Roberto Menescal e seu “Barquinho” seguem a todo o vapor pelas águas da música brasileira

Apresentando o show “Bossa Nova: 65 anos”, o compositor celebrado no mundo inteiro fala de sua trajetória como um dos protagonistas do gênero musical nascido nos anos 1960, e da atuação fora dos palcos que o transformou em um dos produtores musicais mais respeitados do país.

“Dia de luz, festa de Sol / E o barquinho a deslizar / No macio azul do mar / Tudo é verão, o amor se faz / No barquinho pelo mar / Que desliza sem parar (…) O barquinho vai / E a tardinha cai.”

Embora composta há mais de seis décadas, a canção O Barquinho mantém inalterados seu frescor e sua capacidade de despertar sentimentos agradáveis no ouvinte, que, pela magia da música, por alguns minutos é transportado para um belíssimo passeio de barco no litoral do Rio de Janeiro, enquanto a tarde avança e o sol, lentamente, “desmaia”. Tamanha concentração de beleza e poesia serviu como cartão de visitas global ao seu compositor, Roberto Menescal (em parceria com Ronaldo Boscoli), e escancarou as portas para que ele pudesse mostrar seu talento por todo o planeta. Mas, além de cantar, compor e tocar violão, ele também se tornou notório no meio musical brasileiro por suas contribuições como produtor musical e diretor artístico de gravadoras. Esse reconhecimento se materializou na forma dos diversos prêmios com que foi laureado durante a carreira, entre eles o Prêmio à Excelência Musical entregue pela Academia do Grammy Latino.

Roberto Batalha Menescal, ou simplesmente Roberto Menescal, nasceu em 25 de outubro de 1937 na cidade de Vitória, no Estado do Espírito Santo. Ainda pequeno, se mudou para o Rio de Janeiro com a família, e foi lá que começou a construir sua bela trajetória artística.

“Hoje, refletindo sobre essa essência musical da minha vida, não sei de onde ela brotou, pois não havia músicos na minha família. Meu pai era arquiteto e meus irmãos se tornaram arquitetos. Quando eu tinha cinco ou seis anos, meu pai me deu uma gatinha de rock chamada Dó Ré Mi. Quando meu pai chegou em casa, à noite, fiz um som naquele instrumentinho que chamou a atenção dele. E o meu pai disse: ‘você leva jeito para a música’. Isso foi bacana. Posteriormente, me colocaram numa aula de piano. Mas era muito chato. Eu queria tocar algumas coisas e não podia. A professora tinha uma varinha que usava para bater na minha mão. Não evolui nesse estudo”, lembra.

Por volta dos 16 anos, a relação com a música mudou ao conhecer melhor o instrumento que viria ser seu grande parceiro de vida: o violão. “Nessa época, passava as férias no Espírito Santo. Certa vez, quando retornava para casa de noite, num papo com uma amiga, de repente ouvi um som que vinha de um bar escuro e uns caras me chamaram para curtir ali. Eram dois caras do Rio. Eles tinham pegado uma mochila e um violão, souberam que ali no Espírito Santo havia praias lindas, garotas maravilhosas. Ficaram a noite inteira tocando samba canção. Não deu outra: no dia seguinte eu já estava com um violão emprestado, e aí tudo começou”, relata Menescal.

Professor de Nara Leão

Aos 18 anos, bem no início da carreira, teve a oportunidade de acompanhar a cantora Sylvinha Telles em uma turnê pelo Brasil.

“A Silvinha estava fazendo uma temporada de shows. E toda quarta-feira eu ia assistir a matinê, porque a entrada era mais barata. Ficava lá, na primeira fila, prestigiando ela e o cara que a acompanhava no violão. Acho que na décima vez que fui assistir, ela me chamou pra ir ao camarim e lá conversamos. Ela explicou que estava num novo momento de vida, perguntou se eu tocava, eu disse que estava iniciando. Ela me fez um convite para ensaiar e acompanhá-la em sua nova turnê. Fizemos todas as capitais, de Manaus até o Rio de Janeiro. Após essa turnê, que foi fundamental para mim, ela também me indicou um professor de música para ampliar meus conhecimentos. Era o grande maestro Moacir Santos.”

Em outra etapa de sua carreira, Menescal abriu uma academia musical em sociedade com o amigo, músico e também futuro ícone da Bossa Nova Carlos Lyra, onde lecionava violão. Entre as estudantes que ele treinava estava Nara Leão, que logo se tornou amiga e parceira em grandes colaborações.

