O plasma humano, uma substância viscosa que forma a parte líquida do sangue, está no centro de um debate que afeta diretamente a vida de milhares de brasileiros e mobiliza grandes interesses financeiros, mas que tem suscitado relativamente pouco interesse por parte da mídia.
O motivo da polêmica é a Proposta de Emenda Constitucional 10/2022, que ficou conhecida como PEC do Plasma. Apresentada por um grupo de 25 senadores, tem o propósito de alterar um trecho da Constituição Federal de 1988 que proíbe todo tipo de comercialização de órgãos, tecidos e substâncias humanas para fins de transplante ou na coleta, processamento e transfusão de sangue e derivados, incluindo-se aí o plasma sanguíneo. A alteração proposta permitirá a coleta e a comercialização do plasma humano pela iniciativa privada para fins de uso laboratorial, desenvolvimento de novas tecnologias, e a produção, nacional e internacional, de medicamentos hemoderivados pelos setores público e privado.
O plasma é composto por grandes quantidades de água, eletrólitos, gases e proteínas como a albumina, gamaglobulina e a imunoglobulina, que defendem o corpo da ação de vírus, bactérias ou toxinas. Para aproveitar essas propriedades, são produzidos medicamentos derivados do sangue humano, denominados hemoderivados. Os hemoderivados são usados para tratar pessoas com distúrbios de coagulação, como a hemofilia, além de doenças autoimunes, cirrose, câncer, hepatite, queimados e quadros ligados a imunodeficiências, como o ocasionado pelo vírus HIV.
Devido à polêmica que suscitou entre os senadores, o projeto da PEC 10/2022 sofreu diversas modificações até ser aprovado, no início de outubro, pelos senadores da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado (CCJ). Esta aprovação é necessária para posteriormente seguir para uma votação final nos plenários do Senado e da Câmara.
O principal ponto de discórdia foi uma emenda inserida pela relatora da PEC, a senadora Daniella Ribeiro (PSB-PB), que permitia o pagamento pela doação de sangue ou plasma, algo que já foi legal no Brasil nos anos 1970. A proposta causou uma reação contrária de grandes proporções por parte de entidades e instituições da área da saúde, incluindo o Ministério da Saúde, o Conselho Nacional de Saúde, a Coordenação Geral de Sangue e Derivados do Ministério da Saúde e a Associação Brasileira de Hematologia Hemoterapia. Para que o projeto fosse aprovado na CCJ, a relatora foi obrigada a retirar o trecho que autorizava explicitamente o pagamento pela coleta do plasma e escrever uma nova proposta de texto. Mesmo isso, no entanto, não foi suficiente para apaziguar os críticos.
O senador Marcelo Castro (MDB-PB) releu o projeto substitutivo redigido pela senadora Daniella Ribeiro (PSB-PB) e concluiu que o texto final, já votado e aprovado pelos senadores, deixa ainda margem para uma interpretação dúbia sobre a proibição do pagamento pelo sangue. “O que está escrito no texto da PEC – e eu posso submetê-lo a cem professores de português, e eu duvido que algum deles discorde – está permitindo que o sangue humano, o plasma humano, seja comercializado”, disse o senador Castro. “Para quem sabe interpretação de texto, tanto faz eu dizer que a coleta de sangue é remunerada como dizer que é proibida a comercialização de sangue, exceto do plasma”, disse o parlamentar.
Atualmente, Brasil chega a descartar plasma
A PEC do Plasma incide sobre uma área problemática para o atendimento à saúde no Brasil. O país não produz nenhum tipo de hemoderivado, e é obrigado a adquirir esses medicamentos de companhias farmacêuticas estrangeiras. Na área pública, a compra é feita pelo Ministério da Saúde, com distribuição dessas medicações pelo Sistema Único de Saúde, mas a rede privada também importa hemoderivados. Uma das consequências dessa falta de autossuficiência é que os estoques de hemoderivados estão sempre abaixo das necessidades. Isso faz com que muitos pacientes com quadros graves e necessitados desses medicamentos não recebam tratamento adequado. “Isso ocorreu recentemente, durante a epidemia de Covid-19”, relata o hematologista Dante Langhi, diretor executivo da Associação Brasileira de de Hematologia, Hemoterapia e Terapia Celular (ABHH).
“O Brasil consome em torno de 16 g de imunoglobulina para cada mil habitantes hoje. Países desenvolvidos como Estados Unidos e Austrália consomem atualmente de 250 g a 300 g por mil habitantes”, disse Langhi ao Jornal da UNESP. Ele se diz completamente contrário ao pagamentos pelas doações de sangue e à venda do plasma, mas vê outros aspectos positivos na PEC. “Essa emenda constitucional é importante para permitir que a iniciativa privada venha se instalar aqui para processar o plasma brasileiro e fabricar os medicamentos”, diz Langhi.
