Incidentes envolvendo bullying e trotes violentos em escolas e universidades refletem dinâmica mais ampla da sociedade, dizem docentes da Unesp

Referência em estudos sobre violência no ambiente escolar, Luciene Tognetta analisa episódios que afetaram colégios de São Paulo nos últimos seis meses, e resultaram em expulsões e até em morte. Unesp adotou política de tolerância zero contra trotes, e tem conseguido reduzir de forma expressiva relatos de violência contra ingressantes.

A expulsão de quatro estudantes de um dos mais tradicionais colégios de São Paulo, anunciada no último dia 10 de fevereiro, trouxe um desfecho para um dos mais comentados episódios de violência no âmbito escolar ocorrido nos últimos tempos. Infelizmente, ele ocorreu menos de seis meses depois de outro evento envolvendo uma instituição de elite paulistana, que resultou em um estudante tirando a própria vida em consequência do bullying de que foi vítima por parte dos colegas. Para os docentes da Unesp que estudam fenômenos como o bullying e os trotes entre estudantes, a violência entre discentes nos ambientes de ensino refletem padrões mais amplos de tratamento entre indivíduos em nossa sociedade, e devem ser tratadas com severidade.

O episódio que resultou na expulsão de quatro alunos do prestigiado colégio Santa Cruz, na capital paulista, inicialmente veio à tona no final de janeiro. À época, a imprensa noticiou que 34 alunos haviam sido suspensos pela direção por causa das mensagens compartilhadas em um grupo de whatsapp. O grupo juntava alunos veteranos e novatos, estes cursando o primeiro ano do ensino médio, para, entre outros objetivos, combinar partidas de futebol. Porém, segundo relataram as reportagens, as mensagens trocadas no grupo continham também declarações racistas, misóginas e homofóbicas, além de ameaças aos novos estudantes.

A ocorrência de agressões com esse perfil em instituições que oferecem educação de alta qualidade, muitas vezes baseada em valores religiosos e humanistas, e atendem públicos de classe média alta e classe alta, surpreende a opinião pública e ganha destaque até na imprensa nacional. Não por caso, em setembro do ano passado, outra instituição de elite, o colégio Bandeirantes, havia ganhado as manchetes quando um aluno bolsista tirou a própria vida por ser vítima de bullying e homofobia.

Especialista em psicologia escolar, a pedagoga Luciene Tognetta destaca que, embora o episódio ocorrido no colégio Santa Cruz seja importante para se discutir temas como moralidade e convivência escolar, não se trata especificamente de bullying. “É um caso de violência que precisa ser tratado com seriedade, como a que foi demonstrada pela imprensa, e como a que o colégio está apresentando. Isso é, não deixar o caso impune e cuidar para que as pessoas sejam responsabilizadas por seu atos. Mas não foi um caso de bullying”, aponta.

Tognetta é uma das coordenadoras do Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Moral (GEPEM), que desde 2005 integra pesquisadores de diferentes instituições de ensino e pesquisa, como universidades e entidades voltadas ao estudo de temas sobre educação no país. No grupo, a professora coordena uma linha de pesquisa que procura respostas aos problemas de violência, agressividade e bullying cotidianos em escolas, investigando suas causas e suas relações com os aspectos sociais, morais e afetivos.

“O que mais assusta no bullying é o seu caráter velado. A vítima de bullying tem medo de dizer o que acontece, porque pode ser mais maltratada ainda. E ela pode vir a morrer. Veja o que aconteceu com o menino do Bandeirantes. É muito difícil uma vítima de bullying contar a alguém, por isso ele é tão terrível”, diz ela.

A docente da Faculdade de Ciências e Letras (FCL) da Unesp, no câmpus de Araraquara, explica que um dos elementos característicos do bullying é que se desenrola entre pares, ou seja, indivíduos de um mesmo grupo hierárquico, e possui um caráter recorrente, repetido. No caso do grupo de estudantes do Santa Cruz, existe uma hierarquia entre os alunos mais antigos e os recém-chegados, o que aproxima o evento de um trote. Além disso, a interação foi limitada e ligada ao contexto da entrada desses alunos no colégio.

 “Foi algo pontual, no momento de entrada na escola”, destaca a docente. “Estudos também falam da proximidade do trote ao bullying porque o aluno veterano guarda uma hierarquia sobre o aluno novato. Não é uma hierarquia que se dá institucionalmente, mas pela convivência entre eles. Só que ela se esvai quando passa o período de entrada.”

