Um mural para estampar a diversidade e a inclusão

Novo painel do artista plástico Eduardo Kobra pintado na fachada do prédio da biblioteca do câmpus de Marília celebra arte e cultura como pontes que aproximam universidade e sociedade.

Na última segunda-feira, dia 1º, a estudante Adriana Ferreira da Rocha chegou à Faculdade de Filosofia e Ciências (FFC) e levou a mão à boca ao ver a nova fachada do prédio da biblioteca da faculdade, cartão de visita para quem entra no câmpus de Marília da Unesp. Ao observar um grande mural multicolorido recém-inaugurado, identificou ali o livro e o nome da autora que mais a representa, Carolina Maria de Jesus, pintados em um de seus espaços favoritos. Lágrimas brotaram.

“Foi um espanto para mim. Sou negra, também morei na favela, e Carolina Maria de Jesus me deu um norte de dignidade, de se orgulhar de quem você é. Quando a vi representada dentro de um espaço elitizado como é o espaço universitário, não acreditei. Chorei muito”, conta Adriana, que saiu de Carapicuíba (Grande São Paulo) para estudar biblioteconomia em Marília e agora está concluindo a segunda graduação, em arquivologia.

Em uma área de 170m2, com 6,8m de altura e 25m de largura, o mural pintado na fachada da biblioteca faz parte do projeto “Inclusão, diversidade e literatura: um encontro necessário” e foi encomendado para um dos artistas mais renomados no mundo do grafite e da street art. Carlos Eduardo Fernandes Leo, que se tornou célebre sob o nome artístico de Eduardo Kobra, esteve no câmpus de Marília entre a segunda e a terceira semana de março para pintar um painel que valorizasse arte e cultura, diversidade e inclusão. O mural ficou encoberto até os últimos dias de março, quando foram desmontados os andaimes usados no trabalho.

Após a apresentação de alguns croquis desenhados por Kobra, consolidou-se a ideia de transformar a fachada do prédio da biblioteca em uma prateleira, ocupada por lombadas de livros como “O Amanhã Não Está À Venda”, do líder indígena Ailton Krenak, “Pequeno Manual Antirracista”, da filósofa Djamila Ribeiro, e o já citado “Quarto de Despejo”, de Carolina Maria de Jesus. Nas palavras da diretora da FFC-Unesp, a professora Claudia Regina Mosca Giroto, o mural reforça o olhar para a arte e a cultura como meios promotores da aproximação entre a universidade e a sociedade. Em última instância, simboliza a aproximação entre o acervo do prédio, e a literatura de modo geral, e a população. 

“É um privilégio (fazer o mural). Penso que estar pintando aqui é, de alguma forma, representar toda essa molecada da periferia e mostrar que vale a pena sonhar, insistir, persistir naquilo que acredita”, disse Kobra, que nasceu e cresceu no Campo Limpo, distrito periférico da zona sul da capital paulista. “Para mim é uma honra, algo muito especial. Minha interpretação é profunda, porque são as portas que a arte abriu na minha vida. Jamais imaginei que eu fosse sair do bairro em que eu nasci e começar a pintar em outras cidades, outros países, como foi na fachada da ONU. E o trabalho aqui (na Unesp) também entra nesse rol”, disse Eduardo Kobra ao Jornal da Unesp, durante o trabalho de execução da pintura do painel.

O projeto do mural foi proposto pela diretora da FFC e pela pós-graduanda Patrícia Butignol Lucio, que captaram recursos de fomento à cultura da Universidade. “Concebemos o grafite como arte inclusiva, que pode ajudar na questão do pertencimento, bem como no diálogo sobre questões sociais”, diz Claudia Giroto. “O projeto prevê visitação guiada de alunos de escolas do ensino básico, de modo a promover o incentivo à leitura e às práticas de inclusão da universidade e estimular a contínua democratização do acesso ao espaço da biblioteca.”

Eduardo Kobra, de 49 anos, contabiliza já ter grafitado cerca de 3.000 obras na vida, desde o final dos anos 1980. Diz que parte dessas obras já não existem mais, apagadas pelo tempo ou pela ação humana. Hoje, seus painéis recebem um tratamento à base de resina ao final do trabalho e também passam por uma preparação prévia que pode demorar alguns dias. Os dias gastos com estes cuidados se revertem em anos de preservação, garante. “A arte de rua sempre foi efêmera e no início eu não me preocupava com isso. Hoje, até por cobrança das pessoas, que querem que o mural tenha vida longa, tenho pessoas que vêm na frente só para cuidar disso. Se a parede não for preparada corretamente, não dura”, diz Kobra. Pensando na possibilidade de restauração no futuro, ele também produz uma espécie de “inventário” do material utilizado. “Quando eu não estiver mais aqui, saberão que tinta foi usada, pincel, compressor…”

A habilidade manual Kobra acredita ter herdado do pai, que trabalhava com reforma de imóveis estofados. Quando iniciou sua atividade artística, nem o pai, já falecido, nem a mãe, dona de casa, viam com bons olhos o filho adolescente que, nas décadas de 1980 e 1990, buscava as ruas para grafitar, imerso na cultura hip-hop. “Os livros da (fotojornalista) Martha Cooper foram as minhas primeiras referências. Mostravam os grafites dos trens de Nova York. Com o passar do tempo, fui procurando mais referências”, conta. Enquanto conversava com a reportagem, ele pediu para ver alguns livros de Cândido Portinari que fazem parte do acervo da biblioteca. Atualmente, Kobra se define como muralista, um estilo de arte que teve em Portinari um dos seus mais destacados expoentes no Brasil. “Hoje, se você olhar os meus murais, o principal para mim não é a pintura em si. É o significado, a mensagem que está por trás. É a parte com que mais me envolvo”, diz.

Para o mural “Inclusão, diversidade e literatura: um encontro necessário”, Kobra participou de todas as etapas artísticas do projeto, o que é característico do seu modo de trabalho. Desde a discussão inicial em torno dos croquis ao estágio da pintura, passando pelas adaptações necessárias para que as características não regulares da parede fossem sublimadas na arte final. O trabalho no painel foi feito em conjunto com dois auxiliares, Agnaldo e Marcos.

“Apresentei várias propostas (para o painel na FFC). A mais adequada ao espaço foi mesmo transformar a parede numa prateleira de livros. A gente foi discutindo, adaptando, melhorando. Fico muito feliz com essa oportunidade de pintar num ambiente acadêmico. Valeu a pena”, avalia.

Questionamento

Em 19 de março, durante sessão do Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão Universitária da Unesp, o docente Fábio Kazuo Ocada, da FFC, leu uma nota assinada pela Associação dos Docentes da Unesp (Adunesp) de Marília e por centros acadêmicos locais criticando a aplicação dos recursos para a construção do painel, da ordem de R$ 300 mil, em detrimento de investimentos em “demandas urgentes” que estão relacionadas à atividade-fim da Universidade. Em resposta, a diretora da unidade universitária, professora Claudia Giroto, frisou que as verbas usadas no projeto não se referem a recursos de custeio e enumerou uma série de investimentos realizados recentemente, como em bolsas e auxílios de permanência estudantil, acessibilidade e reforma do prédio do restaurante universitário.

Imagem de abertura: Lilian Sant Anna / Divulgação FFC