Com ferramentas de IA e nova lei para regular plataformas de apostas, Brasil busca combater escândalos e fraudes que já infectaram até divisões de base do futebol

CPI que tentou investigar denúncias ano passado terminou em fracasso. País ocupa primeiro lugar em ranking de alertas de possíveis golpes emitidos por algoritmos especializados. Porém, problema de manipulação de resultados é global e prejudica diversas modalidades esportivas.

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Um goleiro do Nacional Atlético Clube, time de futebol de São Paulo que está disputando a edição 2024 da Copa São Paulo de Futebol Júnior, procurou esta semana a Federação Paulista de Futebol para relatar uma tentativa de suborno. Pela denúncia, o goleiro teria recebido oferta de R$ 10 mil para levar dois gols numa partida contra o Avaí de Santa Catarina. A denúncia chegou à Delegacia de Repressão aos Delitos de Intolerância Esportiva, que informou na quarta-feira já ter identificado o autor da proposta.

Esta não foi a primeira denúncia de manipulação de resultados envolvendo o time catarinense. Em  12 de novembro de 2022, em jogo pela última rodada do campeonato brasileiro, aliás vencido antecipadamente pelo Palmeiras, o “Leão da Ilha”, que inclusive já estava matematicamente rebaixado, arrancou uma surpreendente vitória por 2×1 sobre o Flamengo.

O resultado levantou suspeitas e entrou na mira do Ministério Público. Nos últimos dias de novembro passado, a operação Penalidade Máxima, conduzida pelo Ministério Público de Goiás desde o início de 2023 cumpriu mandados de busca e apreensão em oito cidades de cinco Estados, a fim de levantar informações sobre os resultados de sete partidas do campeonato brasileiro de 2022 — entre elas a vitória do time catarinense sobre o rubro-negro carioca.  Desde o início da operação, pelo menos 15 jogadores de equipes das séries A e B do Brasileiro já viraram réus, além de outros envolvidos com o esquema criminoso.

Na prática, os atletas que estão respondendo à Justiça se comprometeram, antes mesmo de entrarem em campo, a desempenhar lances aparentemente normais de uma partida, tais como receber um cartão amarelo ou vermelho, cometer um pênalti, garantir uma derrota parcial no 1º tempo, assegurar um determinado número de escanteios contra ou a favor e assim por diante. Nas plataformas de apostas, que funcionam como verdadeiras casas esportivas eletrônicas, todas essas variáveis atreladas ao jogo de futebol podem render ganhos interessantes para o apostador. Esse também foi o caso da tentativa de suborno ao goleiro do Nacional relatada à FPF. Segundo a denúncia, a proposta exigia que os gols deveriam acontecer, obrigatoriamente, durante o primeiro tempo. A polícia de São Paulo não informou em qual plataforma a aposta foi feita.

Acumulam-se as polêmicas que envolvem os sites de apostas esportivas no Brasil, modalidade de jogo online que, num intervalo de tempo de poucos anos, se tornou um fenômeno de engajamento, de influência – eles patrocinam todas as 20 equipes de série A e as 19 da série B, por exemplo – e de movimentação de recursos. De olho nesses recursos, o governo federal apresentou, no ano passado, um projeto de lei para regular a atividade desses sites. O PL 3.623/2023 tramitou com velocidade inaudita e foi aprovado no penúltimo dia de 2023, dando origem à lei 14.790. Essa lei estabelece regras, determina a necessidade de taxação e até determina a destinação dos recursos, que segundo previsões do Ministério da Fazenda podem chegar a R$ 2 bilhões em 2024.

Mas, embora sua aprovação tenha sido saudada inclusive pelos empresários do setor de apostas, como um avanço no combate às possíveis fraudes, hoje a mais importante ferramenta para detectar falcatruas são os algoritmos de Inteligência Artificial.

Um problema global

O problema das fraudes associadas a apostas on-line é planetário. Em nota, ao comentar as operações conduzidas pelo Ministério Público de Goiás, a Confederação Brasileira de Futebol declarou que as “interferências externas em resultados ou em situações de jogo são uma epidemia global”, e que a solução passa por “punir, de forma exemplar e urgente, os responsáveis por essa prática nefasta”.

Essa avaliação é compartilhada por entidades como a International Betting Integrity Association (IBIA), que representa parte da indústria internacional de empresas de apostas licenciadas. Relatório da IBIA divulgado em outubro apontou 50 eventos suspeitos de apostas apenas no segundo trimestre de 2023, com 56% envolvendo apostas em competições de futebol e de tênis. Felizmente, isso representa uma queda em relação aos 178 casos suspeitos registrados apenas no terceiro trimestre de 2022. 

