Expansão de cidades médias é destaque no Censo 2022

Municípios com população entre 100 mil e 500 mil habitantes tiveram crescimento relativo superior ao de cidades grandes e capitais nos últimos 12 anos. Pesquisador da Unesp destaca poder de atração do agronegócio como fator de desenvolvimento populacional, e alerta para explosão de domicílios vagos por todo o país. “Temos cidades sem pessoas e pessoas sem acesso à cidade”, analisa.

Após dois anos de atraso que envolveram dificuldades durante a pandemia e falta de recursos alegados pelo governo federal, o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) divulgou no último dia 28 de junho os dados iniciais do Censo Demográfico do Brasil de 2022. Informações mais detalhadas da coleta realizada nos 5.570 municípios brasileiros ainda serão divulgadas ao longo do ano, mas os primeiros resultados revelaram informações importantes sobre, por exemplo, o total da população brasileira (203 milhões de habitantes) e da queda na taxa de crescimento (de 1,1% em 2010 para 0,5% em 2022).

Já em relação à distribuição da população brasileira, o Censo 2022 trouxe uma importante constatação do crescimento das cidades médias. Cabem nessa classificação do IBGE os municípios que contam com entre 100 mil e 500 mil habitantes, e nos últimos 12 anos eles experimentaram um crescimento relativo que superou o das grandes cidades (aquelas com mais de 500 mil habitantes) e as capitais. “Esse é o fato novo do Censo”, declarou o presidente do IBGE,  Cimar Azeredo Pereira, durante a entrevista que divulgou os principais resultados do levantamento.

“As cidades brasileiras estão ficando cada vez mais complexas e indicando algumas tendências que nós não tínhamos no Brasil ainda. Temos chamado esse conjunto de mudanças de fragmentação socioespacial”, explica Everaldo Melazzo, professor do Departamento de Planejamento, Urbanismo e Ambiente da Unesp, no câmpus de Presidente Prudente. Melazzo irá aplicar os resultados do levantamento nacional no projeto de pesquisa com o apoio da Fapesp que vem desenvolvendo ao lado de diversos pesquisadores em que analisam a diferenciação socioespacial em andamento nas cidades brasileiras, com especial destaque às cidades médias. Entre os municípios sob a lupa do grupo estão, por exemplo, Chapecó (SC), Dourados (MS), Ituiutaba (MG), Marabá (PA), Mossoró (RN), Presidente Prudente (SP), Ribeirão Preto(SP) e as cidades pequenas vinculadas a estes municípios. “Os dados do Censo não apenas constituem o ponto de partida para entender o que aconteceu na última década, mas para a gente refutar ou reforçar essas mudanças que temos visto por meio de entrevistas e trabalhos de campo”, explica.

Numa análise ainda inicial dos resultados do Censo 2022, feita nesta entrevista para o Jornal da Unesp, Melazzo comenta a dinâmica demográfica que colocou as cidades médias em destaque no último levantamento do IBGE e o contexto das políticas habitacionais que colaboraram para um aumento expressivo de imóveis vazios no país na última década.

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Quais os pontos que mais lhe chamaram a atenção sobre os primeiros resultados do Censo 2022?

Everaldo Melazzo: Os resultados até agora confirmam tendências históricas do território brasileiro, como a grande diferença entre a porção litorânea ao leste e as porções a oeste. Um segundo dado muito coerente é a diminuição do número de moradores por domicílio [caiu de 3.31 para 2,79], embora este dado apresente grandes diferenças dependendo da região do Brasil. Outra tendência muito importante que o Censo reforçou é que municípios acima de 500 mil habitantes continuam perdendo relativamente população frente aos municípios entre 100 mil e 500 mil habitantes. As grandes cidades já vinham crescendo menos, os pequenos municípios cresceram menos e perderam população, mas os municípios de cidades dessa faixa intermediária cresceram relativamente mais.

Isso tem uma relevância fundamental, por exemplo, para políticas públicas, para projetos de investimento no território brasileiro ou para pensar o papel dessas cidades articulando o território. Porque é justamente nessas cidades que se concentra a maior parte dos serviços públicos, dos serviços especializados do comércio e dos serviços. Essas cidades têm um papel muito importante na produção e no consumo no território brasileiro. É claro que as grandes cidades e a maioria das capitais têm uma relevância na hierarquia urbana que a gente não pode diminuir. Inclusive com altos níveis de especialização, como São Paulo (SP), Rio de Janeiro (RJ), Belo Horizonte (MG) e Brasília (DF). Mas as cidades médias têm um alcance territorial no seu entorno que abastece todos esses comércios e serviços que não são encontrados nas cidades pequenas. Claro que nós temos muitas transformações vindas das novas tecnologias, mas o Censo está mostrando o papel estruturador do território que essas cidades executam.

Numa olhada rápida para os dados, é possível afirmar, inclusive, que essas cidades que mais cresceram são as que têm uma abrangência territorial maior. Ribeirão Preto (SP), Chapecó (SC) ou Dourados (MS) têm uma área de abrangência maior que Presidente Prudente, por exemplo. Nessas cidades temos municípios satélites que produzem, consomem, se deslocam por diversos motivos de uma cidade para a outra. Você vê isso claramente na relação de Ribeirão Preto com Cravinhos (SP) ou Jardinópolis (SP). Então, vê-se que, em alguns momentos, populações dessas cidades, principalmente as mais pobres, vão morar nesses municípios satélites porque o preço da terra é menor e o acesso à habitação é maior. Existe um duplo movimento: essas cidades médias cresceram muito, mas as cidades no entorno delas também cresceram.

É possível apontar as motivações para essa tendência de crescimento das cidades médias?

