Presidente Prudente, cidade situada no oeste do Estado de São Paulo, é um polo urbano e econômico com cerca de 230 mil habitantes. A economia local é diversificada, destacando-se no setor de serviços e no agronegócio, com forte produção de milho, soja, cana-de-açúcar e pecuária de corte. Além disso, é um centro educacional, abrigando cinco instituições de ensino superior que atraem estudantes de várias regiões.
Apesar de seu dinamismo econômico e educacional, Presidente Prudente enfrenta desafios no campo da saúde pública. A cidade está localizada em uma área considerada hiperendêmica para a dengue, com surtos recorrentes.
A dengue se tornou uma preocupação crescente em todo o país a partir de 2015. Em Presidente Prudente, o pico mais alarmante ocorreu em 2016, com 12.962 casos confirmados e 29 óbitos, colocando a cidade no segundo lugar no país em termos de letalidade. Depois de uma queda significativa em 2017 (18 casos notificados) e 2018 (40 casos, sem vítimas fatais), a situação se agravou em 2019, quando foram registrados 7.614 casos e 3 óbitos. Em 2020, a cidade manteve uma média de 6.000 a 7.000 casos e 3 óbitos. Com a pandemia de covid-19 em 2021 e a subnotificação, a cidade registrou 2.164 casos e 1 óbito. Em 2022, Prudente teve 7606 casos e 6 óbitos, e em 2023, os números dispararam novamente, com 36.168 casos e 24 óbitos, destacando a cidade em um cenário preocupante no contexto nacional. Em 2024, até o momento, foram registrados 926 casos e 1 óbito.
Diante desses números, a pesquisadora Elaine Bertacco, coordenadora da Vigilância Epidemiológica Municipal de Presidente Prudente, começou a questionar os motivos da persistência da doença em áreas onde as intervenções municipais já estavam em andamento. “A cidade ainda enfrenta altos índices de dengue, especialmente em áreas de baixa renda, onde as intervenções realizadas pelo município não estavam resultando na redução dos casos. Essa situação me levou a pesquisar se havia mais fatores ainda não identificados que pudessem contribuir para manter elevado o número de casos.”
Foi durante um treinamento em Brasília, a convite do Ministério da Saúde, que ela resolveu analisar a situação das bocas de lobo na cidade. “Ouvi relatos de colegas sobre a experiência de municípios como Vitória (ES) e Salvador (BA), onde a limpeza e monitoramento das bocas de lobo detectou a presença de larvas e vetores da dengue. Decidi então mapear esses locais”, disse Elaine ao Jornal da Unesp.
O estudo feito por Elaine e colaboradores, publicado na respeitada revista científica inglesa Frontiers em setembro deste ano assinalou, pela primeira vez, uma relação direta entre a presença de larvas do vetor da dengue, o mosquito Aedes aegypti, nas bocas de lobo e a manutenção de um elevado número de casos em regiões da cidade.
Na primeira fase do levantamento, a pesquisadora e sua equipe percorreram as ruas de diversas regiões com maior incidência de dengue. “Localizamos cerca de 12 mil bocas de lobo (ou bueiros) entre 2019 e 2021.” A fim de viabilizar o estudo, a análise se restringiu a 5.492 unidades, por sugestão do orientador Edilson Ferreira Flores, professor-assistente da Faculdade de Ciência e Tecnologia da Unesp em Presidente Prudente. Ele também teve participação valiosa no estudo, colaborando na fase de mapeamento da incidência de casos de dengue em relação à presença de larvas em bueiros, uma nova vertente de pesquisa que não havia sido explorada anteriormente.
Bueiros sujos e até destruídos
A condição das bocas de lobo também foi classificada. “Algumas estavam limpas, mas a maioria estava suja, danificada e até destruída. Muitas estavam entupidas e com água retida, o que é propício para a reprodução de mosquitos”, conta a pesquisadora.
A equipe coletou amostras em diferentes horários do dia, observando que a presença de espécies variava conforme o período. “Muitas vezes precisamos lançar mão de soluções criativas para capturar amostras, como adaptar um cabo de vassoura com uma concha para alcançar as larvas em locais de difícil acesso”, conta a pesquisadora.
A análise revelou a presença de uma quantidade significativa de larvas do Aedes Aegypti e uma menor presença de mosquitos adultos. Os drenos pluviais podem atuar como importantes ambientes para o desenvolvimento larval e como locais de repouso para os adultos de Aedes aegypti e Aedes albopictus, completando grande parte do ciclo de vida nessas áreas, que oferecem condições favoráveis e protegidas.