Para suprir a demanda anual por estes medicamentos no sistema público de saúde, o governo gasta cerca de US$ 1,5 bilhão com a compra de hemoderivados de empresas farmacêuticas que são produzidos fora do Brasil. Boa parte desse dinheiro é gasto com Fatores de Coagulação 8 e 9, usados pelos 14 mil de hemofílicos atendidos pelo SUS.
Uma das fornecedoras de hemoderivados é a empresa suíça Octapharma, que mantém negócios com o governo brasileiro na área do sangue há bastante tempo. Em abril de 2021, a Octapharma assinou um contrato de transferência de tecnologia com a Hemobrás (Empresa Brasileira de Hemoderivados e Biotecnologia) para coletar o excedente do plasma brasileiro e fracioná-lo nas suas fábricas instaladas na França, Áustria e Alemanha. Entre vários produtos, a empresa nos vende de volta a imunoglobulina com um valor que considera o serviço prestado, a um preço de R$ 1.800 o frasco. O preço do mesmo frasco chega a mais de R$ 4 mil para as importadoras e em compras emergenciais, segundo disse o senador Jaques Wagner (PT-BA) na votação do texto substitutivo.
Os hemocentros brasileiros fazem apenas o processamento do sangue por centrifugação, o que garante a separação do plasma puro das células sanguíneas e a produção de concentrados de hemácias, plaquetas e crioprecipitados, todos usados em terapias. O resultado é chamado de Plasma Fresco Congelado (PCF). Essa substância é distribuída a hospitais e centros médicos pelo Ministério da Saúde. A estimativa é de que apenas 10% a 15% do plasma processado pelos hemocentros brasileiros seja aproveitado. O excedente precisa ser congelado rapidamente em câmaras frias com temperaturas abaixo de -18ºC.
Como esse procedimento tem custo elevado, o resultado é que grandes quantidades de PCF não chegam a ser aproveitadas, e, ao perder o prazo de validade, precisam ser descartadas. Em 2020, cerca de 600 mil litros de plasma processado não foram empregados na produção de hemoderivados, conforme uma notificação do Tribunal de Contas da União ao Ministério da Saúde. Segundo o Ministério Público, isso equivale a mais de 2,7 milhões de doações de sangue.
Não faz muito tempo, o hemocentro do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Botucatu, em São Paulo, passou por uma auditoria da Octapharma e recebeu certificação da Hemobrás que lhe permite doar o seu plasma excedente à empresa suíça. No entanto, segundo o diretor do hemocentro, Cláudio Lucas Miranda, durante praticamente seis anos, até maio passado, isso não foi possível.
“Desde 2017 até maio desde ano, estávamos literalmente jogando plasma fora aqui no hemocentro de Botucatu, assim como ocorria também em muitos outros locais. Não havia para quem enviar, e a cada dois meses precisávamos descartar o material. É um escândalo, um desperdício de vida, de dinheiro, de tudo”, diz.
Em uma doação de sangue padrão de 450 ml estima-se que seja possível obter em média 220mlL de plasma. Já em uma coleta por aférese, método que separa de forma automatizada o plasma e as células sanguíneas (glóbulos vermelhos, brancos e plaquetas), devolvendo-as ao doador, este volume pode ser bem maior, mas com custos bastante elevados quando comparados a uma doação de sangue padrão. “Além disto, o tempo de uma doação por aférese pode chegar próximo de duas horas, bem mais do que os 10 minutos que demoram uma doação de sangue convencional”, diz Miranda. Diversos hemocentros públicos e privados já fazem a aférese terapêutica para pacientes que precisam de plasma. “Isso também minimiza o risco para o doador, evitando possíveis complicações durante a doação”, diz Miranda.
Miranda é contrário à PEC 10/2022. Diz que se ela for aprovada, os problemas do setor serão ainda maiores do que hoje. “A PEC 10/2022 é um enorme retrocesso para os serviços hemoterápicos brasileiros, pois coloca em risco a qualidade dos hemocomponentes produzidos pelos bancos de sangue do país, além de colocar em xeque a segurança de toda a medicina transfusional nacional”, alerta.
Os possíveis efeitos da PEC
Para o médico sanitarista Gonzalo Vecina, professor da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo, o verdadeiro objetivo da PEC do Plasma seria viabilizar juridicamente a comercialização do plasma para atender aos interesses das indústrias farmacêuticas e de algumas empresas do setor de saúde.
