Segundo dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep), cerca de 6 mil pessoas com autismo estavam matriculadas no ensino superior brasileiro em 2023, um aumento de mais de 500% em relação aos 980 registrados em 2017. Estes números refletem a crescente presença de estudantes autistas no sistema de educação, que hoje respondem por 636 mil matrículas. Se, por um lado, a expansão deste contingente revela a eficácia de políticas públicas que retiraram esses alunos das chamadas turmas especiais e abriram para eles as portas das salas de aulas comuns, o outro lado da moeda é que professores, diretores e gestores de estabelecimentos de ensino vêm se deparando com inúmeras novas questões e são constantemente desafiados a repensar práticas e metodologias consagradas, muitas vezes sem contar com apoio ou referências especializadas.
Atenta a esse cenário de mudança, e aos desafios que ele envolve, em 2023 a Secretaria de Estado dos Direitos da Pessoa com Deficiência distribuiu a mais de 400 faculdades e universidades de São Paulo uma publicação digital intitulada Transtorno do Espectro Autista: guia de orientações para as Instituições de Ensino Superior. A primeira autora da obra é a psicóloga Lúcia Pereira Leite, professora do Departamento de Psicologia da Faculdade de Ciências da Unesp, campus de Bauru.
Livre-docente em psicologia da educação, Lúcia Pereira Leite é professora do Programa de Pós-graduação em Educação Especial da Universidade Federal de São Carlos. Há duas décadas ela pesquisa a inclusão de alunos com deficiência, categoria que abrange também os estudantes com autismo. Seus estudos envolveram tópicos como a formação continuada de professores e a análise de políticas públicas desenhadas para promover inclusão na educação, entre outras temáticas. Recentemente, a docente concluiu um levantamento que envolveu a participação de mais de 1.600 respondentes de 60 universidade públicas de todas as regiões do Brasil sobre as concepções dos estudantes universitários a respeito da deficiência. Os resultados vêm sendo publicados em revistas científicas do Brasil, Portugal e Espanha.
Em entrevista ao Jornal da Unesp, publicada por ocasião do Dia Mundial de Conscientização sobre o Autismo, a docente analisa os principais obstáculos a uma inclusão efetiva dos alunos autistas no cotidiano das escolas e universidades e diz que, para além do investimento em conhecimento especializado e da incorporação de novas estratégias e metodologias, é preciso ampliar o olhar de professores e estudantes para que eles possam se relacionar melhor com a diversidade humana. “Ainda temos muito forte um modelo de aluno, e um modelo de sujeito. E, quando se escapa um pouco desses modelos, a gente não sabe muito bem como lidar. Mas os outros estudantes também se beneficiam com esta convivência”, diz.
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A senhora é autora de um guia com orientações para o acolhimento de estudantes autistas no ensino superior. Em 2023, uma versão deste guia foi distribuída pelo governo de São Paulo para mais de 400 universidades e instituições de ensino superior. Como surgiu este trabalho?
Lúcia Pereira Leite: Esse guia é uma segunda versão de um material produzido anteriormente pela Unesp em parceria com o banco Santander, no âmbito do programa Educando para a Diversidade, que tratou de vários temas relacionados à diversidade, e entre eles o das pessoas com Transtorno do Espectro Autista (TEA). No ano passado, a Secretaria de Estado dos Direitos da Pessoa com Deficiência de São Paulo nos procurou para realizarmos uma revisão e atualização do material. O plano era distribuí-lo para todas as faculdades e instituições de ensino superior, públicas ou privadas, do Estado de São Paulo.
O primeiro guia foi bastante procurado, mas quando saiu ainda estávamos no período da pandemia. A versão da Secretaria, em 2023, foi mais bem divulgada, o que resultou em uma procura muito grande. A gente às vezes não tem muita noção de até onde uma informação pode chegar. Fui procurada por coletivos que quiseram me entrevistar, pessoas entrarem em contato para falar sobre o guia. Mães de pessoas com autismo vieram falar comigo. Muitos elogiavam a linguagem simples do material e o fato de ele mostrar que as pessoas com autismo também podem chegar a espaços elevados de ensino, como a universidade. Há casos de autistas que se destacam por uma “genialidade” em determinada área, o que é possível. Mas existia outro grande grupo de autistas que não se pensava que pudesse chegar ao ensino superior. Hoje, vemos o crescimento das matrículas dessas pessoas. O Inep mostrou que, em 2023, havia mais de seis mil autistas matriculados no ensino superior. Em 2017 eram 980. Os próprios exames vestibulares pelo país, e mesmo o Enem, adotam medidas diferenciadas para alunos com autismo.