No tênis, as investigações sobre as fraudes já resultaram em condenações e banimentos importantes. Em junho, a Justiça da Bélgica condenou a cinco anos de reclusão por organização criminosa, lavagem de dinheiro e fraude um imigrante armênio residente no país, de nome  Grigor Sargsyan. Ele é acusado de gerir um esquema que articulava 180 tenistas de 35 países, e que teria rendido ao armênio, ao longo de dois anos, ao menos US$ 9,6 milhões. Assim como no caso do futebol, os tenistas acusados recebiam suborno para provocar a ocorrência de certos eventos específicos no jogo, não necessariamente afetando o resultado final.

Mas o caso mais emblemático talvez seja o do tenista japonês Junn Mitsuhashi, que em 2017 foi multado em 45 mil euros e banido do esporte pelo resto da vida por conta de fraudes em partidas pela Unidade de Integridade do Tênis. O tenista, que chegou a ocupar a posição número 295 do ranking da ATP em 2009, foi acusado de coagir outros jogadores e apostar em mais de 70 partidas de tênis.

Nos Estados Unidos, a legalidade das apostas também é recente. Desde 2018, a Suprema Corte americana passou a considerar legal a prática das apostas esportivas. Em 2023, com um grande escândalo registrado em setembro no futebol americano universitário, os debates sobre ética e vícios entre os jovens ganharam o país. Não que tenha sido a primeira vez, muito pelo contrário, mas como disse o ex-jogador Charlie Baker, presidente da NCAA (a entidade que regula o basquete universitário) o fato de tudo poder ser feito ao alcance das mãos, nos celulares, abre um grande desafio, inclusive em termos educativos para todos, principalmente para os estudantes atletas.

No episódio de setembro, cinco jogadores não entraram em campo no clássico da bola oval entre Iowa Hawkeyes e Iowa State Cyclones. Todos, inclusive o quarterback e astro do Cyclones, estão respondendo na Justiça por terem quebrado as regras das apostas esportivas. Alguns deles, inclusive, apostaram em suas próprias equipes.

Em um mercado que, segundo a American Gaming Association, registrou um gasto de mais de US$ 93 bilhões por parte dos apostadores em jogos esportivos apenas em 2022, antecipar-se aos grandes escândalos é a forma mais segura de tentar diminuir o problema.

De olho no lance, e nos apostadores

Dirigentes das principais ligas do país afirmaram à imprensa americana, em anonimato, terem ficado assustados e em alerta por causa do escândalo em Iowa. O remédio tem sido a contratação de empresas especializadas em buscar falhas nas integridades dos processos. Profissionais com experiência em analisar fundos de investimentos em Wall Street para erradicar negócios suspeitos, por exemplo, estão agora migrando para a análise de apostas esportivas. Uma das empresas contratadas pelas grandes ligas é a US Integrity, com sede em Las Vegas. No caso da NCAA, os sistemas de vigilância eletrônica disparam de 15 a 20 notificações para os operadores de apostas esportivas e escritórios reguladores por mês. A competição abarca um total de 363 times na primeira divisão.

Também no Brasil esses sistemas de alerta, baseados em Inteligência Artificial, estão sendo cada vez mais importantes. “Em 2023, apenas no mercado brasileiro, foram enviadas às casas de apostas que usam o nosso sistema 78 notificações de atividades suspeitas”, explica Guilherme Buso, líder de esportes e apostas para o mercado brasileiro da empresa Genius Sports, especializada em tecnologia digital. Desse total, 40 eventos receberam uma análise mais detalhada por parte da equipe técnica internacional da Genius Sports. No ranking de países do mundo onde está disponível a tecnologia para esse tipo de análise aprofundada, o Brasil aparece como o primeiro em número de alertas.

Operando a partir de padrões preestabelecidos que mapeiam a conduta dos apostadores durante uma partida de futebol, os algoritmos espiões conseguem identificar, em tempo real, quando algo muito fora da curva, em termos de mudanças de comportamento, ocorre. Essas guinadas servem como indício de que algum resultado merece ser mais bem investigado.

“Se durante o jogo, por exemplo, muda o time favorito devido a um ou mais gols que ocorrem em momentos-chaves, isso faz parte do processo. A questão é quando uma grande quantidade de apostas começa a ocorrer ao mesmo tempo, em um jogo único, sem motivo aparente”, explica Buso. O executivo também esclarece que, em muitos casos, os alertas não significam que exista realmente algo ilícito ocorrendo por trás daqueles movimentos dos apostadores.

“Perceber uma anomalia em uma série de dados históricos não chega a ser uma novidade. Os chamados modelos autorregressivos nos permitem fazer isso há bastante tempo,”, diz Leopoldo Lusquino Filho, professor do Instituto de Ciência e Tecnologia da Unesp em Sorocaba. 