“O grande problema é que a PEC do Plasma não está interessada em resolver o problema dos hemoderivados no Brasil”, diz Vecina, que é fundador e ex-presidente da Agência Nacional de Vigilância Sanitária. “O que está em discussão nesse projeto é aumentar a captação e vender o plasma para processamento no exterior e não no Brasil, onde deve ser feita essa produção. Forneceremos o plasma e nada garante que será revertido para nós em quantidade e medicamentos a bom preço. Isso é criminoso”, diz.
Os efeitos da PEC podem ir além da comercialização do plasma, diz ele. “Como o sangue é considerado um órgão, há o temor de que uma flexibilização no comércio de componentes seja uma brecha para uma comercialização futura de tecidos e órgãos”, diz Vecina.
Esse preocupação também foi apontada pelo senador e ex-ministro da saúde Humberto Costa (PT-PE) durante a discussão na CCJ do senado. “Não é verdade que aprovar essa PEC não abre possibilidade de coleta remunerada. Se ela for aprovada, estaremos tirando [a matéria] da Constituição, que para ser mudada precisa de três quintos de senadores e deputados, e vamos jogar para [a possibilidade de] uma lei complementar, que pode definir que a coleta passe a ser remunerada, e precisa de apenas uma margem de 50% mais um [dos votos] para ser aprovada”, disse Costa.
Praticado no Brasil durante a década de 1970, o pagamento pela doação de sangue contribuiu para a disseminação de doenças como as hepatites B e C e sífilis, por meio de transfusões de sangue e de plasma contaminados. Nos primeiros anos da década de 1980, com o surgimento do vírus HIV, causador da Aids, e a falta de testes mais avançados para o controle de doenças, as pessoas que necessitavam de transfusões de sangue contendo proteínas capazes de promover a coagulação do sangue, como no caso dos indivíduos com hemofilia, enfrentavam o risco iminente de contaminação. Nos anos 1980, esta repórter perdeu dois primos com hemofilia que contraíram o HIV em transfusões de hemoderivados e morreram. O aumento alarmante das mortes associadas ao sangue contaminado trouxe o tema para o centro das atenções dos defensores do movimento da Reforma Sanitária, uma iniciativa nascida no contexto da luta contra a ditadura, no início da década de 1970, para defender transformações necessárias na área da saúde. Graças à movimentação do grupo, foi incluído na Constituição Federal de 1988 um o artigo que proíbe explicitamente a comercialização do sangue e estabelece a gratuidade desse procedimento.
Embora tenha sido aprovada na CCJ do Senado, a PEC 10/2022 está estrategicamente parada, por decisão do presidente da casa, o senador Rodrigo Pacheco (PSD-MG). O parlamentar diz que manterá esta abordagem enquanto não for resolvida a questão da redação dúbia do texto, que proíbe a comercialização do sangue, mas não do plasma.
Hemobrás, um capítulo à parte
A esperança mais concreta das autoridades brasileiras para reduzir a dependência internacional no campo dos hemoderivados está em um empreendimento do qual se espera resultados há quase duas décadas: a Empresa Brasileira de Hemoderivados e Biotecnologia (Hemobrás).
Criada em 2005, a previsão era que começasse a fabricar hemoderivados no segundo semestre de 2010. No entanto, até hoje as operações não se iniciaram. A previsão é que até 2025 os investimentos públicos no projeto terão alcançado R$ 1,4 bilhão.
A notícia mais recente é de que será finalmente inaugurada, no início de dezembro, a primeira linha de produção de medicamentos recombinantes da empresa em Goiana, Pernambuco. Ali, por meio da engenharia genética, e prescindindo da necessidade de plasma humano, será fabricado o Fator VIII Recombinante (Hemo-8R), usado para tratamento da Hemofilia A no Brasil. A área recebeu investimentos de US$ 250 milhões de dólares da indústria farmacêutica japonesa Takeda. Os medicamentos ali fabricados serão vendidos a preço de custo para o SUS.
Segundo o governo, o complexo fabril terá capacidade para processar 500 mil litros de plasma em 2026, com capacidade instalada de 650 mil litros expansível a 1 milhão de litros. Porém, mesmo que atinja sua produção máxima, a Hemobrás não conseguirá suprir complemente a rede pública. “Só a demanda anual declarada do SUS é de 800 mil litros de plasma por ano”, alerta Dante Langhi.
“Muitas promessas já foram feitas. O fato é que precisamos de uma solução para ter hemoderivados dos produzidos da forma correta e em quantidade adequada para tratar os nossos pacientes Se esses produtos passarem a ser feitos aqui pelas mesmas empresas que nos vendem, o preço poderá ser bem menor e o ganho muito grande”, diz o médico.