Everaldo Melazzo: Acho que podemos apontar dois elementos importantes. O primeiro é que na porção oeste do território você tem um número menor de metrópoles e grandes cidades. Elas estão principalmente próximas do litoral. Quem cumpre esse papel das cidades grandes são as cidades médias. Tirando as capitais do Mato Grosso (Cuiabá) e do Mato Grosso do Sul (Campo Grande) você não tem outras grandes cidades. Na região Norte é mais claro, exceto Belém (PA) e Manaus (AM), as duas grandes metrópoles na Amazônia, temos Marabá (PA), Santarém (PA), Itacoatiara (AM), Parintins (AM) como cidades nessa faixa de população que cumprem os papéis que as grandes cidades exercem aqui na região Sul e Sudeste.

Segundo ponto: são cidades com perfis diferenciados, mas que respondem a setores muito dinâmicos da economia. Vamos pegar o primeiro deles, chamado genericamente de agronegócio. Essas cidades muitas vezes têm relações diretas com a cana-de-açúcar, soja, produção de aves, de suínos ou de gado. Elas têm um papel econômico de estruturação que responde por transporte e por uma série de serviços que vão desde a aviação agrícola passando por serviços financeiros. Uma cidade como Dourados (MS) conta com todos os serviços necessários para a produção do agronegócio, que é muito forte ali. Então vemos essa tendência muito associada às atividades econômicas. Menos a indústria, e muito mais à agroindústria, de um lado, e ao comércio e serviços por outro lado. Todas essas cidades médias hoje já têm shopping centers, produtos residenciais sofisticados, serviços médico- hospitalares públicos e privados bem estruturados. Isso dá base para um movimento migratório que sai das grandes cidades para as médias, que por sua vez continuam atraindo a população das cidades pequenas.

Os resultados do Censo também apontaram um crescimento muito maior do número de domicílios em comparação ao crescimento da população. O que esses dados podem indicar?

Everaldo Melazzo: Dois dados relacionados aos domicílios merecem especial atenção. Primeiro, a população cresceu um pouco mais de 6,5% no período desde o último Censo, e o número de domicílios permanentes cresceu 34%. É a maior diferença que nós vimos em todos os Censos e precisamos descobrir as causas. Por enquanto, com muitos dados ainda a serem divulgados, podemos falar de hipóteses. A primeira é que está em curso uma mudança no perfil das famílias brasileiras que leva à diminuição do número de moradores por domicílios e um número maior de domicílios. Ou seja, os arranjos familiares estão mudando, o que por si só já é muito interessante.

Mas podemos levantar outra hipótese. Nesse último período, de 2010 pra cá, tivemos uma retomada da política habitacional no Brasil que não víamos desde a época do BNH (Banco Nacional de Habitação). O programa Minha Casa Minha Vida (MCMV), sozinho, produziu mais de 6 milhões de unidades habitacionais. Junto com o MCMV tivemos alguns anos, nessa última década, de um boom imobiliário, com crédito farto, baixas taxas de juros e crescimento da renda da população que permitiu o financiamento de imóveis. Ou seja, houve um crescimento no número de domicílios muito relacionado a essa expansão imobiliária.

Isso nos coloca frente a uma questão muito importante: a política habitacional vai ser apenas expansão do número de unidades ou vamos ter que entrar em uma nova geração de políticas habitacionais que passe a cuidar da qualidade da habitação e pense também nos setores que ainda não tiveram acesso?

Dentro dos dados de aumento no número de domicílios foi divulgado o recorte específico de domicílios vagos, em que o crescimento em relação ao Censo de 2010 foi de 87%, totalizando 11,4 milhões de domicílios. O que pode ter justificado esse aumento expressivo de domicílios vagos?

Everaldo Melazzo: O crescimento de 87% dos domicílios vagos no país chama muito a atenção e ele mostra que o déficit habitacional não vai ser combatido apenas produzindo casas. O estoque imobiliário está aí, ele está vazio e precisamos refletir sobre isso. Quando tivermos os dados mais detalhados, precisaremos tentar entender melhor por que os domicílios estão vazios. Temos situações diferenciadas no país. Inclusive empreendimentos do MCMV que foram construídos tão distantes das cidades que as pessoas simplesmente abandonaram as casas e voltaram para a favela, ou para viver de aluguel em outras áreas.

Mas nós temos também um crescimento, imagino, no número de domicílios vagos por conta da facilidade de financiamento de pessoas que adquiriram para alugar ou revender. E isso não é pequeno. Por mais que exista uma expectativa de retomada de negócios imobiliários em um futuro próximo, nós ainda temos um estoque imobiliário para ser comercializado muito intenso. Isso tem conexão com outras áreas. Por exemplo, na tributação da propriedade conectada com a função social. A tributação que incide sobre um imóvel que permanece 10 anos desocupado é muito baixa. Existe também uma conexão com áreas das cidades que estão se esvaziando demograficamente pelo número de domicílios. Podem ser áreas centrais e pericentrais, mas que possuem uma infraestrutura já instalada. O resultado é que temos cidades sem pessoas e muitas pessoas sem acesso à cidade.

Então, o Censo mostra um crescimento no número de domicílios muito maior que o da população em um momento de boom imobiliário público e privado, mas também um crescimento estrondoso do número de domicílios vagos. De acordo com a última divulgação da Fundação João Pinheiro, de 2019, o déficit habitacional do Brasil era de 5,8 milhões de domicílios. O problema não é a falta de domicílios ou uma certa incapacidade da indústria da construção civil. O problema não é produtivo de forma alguma, o problema é outro.

Acima: Ribeirão Preto. Crédito: Mateus Zaácro/Wikimedia Commons