Quais as principais recomendações que o guia traz?
Lúcia Pereira Leite: Acho que a primeira questão é a desmistificação do autismo. Para que as pessoas entendam, por exemplo, que não existe uma causa única para o autismo, mas sim uma série de indicadores de marcas genéticas e ambientais. O guia desconstrói os mitos e as visões capacitistas que estão no nosso cotidiano. Do ponto de vista educacional, o material propõe estratégias que podem ser pensadas em sala de aula. O que um professor pode fazer em sala de aula para que ela se torne mais acessível para o aluno com autismo? Como esse aluno se comporta e quais as principais dificuldades enfrentadas por ele? A ideia é clarificar algumas considerações gerais relacionadas ao transtorno. Ele é, sim, um aluno que aprende. Mas às vezes aprende de forma diferente.
De fato, alguns trabalhos podem ser mais difíceis de serem realizados pelo aluno autista, mas não são impeditivos para ele. Fazer seminários na frente da classe, por exemplo, pode ser um dificultador. Um aluno autista uma vez me falou que preferia gravar a apresentação em casa e passar essa gravação em sala. Por que não? Será que não conseguimos pensar em formas de incluir usando essas novas tecnologias?
O guia também menciona normativas importantes. Desde 2012, por exemplo, existe uma lei federal que classifica o autista como uma pessoa com deficiência no Brasil. É importante que se saiba esse tipo de informação porque essa lei dá a ele as mesmas prerrogativas e direitos que uma pessoa com deficiência.
Temos visto alguns debates acalorados sobre as mudanças exigidas para facilitar a inserção dos alunos autistas, em especial no ensino fundamental. Discute-se, por exemplo, a dificuldade das escolas em oferecer acompanhantes e a possibilidade de proporcionar a eles atenção individualizada. Como a senhora vê essa discussão?
Lúcia Pereira Leite: Na educação básica, a incidência de pessoas com autismo é a segunda maior entre as pessoas com deficiência no país. São 636 mil matrículas, segundo dados do Inep, é um número bastante expressivo. Há dificuldade em lidar com eles porque, dentro do que chamamos de TEA, existe grande variabilidade. Há alunos com fala oralizada e outros cujo comportamento é mais pautado por gestos, e alguns sons e monossílabos. Pode haver alunos que apresentem mais dificuldade em permanecer em sala, alguns com prejuízos cognitivos associados, e outros não. A sintomatologia do autismo é muito complexa.
Se o professor comum em sala de aula não dispuser do apoio de um especialista, fica muito difícil.
Por isso, se o professor comum em sala de aula não dispuser do apoio de um especialista, fica muito difícil. É possível que, durante sua formação, esse professor tenha estudado um pouco sobre o autismo. Mas é impossível que uma formação inicial possa cobrir todas essas diferenças do espectro autista. O professor precisa de suporte humano e instrumental. Por isso, também, a importância do investimento na educação continuada, para o professor e para os demais profissionais da escola. O professor de educação especial vai ajudar a pensar, por exemplo, em formas de adaptar as aulas para este aluno. É um trabalho em conjunto entre o gestor educacional, a coordenação pedagógica, o diretor de escola, o professor regente em sala de aula e o professor especialista
Um dos objetivos da lei estadual promulgada no ano passado é tornar o diagnóstico do autismo mais precoce. O diagnóstico de TEA de modo geral não é precoce no Brasil, mas é importante para acessar os serviços de educação especial que também estão previstos nessa lei de 2023. A partir desse diagnóstico é que a escola irá avaliar quais ações serão necessárias para se tornar mais inclusiva. Existem crianças autistas que não precisam de um professor especialista, e demandam apenas alguns ajustes. Outras vão precisar de cuidador, uma pessoa que fique com ela na sala, ou em momentos específicos. Tudo isso vai depender do nível dentro do espectro autista que o aluno apresenta em seu diagnóstico. O que a gente defende é que ele seja matriculado no ensino comum, exceto alguns poucos casos. Em Bauru, temos entidades da sociedade civil que oferecem apoio à escola, mas isso varia de acordo com as secretarias municipais de educação.
