No Brasil, aproximadamente 18,6 milhões de pessoas vivem com algum tipo de deficiência, o que corresponde a aproximadamente 8,6% da população nacional, segundo levantamento divulgado pelo Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (SNDPD/MDHC) e o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). A fim de despertar a consciência pública para a importância de promover a inclusão das pessoas com deficiência (PCDs) na sociedade, celebra-se, durante o mês de setembro, a campanha setembro verde, e a data de 21/9 é oficialmente denominada Dia Nacional de Luta da Pessoa com Deficiência.
Os dados divulgados também apontam que PCDs estão menos inseridas no mercado de trabalho e nas escolas o que, por consequência, impacta no acesso à renda. Apenas 25,6% das PCDs concluíram, pelo menos, o Ensino Médio, enquanto 57,3% das pessoas sem deficiência tinham esse nível de instrução. No grupo dos sem deficiência, 66,4% das pessoas fazem parte da força de trabalho. No caso dos PCDs, a taxa cai para 29,2%, e sendo que, entre estes, 55% estão engajados em trabalhos informais. Esses números se refletem nos ganhos mensais: o rendimento médio de pessoas com deficiência é R$1.860, enquanto o de pessoas sem deficiência é R$2.690.
Essa disparidade é problemática por vários motivos. Um deles é que PCDs costumam ter gastos extras associados às suas condições, destinados a tratamentos, equipamentos ou tecnologias assistivas, como próteses e órteses. Estas últimas, aliás, muitas vezes apresentam custo elevado. A fim de procurar contribuir para reduzir estes custos, o pesquisador João Victor Gomes dos Santos, hoje doutor em Design pela Faculdade de Arquitetura, Artes, Comunicação e Design da Unesp, campus Bauru, iniciou seus estudos para desenvolver próteses transtibiais usando como material uma alternativa barata: o bambu.
A porta de entrada para a produção nacional de próteses
Segundo o pesquisador, a motivação para o trabalho surgiu sete anos atrás, quando cursava a graduação. À época, assistiu a uma reportagem na TV que apresentava um pedreiro cuja perna foi amputada abaixo do joelho. Sem recursos para adquirir uma prótese nova, nem poder aguardar o longo tempo necessário para ser contemplado com uma peça pelo SUS, teve a ideia de improvisar uma prótese usando um cano PVC. “Quando vi aquela reportagem, percebi que existia uma questão que precisava de solução. E nós, designers, somos solucionadores de problemas”, diz Santos.
Segundo um levantamento realizado pela Sociedade Brasileira de Angiologia e Cirurgia Vascular (SBACV), o número de amputações subiu 56% entre 2012 e 2021. Apenas em 2021, foram registrados 28.906 procedimentos. Os resultados apontam ainda que, em 2022, pelo menos 85 pessoas tiveram seus pés ou pernas amputadas diariamente na rede pública de saúde, totalizando 31.190 cirurgias no ano. Se esses procedimentos infelizmente estão se mostrando cada vez mais comuns, a aquisição de uma prótese nada tem de trivial. Caso o paciente opte por adquirir uma de maneira particular, o valor pago por uma prótese de fibra de carbono pode variar entre R$ 5 mil e R$ 8 mil. Outra possibilidade é buscar receber uma por meio do SUS. A elevada procura distende o tempo de espera, que pode chegar a dois anos.
Parte da dificuldade para adquirir próteses de qualidade, e por valores acessíveis, deve-se ao fato de que tais equipamentos não são fabricados no Brasil. “Por meio da pesquisa, descobri que não produzimos as próteses de fato. Nós importamos a matéria-prima, como os pés e aqueles cilindros que servem de “canelas”. No Brasil é confeccionado apenas o encaixe, que deve ser feito manualmente por um técnico protesista, responsável por tirar as medições e modelar a parte de maneira a melhor se adaptar ao paciente”, diz Santos. O processo de importação encarece e dificulta o acesso.
Ao analisar o problema, Santos viu a possibilidade de aproveitar o conhecimento que adquiriu enquanto participava do Projeto Bambu, da Unesp, e começou a desenvolver uma prótese transtibial de bambu para pessoas que têm a tíbia e a fíbula (ossos da parte inferior da perna) removidos de forma parcial ou total.
A tecnologia emprega três componentes principais: o pé, o cilindro e o encaixe, todos produzidos a partir da combinação de fibra de bambu com resina de mamona. Tanto o pé como o cilindro são feitos com a fibra de bambu laminada, que consiste em várias lâminas finas do material agrupadas e coladas com a utilização da resina de mamona. Posteriormente, a fibra é modelada, seja por meio do uso do torno, de forma a adquirir o formato cilíndrico que representa a canela, ou adaptada para simular o pé. Já o encaixe é feito a partir dos resíduos desses processos; de uma mistura de fibra de bambu triturada e de resina de mamona, obtém-se a massa necessária para modelar a peça manualmente, conforme as características do usuário.
O bambu apresenta propriedades mecânicas muito parecidas com as da fibra de carbono, o material comumente utilizado nesse tipo de próteses. Porém, o caule da planta da família Poaceae traz também o benefício de ser uma matéria-prima barata, biodegradável, de fácil descarte e com a possibilidade de ser produzida no Brasil. Outro benefício, destacado pelo engenheiro Marco Antonio dos Reis Pereira, orientador de mestrado de Santos, é que o bambu é classificado como material renovável devido a sua capacidade para crescer rapidamente: pode chegar a 30 metros após apenas quatro meses. “O bambu é um material muito versátil. Possui excelentes características físicas e mecânicas, com ótima resistência à tração, flexão e compressão. Esses traços viabilizaram seu uso no desenvolvimento da prótese”, explica Pereira, do Departamento de Engenharia Mecânica da Unesp, campus Bauru.
