Pesquisadores da Unesp que atuam no sul do Piauí estão estudando os efeitos e a expansão de uma nova forma de grilagem que afeta a região. Denominada de green grabbing, ela associa o uso de sistemas digitais de georreferenciamento e a utilização de brechas nas leis ambientais para lograr a apropriação de terras públicas e de áreas habitadas por comunidades tradicionais de pequenos agricultores. Um artigo relatando os resultados da pesquisa foi publicado na Revista NERA, ligada ao Núcleo de Estudos, Pesquisas e Projetos de Reforma Agrária, da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Unesp, câmpus de Presidente Prudente.
Há décadas, os estudiosos da economia rural estão familiarizados com o land grabbing. Esta expressão em inglês identifica um fenômeno geopolítico global. Impulsionados pela demanda mundial por terras, grupos econômicos multinacionais poderosos movimentam-se continuamente para assumir o controle de vastos territórios e recursos naturais em todo o planeta. Estes grupos privilegiam a produção agrícola no formato de monocultura, redundando em múltiplos impactos que incluem o enfraquecimento do solo, os danos aos ecossistemas e a contribuição para as mudanças climáticas.
Já o green grabbing é um mecanismo particularmente perverso, pois é a mesma apropriação de terras e recursos naturais por empresas com muito capital, porém disfarçada sob a justificativa de proteger o meio ambiente. Além dos danos já conhecidos associados à monocultura extensiva, a prática pode levar ao deslocamento de comunidades locais, conflitos sociais e ao comprometimento da segurança alimentar.
Os estudos no sul do Piauí envolvem Samuel Frederico e Marina Castro de Almeida, professores do Departamento de Geografia e Planejamento Ambiental da Unesp do Instituto de Geociências e Ciências Exatas, em Rio Claro, e a doutoranda Bruna Henrique Albuquerque. Os três assinam juntos o artigo relatando a pesquisa, que recebeu apoio da Fapesp e foi conduzida na comunidade de Melancias.
Comunidade surgiu após abolição da escravatura
Com origens que remontam ao período imediatamente posterior à abolição da escravatura (1888) — quando grupos de escravizados recém-libertos se estabeleceram nas terras férteis dos vales das muitas chapadas da região —, Melancias é uma comunidade tradicional baseada na agricultura familiar situada em uma região de serras no sul do estado. Atualmente, ela compreende cerca de 50 famílias espalhadas em seis pequenos núcleos, que sobrevivem de culturas de subsistência, extrativismo vegetal, caça, pesca e da criação de animais.
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Melancias está incrustada praticamente no centro de uma macrorregião conhecida como Matopiba, que abrange o sul do Maranhão, o oeste de Tocantins, o sul do Piauí e o noroeste da Bahia. O Matopiba é hoje uma das áreas mais cobiçadas pelo agronegócio por seu clima com chuvas bem distribuídas e uma topografia predominantemente plana, característica do Cerrado.
Samuel Frederico, coordenador da pesquisa e docente do Programa de Pós-Graduação em Geografia na Unesp em Rio Claro, explica que “a mágica do green grabbing só acontece porque se vale de uma cortina de fumaça de legalidade”. Pelo Código Ambiental Brasileiro, editado em 2012, todas as propriedades rurais devem, obrigatoriamente, preservar parte de seu terreno, a chamada reserva legal. No bioma Cerrado, onde se localiza a comunidade de Melancias, a reserva legal deve ser de 20% da área total das propriedades rurais.
A grilagem recorre ao CAR
O Cadastro Ambiental Rural, ou simplesmente CAR, foi criado em 2012. Nas palavras dos pesquisadores da Unesp, trata-se de “um instrumento engenhoso e surpreendente”. Engenhoso porque é um sistema online que reúne todas as informações ambientais exigidas para a regularização de qualquer propriedade rural no Brasil. O cadastro é feito com base em coordenadas de georreferenciamento, definindo o perímetro do imóvel e apontando quais partes são produtivas e quais são reserva legal ou mesmo áreas de proteção permanente (como nascentes, margens de rios e outras).
É surpreendente por ser autodeclaratório, ou seja, os próprios proprietários preenchem os dados e indicam a situação ambiental de seu imóvel. Embora o sistema tenha sido muito criticado na época de seu lançamento, seu uso se difundiu e, apesar da existência de fraudes, vem funcionando muito melhor do que o esperado em diversas regiões do Brasil, contribuindo para a melhora da qualidade dos dados disponíveis sobre propriedades rurais.
Com o avanço do agronegócio extensivo na região da comunidade de Melancias, plantações, sobretudo de soja, se espalharam pelas áreas das chapadas. O terreno plano possibilita a mecanização da produção, com o uso de máquinas para plantar e colher os grãos. Entre a chegada das primeiras fazendas de grãos, em 1985, até o ano de 2015, a área utilizada para a monocultura aumentou mais de 1.400%, praticamente cercando todo o território ocupado por Melancias (veja quadros abaixo).
