A sul-coreana Han Kang recebeu, na manhã desta quinta-feira, o prêmio Nobel de Literatura de 2024. No anúncio oficial, a Academia Sueca, responsável pela eleição do vencedor anual, destacou a capacidade da autora de “confrontar traumas históricos” e “expor a fragilidade da vida humana”.
A notícia causou surpresa em boa parte dos críticos e estudiosos de literatura, já que, embora conhecida mundialmente, Kang é menos experiente do que outros grandes nomes que estavam cotados para o prêmio, como a poetisa canadense Anne Carson e a caribenha Jamaica Kincaid.
Mas, ainda que relativamente jovem, com apenas 53 anos, Kang é uma escritora prolífica: de 1995 até hoje, publicou 21 livros em coreano, idioma em que escreve, sendo oito romances, quatro reuniões de contos, quatro novelas, dois compilados de ensaios, um de poesia, um livro infanto-juvenil e uma coletânea de seus melhores textos.
Para Joy Nascimento Afonso, professora do Departamento de Letras Modernas da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp, campus de Assis, e pesquisadora de literatura de autoria feminina asiática, a vitória de Kang se deve a sua capacidade de transpor as angústias do corpo feminino ao lidar com memórias e assuntos negligenciados na sociedade sul-coreana. “Ela trata de forma única as questões do âmbito da maternidade, da sexualidade e da luta por direitos básicos da mulher”, diz.
A docente diz que a linguagem da escritora destrói o modelo estereotipado de mulheres asiáticas magras, dóceis e gentis que é reforçado pelas narrativas de K-dramas e pelas idols do K-pop, dois produtos de entretenimento de exportação do país. “A Han Kang descreve sensações físicas, estéticas e psicológicas de forma que não encontrei em outras escritoras”, diz. Ela aponta como exemplo desta ficção fora dos estereótipos o livro Atos humanos, de 2014. Nele, uma das protagonistas sofre abuso sexual e é retratada sem nenhum elemento de dó ou piedade, mas com pungência, incômodo e reflexão. “É uma prosa dolorosa e maravilhosa ao mesmo tempo”, analisa Joy.
Kang ficou conhecida globalmente com A vegetariana, de 2007, um romance aflitivo que conta a história de Yeonghye, uma mulher da classe média que leva uma vida controlada pelo marido até decidir parar de comer carne. Levado ao limite, o ato faz com que ela rompa com a família e passe, aos poucos, a se afastar da condição humana. Com passagens insólitas, oníricas e por vezes grotescas, o romance pode ser lido como uma crítica feroz ao modo de vida patriarcal e sufocante da sociedade sul-coreana.
“É uma autora que fala sobre tabus, traumas e memória em uma Coreia do Sul contemporânea que ainda vive de forma muita intensa a influência de um passado difícil e recente”, diz Daniela Mazur, pós-doutoranda com bolsa CNPq associada ao Instituto de Ciência e Tecnologia em Disputas e Soberanias Informacionais (INCT-DSI) na UFF, e diretora cultural no Instituto Cultural Brasil-Coreia. A pesquisadora cita como traumas, por exemplo, as invasões estrangeiras, os imperialismos japonês e estadunidense e a ditadura militar, que atacaram o povo e a cultura sul-coreanos.
Mazur ressalta que, ainda que Kang escreva sobre o país onde nasceu e cresceu, sua obra possui um caráter universal. “Seus livros regem debates importantes e caros não só para a Coreia, mas para o mundo”, diz. “A forma como ela digere os sentimentos e os coloca no papel é de uma riqueza tão profunda que só mesmo um reconhecimento como o Nobel dá conta de sua importância.”
O caminho até o topo da literatura mundial
Han Kang nasceu em 1970 na cidade de Kwangju, sudoeste da Coreia do Sul, a menos de 300 quilômetros de Seul. Ela se mudou com a família para a capital antes de completar nove anos. As leituras começaram durante a infância: seu pai, Han Sung-won, hoje com 86 anos, já era um professor e romancista conceituado no país.
Os primeiros textos publicados por Kang foram poemas na revista local Literature and Society, em 1993. Dois anos depois, publicou o primeiro livro, uma reunião de histórias curtas chamada Love of Yeosu. Mas foi com o romance Your Could Hands, de 2002, que a autora ganhou maior notoriedade. Nesta obra, é possível observar vários elementos estéticos que ela retrabalharia nos livros seguintes: a relação intrincada entre vida e arte, a investigação da anatomia humana e a exposição das máscaras sociais. Nos livros seguintes — sobretudo A vegetariana (2007), Atos humanos (2014) e O livro branco (2016), todos publicados no Brasil pela editora Todavia nos últimos seis anos —, além de incorporar todas essas características, Han Kang se destaca pela construção de personagens femininas complexas e reais.
“Sinto que ela tem a necessidade de colocar de forma muito clara e aberta questionamentos que não eram foco da literatura feita por homens”, diz Joy. “Lemos sobre a secretária, a professora, a mulher que faz limpeza na fábrica: mulheres sendo representadas como mulheres são, e não como personas inexistentes, inacessíveis.”
Nesse aspecto, A docente da Unesp vê algumas semelhanças entre Kang e escritoras japonesas contemporâneas. “Assim como as japonesas, Kang se engaja em trazer à tona esses problemas sociais que são jogados debaixo do tapete em sociedades cujas imagens são idealizadas, onde tudo é organizado e limpo”, afirma. A solução formal para dar conta desses conflitos acaba sendo, muitas vezes, uma fluição de gêneros textuais. Atos humanos, por exemplo, ressalta Afonso, é uma junção de diário, livro de memórias e romance; O livro branco, por sua vez, é escrita como “uma linguagem do luto” em que pesa as sensações corporais por meio do tato e também do olfato.
A excelência de uma escrita capaz de amarrar todas esses atributos de modo original já havia sido reconhecida em 2016, quando Han Kang recebeu o Prêmio Internacional Man Booker, um dos mais renomados do mundo, cedido ao melhor romance traduzido para o inglês. O Nobel surge como coroação de uma escritora que ainda tem muito a dizer — e muitos livros a escrever.
Ilustração: Niklas Elmehed/prêmio Nobel