É direito desse aluno estar no espaço educacional comum. Isso beneficia o desenvolvimento do aluno e também dos outros estudantes, que aprendem a conviver com os diferentes.
Acredito é que precisamos ser mais abertos à diferença. Ainda temos muito forte um modelo de aluno, e um modelo de sujeito. E, quando se escapa um pouco desses modelos, a gente não sabe muito bem como lidar, e achamos que eles não podem ser incluídos. Não estou dizendo que é fácil fazer isso. Em especial, para autistas de nível dois e três, que demandam muitos serviços especializados, pode ser muito difícil. Mas é um direito desse aluno estar no espaço educacional comum. Sabemos que isso beneficia o desenvolvimento do próprio aluno e também dos outros estudantes, que aprendem a conviver com os diferentes. A literatura tem mostrado que a convivência com outros modelos de sujeito é benéfica.
A senhora concluiu recentemente uma pesquisa sobre as concepções de deficiência que abrangeu universidades de todo o Brasil. O que ela revelou?
Lúcia Pereira Leite: É difícil sintetizar uma pesquisa desse tamanho em poucas palavras. Posso dizer que nesse trabalho buscamos identificar e analisar as concepções de deficiência a partir da Escala Intercultural Sobre Concepções de Deficiência (EICD), um instrumento que elaborei em parceria com uma equipe de pesquisadores do Brasil, Espanha e Portugal. Essa análise é feita a partir de três matrizes: a social, a biológica e a metafísica. No caso das pesquisas com os universitários, foram analisadas diversas variáveis, como gênero, grau de escolaridade, área do conhecimento, idade, etc.
De modo geral, podemos dizer que permeiam a universidade pública brasileira as concepções de deficiência com viés metafísico, que entendem a deficiência como uma causa de origem religiosa. Isso é algo que pensávamos já estar superado. Permeia uma matriz biológica também, que encara a deficiência como algo restrito ao organismo que a apresenta, um predomínio de uma concepção médica e clínica.
Será preciso conduzir ainda muitas intervenções até que se perceba que corpos diferentes são interpretados como deficientes dentro de um contexto. Uma pessoa pode ser cega ou surda, por exemplo, mas o que a torna deficiente são as barreiras que encontra para acessar os mesmos direitos de outras pessoas que não estão nessa condição.
Esse tipo de levantamento é importante porque nos ajuda a pensar em intervenções nesses contextos investigados, a fim de promover reflexões e trabalhar as concepções de deficiência que estão em circulação.
Que balanço a senhora faz do atual panorama da inclusão dos estudantes com autismo na escola? Onde avançamos, e em que podemos melhorar?
Lúcia Pereira Leite: Os progressos são grandes, principalmente por conta das políticas públicas. Poderíamos falar de outros campos, mas, ficando apenas no campo educacional, temos políticas que fomentam a inclusão educacional no país. A efetivação dessas políticas tem mudado o cenário. Nós tivemos a inversão da curva de matrículas a partir de 2008, quando elaboramos uma política de educação especial dentro de uma perspectiva inclusiva. A partir desse momento vimos as matrículas de pessoas com deficiência diminuírem nas classes e nas escolas especiais, e aumentarem no ensino comum. E isso tem gerado demandas por serviços e por suportes.
Acho que precisamos de mais apoio de profissionais da educação especial, a fim de dar suporte ao professor comum em sala de aula. Precisamos também ampliar parcerias com outros setores da comunidade que possam oferecer serviços que não são oferecidos por profissionais da educação, mas que são necessários. É o caso dos setores da saúde, que vão fornecer psicólogos, terapeutas ocupacionais, fonoaudiólogos.
Por fim, acho que é importante trabalharmos para reduzir o preconceito. Essa é uma barreira atitudinal muito relevante. A ampliação da discussão desses temas levou a uma melhor compreensão de que existem diferentes tipos dentro do espectro autista, e hoje vejo muitos casos de autismo diagnosticados tardiamente, em pessoas adultas. A Organização Pan-Americana de Saúde estima que sejam dois milhões de autistas no Brasil. É um número grande. Precisamos falar cada vez mais sobre este assunto.
Foto acima: Depositphotos.