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O pesquisador da Unesp diz que a maior parte das áreas ocupadas pelo avanço das fazendas consistia em terras devolutas, que foram sendo apropriadas de forma privada por uma série de mecanismos ilegais. Com o tempo, houve o esgotamento natural de parte do solo. Ao mesmo tempo, a legislação obrigou os proprietários a destinar 20% do bioma Cerrado de suas fazendas para a reserva legal. “Como ocuparam a quase totalidade das áreas chapadas com a produção de soja, não havia onde [os proprietários] alocarem a reserva legal. Onde eles começaram a alocar a reserva legal? Sobre os vales fluviais”, explica Frederico.
No preenchimento do CAR, os donos das fazendas passaram a apontar as áreas dos vales como sendo parte do seu território. Essa estratégia atende dois objetivos. Primeiro, regulariza a situação ambiental das fazendas, ao descrever as áreas preservadas dos vales como se fossem a sua reserva legal obrigatória. Segundo, possibilitam uma ampliação da área dos imóveis rurais ao avançar sobre as chamadas terras devolutas, que são áreas públicas que não têm uma destinação específica pelo poder público. Junto com as terras, os fraudadores passam a ser “donos” também das margens dos rios que cortam os vales. Com isso, o ciclo do green grabbing se fecha.
“A ideia de green grabbing deriva desse conceito maior, da narrativa e da justificativa de proteção ambiental e de mitigação das mudanças climáticas para se apropriar das terras”, diz o pesquisador.
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Os moradores da comunidade de Melancias não possuem títulos, escrituras ou quaisquer outros documentos que lhes assegurem a posse da terra, embora seus antepassados lá residam há gerações. E há outro agravante. Frederico explica que a Constituição Federal somente reconhece a titulação de terras ocupadas por grupos indígenas e quilombolas. Melancias nunca foi um quilombo e se autodeclara como comunidade ribeirinha tradicional. Por isso, apesar de habitarem a região há mais de um século, não detêm a posse das terras que ocupam.
A luta das famílias ribeirinhas da região pelo reconhecimento de seu território se tornou um caso emblemático da violência sofrida pelos povos e comunidades tradicionais em virtude do avanço das fronteiras agrícolas. Hoje, a comunidade conta com o apoio de organizações civis e sociais nacionais e estrangeiras, que oferecem suportes como assessoria jurídica, elaboração e veiculação de relatórios de denúncia, atuação junto ao poder público e organizações supranacionais.
Em 2020, a Justiça Federal concedeu, em caráter liminar, a suspensão de “qualquer atividade que represente perturbação da posse tradicional exercida pela comunidade de Melancias”. A ação foi proposta pelo Ministério Público Federal (MPF), que apontou omissão e a responsabilidade do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e do Instituto de Terras do Piauí (Interpi).
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Para o MPF, os órgãos públicos falharam em não promover a regularização fundiária do território ocupado por Melancias. Com isso, contribuíram para a instabilidade social e os conflitos fundiários na região. No entanto, a decisão definitiva sobre a posse das terras não tem data para sair.
Green grabbing já se disseminou no país
Bruna Henrique Albuquerque diz que o caso de Melancias é apenas mais um entre outros similares que estão ocorrendo no Brasil, principalmente em locais onde as fronteiras agrícolas avançam sobre terras devolutas. “Infelizmente, é generalizado. Há muito impacto nas comunidades locais. Grileiros e grandes grupos econômicos estão usando o CAR ou mesmo o SIGEF [Sistema de Gestão Fundiária], que é o cadastro digital do Incra, que também é autodeclaratório, para o cercamento de terras”, diz ela.
Apesar de testemunhar um exemplo direto de mau uso das ferramentas digitais de gestão ambiental, ela acredita que os sistemas atuais são bons e precisam de aperfeiçoamento, não de uma refundação. “Como geógrafa, acho a informação geoespacial extremamente necessária. Com estes sistemas, conseguimos implementar políticas públicas”, avalia. “A forma como o sistema tem sido utilizado é o problema. Mas é importante ter os imóveis rurais organizados para sabermos onde estão e quem são os donos, ou quem alega ser”, diz.
Frederico concorda. “A simples existência do cadastro traz vantagens para o órgão regulador. A despeito da qualidade da informação fornecida, a partir dele as autoridades se tornaram capazes de identificar o responsável legal pelo imóvel. Todo CAR exige a inclusão de dados sobre o proprietário ou posseiro, bem como sobre os respectivos títulos que respaldam a situação fundiária descrita no cadastro”, explica.
“Se melhorarmos a fiscalização dos registros já será um grande avanço. O Brasil é enorme, e é praticamente impossível que se verifique pessoalmente todas as propriedades. Então, uma solução é priorizar áreas sensíveis, que abriguem comunidades tradicionais já existentes, e também comunidades quilombolas e indígenas”, diz.
Imagens acima: Samuel Frederico.