“Surgiam várias novidades que alimentavam nosso imaginário para fazer uma música que falasse de amor e de coisas boas. Começamos a nos encontrar com pessoas que pensavam as mesmas coisas. Nara e eu começamos a tocar violão juntos, e fizemos uma turminha que tinha essa mesma cabeça. Passamos a compor e a criar, até que um dia aquilo foi chamado de Bossa Nova. Os encontros no apartamento da Nara eram sensacionais, mas a gente não tinha noção da dimensão do movimento que estávamos criando. Era um momento para juntar a turma, para curtir”, diz o músico.

A origem do nome Bossa Nova

Ele lembra o momento em que foi cunhado o termo Bossa Nova, de forma espontânea. “Certa vez, a Sylvinha Telles, que já era artisticamente conhecida e gostava da nossa turminha, nos convidou para dar uma canja num show dela no Clube Israelita, no Rio. E não sabíamos ao certo o que iria acontecer. Quando chegamos lá, estava escrito na entrada: ‘Hoje: Silva Telles e o grupo Bossa Nova’. Eu achei que era o grupo que tocaria para as pessoas dançarem durante a noite. E perguntei ao cara do clube se esses músicos não iriam ficar chateados se a gente tocasse também. O cara respondeu que não, pois, na verdade, como não sabia o nosso nome, escreveu Bossa Nova para se referir a nós, e perguntou se havia algum problema. Aí, meu parceiro Ronaldo Boscôli disse: ‘É nosso!’ Então, a Silvinha pediu pra nos apresentarem a plateia como o grupo Bossa Nova”, relata.

Com o passar do tempo, Ronaldo Bôscoli se tornou um grande parceiro de Menescal nas composições, algumas delas clássicos que se eternizaram na música brasileira. Naquela época não faltavam fontes de inspiração para a dupla de jovens compositores, entre elas, o mar, as belezas do Rio de Janeiro e o ótimo astral da época. “Juntos, fizemos cerca de 250 músicas, que seguem sendo gravadas por diferentes artistas até hoje. Recentemente, recebi uma gravação de O Barquinho feita na Coreia, uma coisa linda de ouvir”, conta.

 “O Barquinho surgiu de uma brincadeira. Eu tinha o hábito de sair bastante para pescar. Sempre tirava fotos de lugares lindos, e levava para o pessoal ver. Uma vez, a turminha, cerca de dez pessoas, decidiu ir junto. Mas falei a eles: olha, minha pescaria é séria, não quero gente bebendo enquanto estou na atividade. Fomos a um lugar belíssimo, na região de Cabo Frio. Eles ficaram deslumbrados ali, pegando lagostas, peixes. Eu havia pedido para eles comprarem uns lanches e guaraná. Mas, enquanto preparava o barco, notei uma caixa cheia de guaraná com rolha. Eles tinham tirado todo o guaraná e colocado rum”, conta.

“Por volta das 16hs, a bateria do barco acabou e o pessoal ficou meio apavorado, mas ainda havia o recurso da manivela. Quando começou o barulho da manivela, um “taca-taca-taca”, eu comecei a brincar com uma melodia para descontrair. Até que, por volta das 18h, uma embarcação que vinha da Bahia nos deu uma carona, jogou a corda, e a gente foi rebicado de boa naquele cenário: “o barquinho vai, a tardinha cai”. No dia seguinte, no apartamento da Nara, tomando um uisquinho do pai dela, o Bôscoli me perguntou: ‘como era aquele negócio do motor do barquinho?’, que eu havia cantado no dia anterior. Eu não lembrava direito. Até que veio o swing: tac-tac, tac-tac, tac-tac. E, nessa brincadeira, O Barquinho se tornou a nossa música mais conhecida, inclusive internacionalmente.”

Embaixador da música brasileira

Menescal foi um dos organizadores do primeiro show de Bossa Nova, realizado no Grupo Universitário Hebraico, e também do 1º Festival de Samba-Session, participando com o Conjunto Roberto Menescal. O festival também contou com a participação de músicos como Vinícius de Moraes, Dorival Caymmi, Aracy de Almeida e Billy Blanco. Tudo isso contribuiu para sedimentar seu nome entre os pioneiros do estilo, e também como um de seus mais talentosos expoentes, figurando ao lado de ícones como João Gilberto, Tom Jobim e Vinicius de Moraes. Posteriormente, também foi autor de outros clássicos da MPB, como  Bye, bye Brasil, esta em parceria com Chico Buarque.