“Porém esses sistemas que usam machine learning e Inteligência Artificial trouxeram uma inovação. Nas soluções mais antigas, você tinha que saber o que estava procurando. Ou seja, você precisava ter uma ideia, mais ou menos, de qual era a anomalia. Já os modelos atuais permitem o rastreamento das anomalias nos dados mesmo quando você não conhece muito bem o comportamento delas”, diz.

IA detecta padrões que a mente humana não identifica

A pesquisa de Lusquino busca identificar eventos climáticos extremos e desenvolver um modelo que ajude no monitoramento de reservatórios hidrológicos, como os do rio Sorocaba. Para isso, ele busca encontrar “pontos fora da curva” nas séries históricas de dados das enchentes na região de Sorocaba. Ele diz que, se antes a tecnologia disponível possibilitava analisar os dados e os atributos atrelados a eles, hoje se pode estudar  correlações entre cada um dos atributos. “Isso facilita identificar quais são os padrões, e o que é algo fora do comum. Muitas vezes é possível detectar, inclusive, informações que fogem da cognição humana. Ou seja, são padrões que o raciocínio humano não conseguiria captar sozinho”, diz Lusquino.

No caso do futebol, há sistemas de monitoramento que avançam sobre questões ainda mais complexas de uma partida. Por meio do vídeo completo de um jogo podem-se detectar, inclusive, erros dos jogadores que podem estar atrelados ao sucesso de uma aposta suspeita – um gol contra bizarro, por exemplo. Decisões não triviais de árbitros e treinadores também são rastreadas com base em análises de dados mais robustas. “Isso não é hipotético. Esses sistemas estão operando agora, inclusive no Brasil, durante os jogos”, diz Buso.

Outro desdobramento desses sistemas de busca inteligente é a possibilidade de aplica-los para diferentes fins. Todos os mecanismos de movimento empregados na movimentação de um robô quadrúpede, por exemplo, podem ser extrapolados para o caso de um robô bípede. E mesmo um modelo sofisticado usado para detectar anomalias climáticas pode, quem sabe, servir também para encontrar padrões fora da curva em exames cardíacos. “É exatamente nesse tipo de projeto que também estou trabalhando agora”, diz.        

CPI teve denúncia de propina

A necessidade de regular o setor das plataformas de apostas no Brasil ganhou destaque ano passado por diferentes razões. Após as revelações que vieram à baila graças ao trabalho do Ministério Público de Goiás, teve início em maio uma CPI na Câmara dos Deputados para investigar a manipulação dos resultados no campeonato brasileiro. Durante seus 132 dias de funcionamento, foram ouvidos dirigentes da CBF, jogadores investigados pelo MP/GO, representantes de associações de casas de apostas e representantes de empresas relacionadas a marketing esportivo e também de órgãos de transparência no esporte. Porém, uma denúncia, veiculada na imprensa, de que o relator da CPI teria solicitado propina para não prejudicar as plataformas de apostas, tornou o ambiente muito mais confuso. No final, a CPI encerrou-se sem apresentar sequer um relatório final com suas conclusões.

E um escândalo ainda mais amplo explodiu em junho, quando começaram a pipocar na mídia denúncias envolvendo a plataforma de apostas Blaze, uma das mais populares. Vários veículos noticiaram denúncias de que milhares de apostadores estavam se queixando de não receberem pagamentos correspondentes às premiações mais elevadas. Ocorre que alguns dos mais célebres youtubers brasileiros, com milhões de seguidores em suas redes sociais, eram pagos para fazer propaganda da plataforma. Os influenciadores digitais correram para suspender seus contratos e se distanciarem da empresa, mas o escândalo respingou em suas reputações  

A polícia de São Paulo passou a investigar a plataforma, o que resultou no bloqueio de R$ 101 milhões pela Justiça de São Paulo, em setembro. Essa medida, no entanto, tem efeito incerto, pois a empresa está sediada no Caribe, e assim não está sujeita à legislação brasileira (embora as investigações sugerem que entre os donos da Blaze estão três brasileiros). Aliás, até agora, todas as empresas digitais que oferecem estes serviços de apostas por aqui operam a partir do exterior.

Lei proíbe apostas de certos agentes para combater fraudes

Não à toa, esse ponto é explicitamente alterado pela nova lei 14.790. A legislação vale igualmente para apostas físicas e virtuais e possui caráter abrangente, indo desde a regulação da operação das plataformas até a incidência das taxas e a destinação dos recursos. De cara, as plataformas que queiram operar no mercado brasileiro serão obrigadas a se constituir de forma a possuir sede e administração no Brasil. As empresas podem ficar com 88% do prêmio arrecadado, e os demais 12% vão para o governo. Já os apostadores devem pagar 15% dos prêmios a título de imposto de renda. O dinheiro arrecadado pela tributação será repartido entre seis ministérios e outras instituições. Estão proibidos de apostar menores de idade e pessoas com transtorno de jogo patológico.