Trote na universidade ainda é motivo de preocupação

Em poucos lugares essa relação hierárquica entre veteranos e calouros é mais nítida do que no ambiente universitário, o que talvez ajude a explicar por que o trote é um elemento tão frequente nas instituições de ensino superior. Ao longo dos últimos anos, entretanto, essa espécie de tradição universitária vem perdendo o apelo, dando lugar à conscientização e estratégias para a promoção de uma melhor convivência entre os alunos.

A docente da Faculdade de Medicina da Unesp Maria Cristina Pereira Lima  atuou durante cinco anos promovendo iniciativas para tentar impedir que o período de chegada de novos estudantes do curso de Medicina fosse marcado por atitudes autoritárias, abusivas ou mesmo violentas por parte dos veteranos. Não se trata de uma tarefa fácil.

“Os trotes, principalmente nesses cursos mais concorridos, acontecem desde a Idade Média. Naquele período, as universidades eram reservadas aos nobres. Quando representantes da burguesia começaram a frequentar essas instituições, eram tratados de forma inumana, como se fossem bichos. Ou seja, estamos mexendo com uma estrutura secular aqui”, diz Lima, que é médica psiquiatra.

Ao longo destes anos, a FMB empenhou diversas estratégias para coibir o trote. Implantou-se uma postura de tolerância zero que envolve inclusive o banimento do próprio termo ou de nomes associados, como o “trote-solidário”. Em seu lugar, foram adotadas atividades que promovam uma recepção positiva ao curso de Medicina, mostrando ao novo aluno, por exemplo, o cardápio de opções que a universidade oferece em atividades curriculares e extracurriculares.

Outra ação, mais direcionada aos veteranos, buscou imprimir uma marca de empatia na atividade. “Mostramos aos alunos que seriam os veteranos daquele ano as respostas que eles mesmos registraram em questionários avaliando o trote que haviam sofrido no ano anterior, quando ingressaram na Unesp”, explica a docente, que por meio década atuou na coordenação da comissão que organizava as atividades de recepção.

Como parte desse processo de compreender a prática do trote e analisar o impacto das políticas adotadas pela instituição, a FMB aplicou em 2013 um questionário com participação de 477 estudantes do primeiro ao sexto ano do curso de Medicina em que buscaram estimar a prevalência e fatores associados à ocorrência de trote. Os resultados foram publicados em 2017 na forma de um artigo intitulado O Trote e a Saúde Mental de Estudantes de Medicina. Entre os resultados, 39,8% afirmaram ter sofrido trote abusivo, enquanto 7,5% relataram ter aplicado um trote do qual  se arrependeram. “Em 2019, nós repetimos o levantamento e a porcentagem de pessoas que admitiam que fizeram algo de que se arrependeram esteve próxima de zero. A porcentagem de pessoas que sofreram trote também foi muito menor”, aponta a docente.

Hoje integrante da Coordenadoria de Ações Afirmativas, Diversidade e Equidade (Caadi), uma estrutura criada recentemente na Unesp para desenvolver ações para promoção de políticas afirmativas e de combate à validação da violência e discriminação, Lima celebra a diminuição nos números sobre o trote, mas é realista sobre a resiliência dessa prática nas universidades. “Não há como descolar o trote da sociedade em que a gente vive, que é uma sociedade violenta, racista, homofóbica. Inevitavelmente, essas posturas contaminam as formas de ser e se relacionar dentro da universidade”, lamenta a docente, ao passo que também celebra a postura institucional firme e proativa da Unesp contra a violência e a favor dos Direitos Humanos.

Luciene Tognetta destaca que, muitas vezes, manifestações de violência que ocorrem no ambiente escolar são erradamente classificadas como bullying. Isso pode eventualmente causar confusão e impedir que pais e professores percebam os reais episódios de bullying entre estudantes. Porém, quer se trate de bullying, assédio ou trote, todas estas formas de violência que podem assombrar ambientes de convivência estudantil precisam ser combatidas, a fim de preservar os alunos de vivências que podem acarretar muito sofrimento emocional.

“Ao mesmo tempo, falar sobre bullying gera uma discussão sobre os problemas da escola que estão ligados a preconceitos raciais, xenofobia e violência. E estes temas estão escancarados na nossa sociedade, evidentes nas formas desrespeitosas como estamos nos tratando. Estamos vendo marcos civilizatórios, que já considerávamos consolidados, sendo quebrados por alguns discursos atualmente. Por isso é importante falar de racismo, xenofobia, misoginia hoje”, diz.

Imagem acima: Deposit photos.