Com suas composições, Menescal ajudou a popularizar a Bossa Nova e a música brasileira pelo mundo, em especial no Japão. Em 1962, Menescal participou do famoso Concerto de Bossa Nova no Carnegie Hall, em Nova York, ao lado Tom Jobim, Carlos Lyra e João Gilberto. O evento assinalou a entrada oficial da Bossa Nova no cenário musical exterior internacional. Em 1968, se apresentou com Elis Regina na cidade de Cannes, no célebre Midem, o  Mercado Internacional do Disco e dos Editores Musicais. Com o grupo Bossacucanova, excursionou por EUA, Europa e Japão tocando para audiências que chegavam a 200 mil pessoas. E, em sua atuação como embaixador de nossa música, apresentou-se em países bem menos familiares aos brasileiros, como Cingapura, Austrália e  Rússia.

Produtor musical e diretor artístico

Menescal foi também diretor artístico da gravadora Polygram/Philips durante 15 anos. Neste  período lançou e trabalhou com artistas de todas as vertentes da MPB. No final dos anos 1980, fundou um selo próprio, a Albatroz Discos, e é lá que, desde então,  produz álbuns para o mercado brasileiro e internacional.

“A produção musical exige muita ética. Nesse período em que fui contratado pela gravadora, me dediquei exclusivamente a produzir discos e parei de compor. Não acho justo trabalhar com grandes artistas e ter músicas minhas nos álbuns deles. O Boscoli brigou comigo, pois demos um tempo na parceria de composições. Ele não compreendeu e ficou chateado”, explica.

Uma exceção foi uma canção que compôs sob encomenda do cineasta Cacá Diegues para o filme que ele rodava à época, intitulado “Bye Bye Brasil”. “Foi um processo muito louco. Alguns meses antes do lançamento, o Cacá me convidou para fazer a música. Fiquei empolgado, entreguei praticamente no dia seguinte. O Chico Buarque ficou de fazer a letra. Porém, o tempo foi passando e nada de ele entregar a letra. Às vésperas do lançamento, Cacá e eu estávamos no estúdio, ele me pediu para fechar a música como instrumental. Eu já estava mixando quando o Chico abriu a porta e adentrou carregando um monte de folhas, emendadas uma na outra, como se fosse um grande pergaminho. E eu não podia parar a edição da música, tempo escasso. Eis que o Cacá pegou uma tesoura, separou um metro daquele extenso rolo e cortou. A letra, que era quilométrica, terminou naquele ponto. Mesmo assim é uma letra ótima, percorre todo o Brasil. Ficou uma canção genial. Infelizmente, não tive a oportunidade de ler o restante da letra. Mas o Cacá leu”, conta.

Ao longo de uma carreira que se espalha por mais de 60 anos, Menescal compôs aproximadamente mil músicas, e gravou 30 LPs e CDs e diversos DVDs. A relação de nomes com quem trabalhou, seja atuando nos palcos ou nos bastidores, como compositor e produtor, constituiu um verdadeiro quem é quem da MPB e da música mundial, passando por Sylvinha Telles, Maysa, Elis Regina, Wanda Sá, Marcos Valle, Joyce Moreno, Carlos Lyra, João Donato, Celso Fonseca, Dori Caymmi, Leila Pinheiro, Paul Winter, Toots Thielemans, Herbie Mann, Andy Summers, Cris Delanno, Vinícius de Moraes, Aracy de Almeida, Billy Blanco, Ronaldo Bôscoli, Alaíde Costa, Eliane Elias, Os Cariocas, Tereza Cristina, Oswaldo Montenegro, Alcione, Emilio Santiago, Fernanda Takai, Erasmo Carlos, Caetano Veloso, Gal Costa, Gilberto Gil, Chico Buarque, Nara Leão, Maria Bethânia, Jorge Benjor… E ainda faltam nomes a citar.

Atualmente, ao lado da sua grande parceira musical Leila Pinheiro, apresenta o show ” Leila Pinheiro & Menescal: Bossa Nova 65 anos”, onde interpretam vários clássicos do gênero. Os dois se apresentam em São Paulo, no Blue Note, no próximo dia 5 de abril. “Sou muito grato por ter conseguido trilhar essa minha trajetória dentro da música. Digo que eu sou um pouco de violão, um pouco de arranjador e um pouco de produtor. Tudo isso me motiva e me deixa feliz. Sigo tocando e produzindo bastante até hoje.”

Confira abaixo a entrevista completa no Podcast MPB Unesp.