Em meados dos anos 1980, a cidade de Araçatuba era um dos maiores centros pecuaristas do Brasil. Atento a essa realidade, em janeiro de 1984, o reitor da Unesp à época, o professor Armando Octávio Ramos, começou a avaliar a possibilidade da criação de um curso de graduação em medicina veterinária no câmpus local. Porém, ainda decorreriam alguns anos até que, em 23 de janeiro de 1990, fosse fundada a Faculdade de Veterinária de Araçatuba.
De início, ocupou o mesmo prédio da faculdade de Odontologia, e posteriormente recebeu em doação as instalações do Instituto Noroestino de Trabalho, Educação e Cultura (INTEC) que estava em vias de extinção. Devido à indisponibilidade de recursos da universidade para custear as reformas necessárias para a incorporação do espaço do INTEC, os docentes se organizaram juntamente com entidades da sociedade civil e constituíram a comissão “Pró-veterinária”. Sua missão era angariar recursos para as reformas necessárias, além de custear aquisição de equipamento e os demais gastos exigidos para ocupação de uma área de 532 mil m². Na época, o presidente do Sindicato Rural da Alta Noroeste (Siran), Luiz Quintiliano de Oliveira, assumiu a dianteira da mobilização, e hoje dá nome ao hospital.
Público atendido vai de pets a animais selvagens
A sede da Faculdade de Medicina Veterinária de Araçatuba (FMVA) ocupa um amplo espaço, onde estão situadas as instalações do Departamento de apoio, produção e saúde animal e do Departamento de clínica, cirurgia e reprodução animal, além de um complexo de salas de aula, biblioteca e laboratórios didáticos para estudos e pesquisa e a administração. O local também abriga o Hospital Veterinário (HV) Luiz Quintiliano de Oliveira, que funciona como unidade auxiliar da faculdade.
“O hospital é um centro de referência para toda a região. É comum recebermos animais vindos de Araçatuba ou de municípios vizinhos cujos veterinários não têm os recursos necessários para realizar determinado procedimento”, explica a professora Flavia de Almeida Lucas, atual supervisora do HV. “Isso acontece principalmente nas situações em que há necessidade de cirurgia. Mas também há casos que, por serem mais complexos, requerem a intervenção de especialistas”, diz. Em 2019, antes da pandemia, o número de atendimentos realizados pelo HV chegou a 37 mil. A pandemia limitou expressivamente as atividades, que aos poucos têm se normalizado. Em 2021, o número de atendimentos estava em cerca de 18 mil.
Desde sua instalação, o HV funciona como extensão universitária, ou seja, um espaço para a formação profissional de alunos do 3º e 4º anos do curso de graduação em veterinária. Mas também se destina ao aperfeiçoamento de estudantes de outras universidades e de profissionais da área, que se atualizam sob a tutela dos docentes da instituição.
O HV oferece atendimentos diferenciados a animais de pequeno e de grande porte, na forma de serviços especializados nas áreas de Clínica Médica, Clínica Cirúrgica, Fisiopatologia da Reprodução e Obstetrícia, Anestesiologia, Radiologia, Patologia, Laboratório Clínico e Medicina Veterinária Preventiva.
Os serviços são prestados por docentes do Departamento de Clínica, Cirurgia e Reprodução Animal (DCCRA) e do Departamento de Apoio e Saúde Animal (DAPSA), o que possibilita o contato dos alunos do curso de veterinária com a prática profissional nas mais diversas áreas.
Dos anos 1980 até hoje, a prática da pecuária encolheu drasticamente na região noroeste do estado de São Paulo. A zona rural tem sido destinada sobretudo a plantações de cana-de-açúcar, e as mudanças se refletiram também no perfil do atendimento veterinário oferecido no HV. Hoje, ele atende principalmente animais domésticos de pequeno porte, como cachorros e gatos, mas também há número significativo de atendimentos a equinos, bovinos e pequenos ruminantes.
“Por outro lado, aumentou muito também o número de atendimentos a animais selvagens criados como animais de estimação, como hamsters e miniporcos. E também a animais de vida livre, que eventualmente são vítimas de atropelamentos nas rodovias e de queimadas na região”, diz Flávia Lucas.
Fauna local sofre com desmatamento e queimadas
Os animais silvestres também chegam por outra via, graças às parcerias estabelecidas com a Concessionária Via Rondon e com a Associação Mata Ciliar. A Concessionária Via Rondon é a empresa responsável pela gestão do trecho oeste da rodovia Marechal Rondon (SP-300) e encaminha para tratamento no HV de Araçatuba os animais errantes resgatados no setor. Em sua maioria, são cães e gatos, mas também se encontram espécies selvagens, como urubus e tamanduás.
Outro canal de acesso para animais silvestres ao HV se dá por meio da Associação Mata Ciliar. É uma entidade sem fins lucrativos criada em 1987 que desenvolve diversos projetos em parceria com instituições públicas e privadas, com o intuito de conservar a biodiversidade. Uma das frentes de trabalho é a de resgate e atendimento veterinário da fauna local. Esta tem sido crescentemente ameaçada por ações de desmatamento e queimadas, muito comuns nessa região do estado.
Essa parceria funciona de maneira distinta, já que a organização conta com veterinários próprios alocados dentro do HV. “O convênio permite que nossos alunos acompanhem esses atendimentos e a casuística de animais silvestres resgatados pela Mata Ciliar é muito grande. Tanto os residentes quanto os alunos podem acompanhar cirurgias, atendimentos, o pós-operatório, enfim o tratamento todo desse animal, e ainda acompanhar a soltura dele na natureza”, diz Flávia Lucas.