Para minimizar a incidência de fraudes a legislação também veda a possibilidade de apostas de pessoas com influência significativa nas plataformas, agentes públicos ligados à fiscalização da atividade, pessoas com acesso aos sistemas informatizados de loteria e pessoas que possam influenciar os resultados dos eventos esportivos, como árbitros, atletas e dirigentes esportivos.

 Ainda não se sabe se as plataformas irão efetivamente buscar caminhos para nacionalizar sua atividade, tal como exigido pela lei. E houve quem se queixasse de que a alíquota ficou alta demais. Porém, a necessidade de regulação era uma demanda do próprio setor. “Apesar da falta de regulamentação no Brasil, não era ilegal que as pessoas apostassem. Mas todos os envolvidos com o setor querem mais transparência e regras claras. Isso é bom para todo mundo”, diz Buso.

Antes das apostas eletrônicas, futebol já tinha histórico de fraudes reveladas

Embora pareça que os casos de manipulação de resultados no futebol estejam pipocando mundo afora com mais frequência – essa é a percepção geral expressa pelos entrevistados, ainda que não exista qualquer estudo detalhado para corroborá-la – vários episódios parecidos estão registrados na história esportiva desde o século passado, inclusive no Brasil.

Um dos primeiros grandes escândalos envolvendo manipulação de resultados no futebol nacional eclodiu em 1982. Na época, a revista esportiva Placar estampou na capa de uma edição de outubro “Desvendamos a máfia da loteria esportiva”. Após uma investigação de meses do repórter Sérgio Martins, a reportagem revelava o envolvimento de 125 acusados no esquema que fraudava resultados do principal jogo de azar da época em favor de um grupo de apostadores. Estavam envolvidos árbitros, cartolas, técnicos, personalidades nacionais e jogadores, dentre estes dois campeões da Copa do Mundo:  Amarildo, da seleção de 1962, e Marco Antônio, do escrete de 1970. “Era algo que muitos sabiam, mas que ninguém provava, apesar de estar em andamento um inquérito na Polícia Federal do Rio de Janeiro”, diz o texto da reportagem, que pode ser lido integralmente aqui.

Outro caso igualmente estarrecedor ocorreu em 2005, no episódio que ficou conhecido como Máfia do Apito. A investigação jornalística, dessa vez, coube aos repórteres da revista “Veja”. O trabalho mostrou que havia uma relação próxima entre alguns árbitros de futebol com apostadores esportivos. Após a denúncia, e a apuração dos fatos por parte do STJD (Superior Tribunal de Justiça Desportiva), 11 partidas da edição daquele ano da primeira divisão do campeonato brasileiro foram anuladas, por suspeita de os resultados terem sido manipulados pela arbitragem. 

Decisão que, inclusive, mudou o resultado final daquele certame. Se os resultados iniciais fossem mantidos, o Sport Clube Internacional, de Porto Alegre, teria levantado o caneco. Mas como os jogos foram realizados novamente, e alguns resultados mudaram, o título acabou ficando com o Sport Clube Corinthians Paulista. A equipe de São Paulo, que havia perdido pontos na primeira sequência, os recuperou, com vitórias, quando os jogos foram repetidos.

Apesar dos trabalhos jornalísticos, e das investigações policiais e da Justiça, nunca ninguém foi condenado pela manipulação de resultados nem em 2005 e muito menos em 1982. A principal pena, entretanto, foi o banimento da cena esportiva de alguns envolvidos. Depois da Máfia do Apito, os árbitros Edílson Pereira de Carvalho e Paulo José Danelon nunca mais comandaram o apito dentro das quatro linhas. Em 1982, 20 pessoas chegaram a ser indiciadas, mas ninguém foi preso ou condenado.

Fora do Brasil, entretanto, segundo levantamento feito pelo advogado Pedro Fina, várias condenações internacionais também foram registradas no âmbito da Court of Arbitration for Sport (TAS-CAS). Clubes como o SL Benfica (2008), Besiktas (2013) e Fenerbahçe SK (2013), dirigentes (FK Pobeda, 2009), atletas (Kevin Sammut, 2012) e até árbitros (Joseph Lampty em 2017) foram declarados culpados e penalizados. Nesse caso do juiz, o afastamento em definitivo do futebol se deu por ele ter manipulado o resultado de uma partida válida pelas eliminatórias da Copa do Mundo FIFA de 2018, realizada na Rússia.

Imagem acima: Depositphotos