falar em um crescimento, do ponto de vista estatístico, mas pelo menos essa estabilização é uma estabilização no alto, entre as potências.  Com certeza.

O judô brasileiro é talvez  o principal esporte individual hoje. Acho que principalmente por conta da participação na última Olimpíada, e junto com a ginástica, que teve um destaque muito grande também. Mas, se for pensar em um intervalo de tempo maior, o judô com certeza é o esporte individual que alcançou maior sucesso do ponto de vista do desempenho nos Jogos Olímpicos.

Então, realmente, existem algumas coisas que funcionam no modelo clubista que o judô brasileiro possui hoje. Há algumas estruturas que melhoraram. Por exemplo, a Confederação Brasileira consegue amparar os clubes formadores e proporcionar um certo direcionamento aos novos talentos que surgem na base. Também surgiram outras instituições que começaram a investir no esporte, como o Sesi. O Sesi começou a investir no judô e criou  equipes de rendimento, primeiro na categoria de base e agora na categoria adulta. Temos outras esferas se mexendo. Acho que tende a fazer com que o judô brasileiro pelo menos continue como uma potência do esporte mundial.

E aconteceram algumas coisas que melhoraram a questão do treinamento. Por exemplo, hoje a Confederação Brasileira de Judô possui uma preocupação muito grande com a questão do embasamento científico dentro do treinamento. Principalmente a partir das categorias sub-18, sub-21. A Confederação passou a oferecer uma capacitação para os treinadores, algo que não existia antes.  Ela possui interlocução direta com os principais treinadores dos clubes. Dentro da comissão técnica há  indivíduos que são mestres, doutores, e possuem  uma concepção científica de treinamento.

Existe uma valorização cada vez maior da ciência, com profissionais cada vez mais capacitados nessas esferas. Isso é inegável, e talvez por isso o Brasil tenha conseguido se manter entre os melhores.

Porém, isso não é argumento para dizer, ‘nosso método de treinamento está indo bem, por isso não vamos mudar nada’. Não acho que o método esteja indo mal, pois o judô brasileiro tem sucesso. Mas acho que há algumas coisas que podem ser melhoradas, né? E aí talvez não seja só no judô, mas sim no esporte brasileiro como um todo. Porém, como estudo o judô especificamente, preciso apontar quais são essas lacunas. Existem treinadores que, ao explicarem as suas práticas, dizem que se baseiam no judô japonês. Talvez se baseiem no que se fazia no judô do Japão dos anos 1960 ou 1970, mas não no judô do Japão de hoje.

 Imagem acima: Antônio Carlos Tavares Júnior durante treinamento na Universidade de Tsukuba, no Japão.