Estrutura de diagnóstico reverte em tratamento mais eficaz
Responsável pela Clínica Médica de Pequenos Animais, o professor Wagner Luis Ferreira destaca a possibilidade de o hospital oferecer exames diferenciados mesmo nos casos que envolvem atendimentos considerados de rotina. É o caso, por exemplo, dos exames de ecocardiografia e eletrocardiografia, importantes para os casos em que há suspeitas de que o animal apresente sinais de afecção cardíaca ou algum comprometimento do sistema respiratório em decorrência de doenças cardíacas. Outro diferencial é a possibilidade de diagnosticar casos de endocrinopatias, doenças que comprometem o funcionamento do sistema endócrino, como diabetes e síndrome de chushing, nos quais ocorre uma produção elevada de cortisol.
Ferreira também destaca as ações do HV para cuidados preventivos, que focam o tratamento dos animais antes que ocorra a instalação das patologias. “Nesse setor são realizados procedimentos de vacinação e fornecimento de orientações gerais que visam o cuidado, a prevenção de doenças e o bem-estar animal”, explica.
Um dos diferenciais do HV é a precisão do diagnóstico, e consequente assertividade no tratamento. “Faz a diferença estar em um hospital em que há profissionais altamente qualificados, especialistas, com exames complementares laboratoriais e de imagem disponíveis no mesmo local”, diz Flávia Lucas. “O HV serve como centro de referência, recebendo animais atendidos por colegas em outras clínicas, para complementação do diagnóstico ou tratamento especializado”, diz.
O setor de grandes animais é um centro de apoio veterinário que atende sobretudo eqüinos, com grande incidência de realização de cirurgias de síndrome cólica e internação de animais para tratamento e pós-operatório. A síndrome cólica é uma alteração do trato digestório que pode ser causada por estresse, mudança na alimentação, ingestão inadequada de água, entre outras e causa muita dor nos cavalos.
O setor para grandes animais também realiza procedimentos para diagnóstico e tratamento de doenças. O Hospital conta com equipamentos como o videoendoscópio que possibilita bastante precisão nos resultados de exames do trato respiratório e urinário, de equinos e bovinos e também avalia o sistema digestório de potros. Os animais de grande porte contam com serviços de internação apenas durante o dia.
Oftalmologia de ponta
O Brasil conta com pouco mais de 30 especialistas em oftalmologia veterinária avaliados pelo Colégio Brasileiro de Oftalmologia com diploma chancelado pelo Conselho Federal de Medicina Veterinária, e um deles atua no HV. Alexandre Lima de Andrade é professor de clínica cirúrgica de pequenos animais e, devido à sua especialização, também auxilia na realização de cirurgias oftalmológicas em animais silvestres e de grande porte.
Andrade explica que essas cirurgias são bastante complexas, uma vez que são realizadas em uma região do corpo que é diminuta e bastante irrigada. No HV, a maior parte dos procedimentos envolve a reparação de córneas que em muitos casos está relacionada com ulcerações decorrentes de comportamentos violentos, como choques ou atrito com outros animais, ou de questões fisiológicas. Uma das linhas de pesquisa de Andrade, desenvolvida em parceria com pesquisadores da UFSCar, envolve a produção em laboratório de membranas sintéticas. E o HV também possui estrutura adequada para o armazenamento de membranas amnióticas caninas que ficam congeladas a – 80ºC.
Em segundo lugar, entre os procedimentos mais comuns estão as cirurgias de cataratas. Estas apresentam uma complexidade maior, por se tratar de procedimento intraocular. Mesmo assim, a taxa de restabelecimento da visão está beirando 90% dos casos.
Devido à proximidade geográfica com a fronteira do Mato Grosso do Sul, Araçatuba é considerada um ponto de entrada para o estado de doenças como a leishmaniose visceral canina – uma zoonose grave que compromete o funcionamento das vísceras, sobretudo baço e fígado. O ciclo da enfermidade acontece quando o mosquito-palha pica um animal – sobretudo cães – e, depois, ao picar o ser humano transmite o protozoário leishmania chagasi. Por estar localizado em uma região onde a patologia é endêmica, o HV se tornou referência para a triagem e diagnóstico da doença.
Anexo ao HV, encontramos o único local da região que diagnostica a raiva, doença transmitida aos seres humanos através de mordedura, arranhadura ou lambedura de animais urbanos, rurais e silvestres. Trata-se de um laboratório de alto nível de biossegurança, credenciado à área de Saúde Pública e Defesa Sanitária Animal com colaboração do Instituto Pasteur. O Laboratório de Raiva está sob responsabilidade da professora de microbiologia da FMVA, Márcia Marinho, e suas atividades estão no rol dos Programas de Residência e Aprimoramento do Hospital Veterinário.
Embora a raiva seja uma zoonose cuja letalidade alcança quase 100%, possui medidas eficazes de prevenção, como a vacinação. Quando um animal vem a óbito com suspeita de raiva, o encéfalo é encaminhado ao laboratório de raiva para o diagnóstico. São realizados os exames de imunofluorescência direta e provas biológicas, com inoculação em camundongos.
Da fundação até os dias de hoje, o Hospital Veterinário Luiz Quintiliano de Oliveira vem se reinventando para acompanhar as transformações que marcaram a vida e a economia de Araçatuba e região, a fim de atender novas demandas. Se já foi referência para o atendimento de bovinos, atualmente sua ação se dá sobretudo no suporte a animais domésticos – mas abrindo espaço, também, para assistência aos selvagens. Em paralelo, consolidou sua atuação na triagem de doenças como a raiva e a leishmaniose. “O HV é um centro de referência para as cidades da região, do estado de São Paulo e até do Mato Grosso do Sul. Muitas vezes, os tutores levam os animais para clínicas particulares, e, em casos complicados que requerem especialistas, as clínicas acabam retornando o tratamento para cá”, diz Flávia Lucas.