Porém, a principal descoberta do estudo foi traçar uma correlação direta entre a localização desses criadouros e o aumento dos casos de dengue. “Foi o primeiro estudo científico que comprovou a relação entre a presença de larvas nos bueiros e o aumento dos casos de dengue”, diz Edilson Flores, que fez toda a parte de georreferenciamento e análise estatística.
Durante a coleta de amostras, foram identificadas 240 espécies de organismos, entre elas mosquitos do gênero Culex, 45 tipos de aranhas e também escorpiões. “Guardamos essas amostras para que venham a ser analisadas por biólogos, mas certamente esse achado reforça a importância de investigar as bocas de lobo e garantir sua manutenção e limpeza como parte de uma estratégia de controle de doenças nas cidades”, destacou Elaine. Ela planeja continuar sua pesquisa, separando amostras para análise e buscando parcerias com instituições acadêmicas para identificar outras espécies de vetores e suas implicações para a saúde pública.
Georreferenciamento mostrou correlação
Além do ineditismo do objeto do estudo, a pesquisa se destaca pela utilização de técnicas avançadas de estatística e georreferenciamento, facilitando a visualização espacial da incidência da doença. A ferramenta permitiu mapear a distribuição dos vetores e correlacionar esses dados com os casos de dengue. Isso ajudou a identificar padrões e concentrações de infestação.
“Geocodificamos cerca de 66 mil endereços relacionados a casos de dengue, permitindo uma análise detalhada das regiões mais afetadas. A correlação entre a presença de larvas nos bueiros e a ocorrência de dengue foi estatisticamente significativa (0,65), evidenciando a importância desses locais no ciclo de proliferação do mosquito”, explica o estatístico Edilson Flores.
A descoberta da relação entre as bocas de lobo e a alta incidência de dengue é crucial para o planejamento de medidas de controle mais eficazes. O pesquisador Luiz Euribel Prestes-Carneiro, da Unoeste, que participou da banca examinadora da dissertação de mestrado de Elaine e redigiu o estudo, enfatizou a necessidade de ações coordenadas. “A cidade precisa de um esforço conjunto entre órgãos públicos e a comunidade para mitigar os riscos associados à doença”, ressaltou o professor. Autor de estudos na área de imunologia e infectologia, Prestes-Carneiro recentemente examinou a possível associação da distribuição dos casos de dengue com depósitos de resíduos sólidos, fragmentos florestais, drenagem de água e renda populacional em Presidente Prudente.
A limpeza dos bueiros não é, obviamente, a solução definitiva para reduzir a infestação de mosquitos. “A resistência do Aedes aegypti aos inseticidas, combinada com as condições climáticas favoráveis e o acúmulo de lixo e água em terrenos baldios, torna o controle mais desafiador. A limpeza e a manutenção dos bueiros, portanto, surgem como uma medida importante para a redução dos focos de transmissão”, diz o professor Luiz Euribel Prestes-Carneiro.
Para Elaine, as bocas de lobo devem ser consideradas em um planejamento de ações integradas de controle de vetores. Porém, implementar melhorias como a limpeza sistemática dessas estruturas requer mais recursos humanos e materiais. “Durante a nossa pesquisa, vimos que algumas cidades usam um caminhão especializado que rapidamente consegue fazer esse tipo de limpeza, o que poderia facilitar o trabalho e aumentar a eficiência das intervenções”, diz. O caminhão custa cerca de R$ 2 milhões. “Enquanto uma equipe leva cerca de um dia para limpar uma boca de lobo, o caminhão conclui a higienização em uma hora”, relata a pesquisadora, que batalha junto a organizações não governamentais e fundações os recursos para adquirir o equipamento.
Os pesquisadores envolvidos no trabalho também enxergam a necessidade de uma intervenção contínua no campo da comunicação para sensibilizar e engajar a população em relação à limpeza e manutenção dos bueiros, além de práticas adequadas de reciclagem e descarte de resíduos. “Em muitos locais, a população fecha os bueiros por causa do cheiro que eles exalam. Isso só piora a situação e melhora as condições para a proliferação dos vetores. A prática se soma ao fato de que a população muitas vezes não adota medidas adequadas de prevenção, como a eliminação de focos de água parada. A falta de campanhas educativas eficazes também contribui para a persistência do problema”, diz Elaine.
Imagem acima: funcionário colhendo amostras para a pesquisa. Crédito: acervo pessoal.