As fibras longas do bambu propiciam ao material resistência e elasticidade, características essenciais para esse tipo de equipamento, ao mesmo tempo que conferem leveza e barateiam a produção. “O comportamento de leveza e resistência é muito semelhante ao da fibra de carbono. Porém, uma diferença importante é que o compósito produzido com a fibra de bambu e a resina de mamona não é tóxico, ao contrário do de fibra de carbono e resinas como epóxi. Além disso, por se tratar de material biodegradável, o descarte é mais fácil”, diz Santos.
O pesquisador explica que um dos problemas enfrentados pela indústria da fibra de carbono envolve o descarte apropriado dos equipamentos que utilizam esse material, uma vez que ele não é reciclável. “O bambu e a resina de mamona surgem como alternativas interessantes. Afinal, se uma peça da prótese quebrar, você pode simplesmente jogar no lixo da cozinha. Outro ponto favorável é que a produção da resina de mamona é 100% nacional.”
Preferência pela nova prótese
A pesquisa foi dividida em três partes. A primeira, voltada para conceitualização e viabilidade do projeto, foi realizada durante o Trabalho de Conclusão de Curso, como requisito para a graduação em Design de Produto, na Unesp de Bauru. Nela, o designer se aprofundou no conhecimento das próteses, desenvolveu os projetos e montou um primeiro protótipo para confirmar se era possível elaborar o equipamento usando o material proposto.
Durante o mestrado em Design cursado na mesma instituição, foi feita a avaliação mecânica da prótese. Para isso, o pesquisador seguiu uma normativa internacional, uma vez que o país não conta com normas para regular a proteção de próteses. A normativa estipula os testes mecânicos aos quais a tecnologia deve ser submetida, de maneira a verificar sua eficiência. Um desses é chamado “teste de fadiga”, utilizado para avaliar a resistência e a durabilidade do produto. Nele, a prótese é posicionada em um equipamento responsável por simular sua utilização, pela aplicação de tensões que reproduzem os diferentes pesos humanos sobre o equipamento. O protótipo também é exposto a ciclos de utilização até que ele quebre ou se desgaste.
Por fim, no doutorado, foram conduzidos testes em humanos. Foram produzidas três próteses, utilizadas por três voluntários. Nesta etapa, o grupo pôde comparar a utilização da Protebam, como foi apelidada, em comparação às próteses anteriores que os usuários possuíam. Além disso, também realizaram levantamentos e avaliações de percepção, estética, usabilidade e funcionalidade.
Segundo Luis Carlos Paschoarelli, docente do Departamento de Design da Unesp, campus Bauru, designers devem observar, principalmente, três pontos durante o desenvolvimento e a produção de uma prótese: a funcionalidade, relacionada à eficácia e segurança do produto; a composição estética, ou seja, a qualidade visual da prótese e se ela atende às expectativas emocionais dos usuários; e, por fim, a carga simbólica da tecnologia. “A prótese deve apresentar um design que faça com que o usuário sinta-se integrado à sociedade de inovação e consumo”, diz Paschoarelli, que orientou Santos durante o doutorado.
Os resultados foram considerados bastante positivos. Mesmo concluída a etapa de testes, que teve início em abril, as pessoas com deficiência que participaram voluntariamente da pesquisa optaram por continuar utilizando as próteses. Além disso, o objetivo de reduzir o valor do equipamento também foi alcançado. O custo de produção da Protebam gira em torno de R$600,00, com possibilidade de ser comercializada em torno de R$1.500,00 e R$1.800, considerando as margens de lucro.
Graças aos testes mecânicos, foi possível determinar que sua durabilidade é de aproximadamente um ano. “Essa estimativa é realizada a partir da combinação dos testes mecânicos, que mostram o período de tempo transcorrido até que a prótese quebre, e esse dado é dividido por três. Essa divisão é conhecida como fator de segurança”, explica Santos. Como a prótese levou o equivalente a três anos para apresentar algum defeito, considera-se que sua durabilidade é de um ano.
Embora as próteses convencionais alcancem uma durabilidade de aproximadamente cinco anos, essa diferença não seria um problema, pois a Protebam foi concebida originalmente como um recurso transitório. “Ela não foi pensada para competir com os demais produtos. Estamos focando o nicho de pessoas que passaram por uma amputação e, uma vez reabilitadas, precisam voltar a trabalhar, mas têm essa necessidade dificultada pelo acesso demorado e caro às próteses. A Protebam atua como uma prótese transitória, para que a pessoa possa realizar suas atividades do dia a dia até receber a prótese oficial ou conseguir economizar para comprar uma”, explica o designer.
A tecnologia já foi patenteada pela Agência Unesp de Inovação (AUIN), de maneira a proteger a propriedade intelectual dos pesquisadores envolvidos. Atualmente, Santos está em negociação para iniciar um teste piloto da Protebam, envolvendo a produção de cem unidades para testar sua viabilidade de comercialização. O designer comenta que ainda não há uma data definida para o início dos testes, mas há a expectativa de que se mostrem promissores. “Se tudo der certo, vamos iniciar os processos de certificação e de montagem da linha de produção. O objetivo final é produzir a Protebam em larga escala para atender o mercado local, nacional e, quem sabe, internacional”, diz.
Imagens: João Victor Gomes dos Santos