Embora a covid-19 tenha capturado todos os olhares das autoridades sanitárias do mundo, e também boa parte dos orçamentos dos países, o planeta enfrenta outro importante problema de saúde. É a resistência antimicrobiana, um fenômeno que torna menos eficazes os medicamentos que combatem bactérias, fungos, vírus e parasitas. Segundo estimativas apresentadas em artigo publicado na revista The Lancet, e citadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS), só em 2019 houve 1,3 milhão de vítimas diretamente causadas por resistência antimicrobiana ligada a bactérias, o equivalente às mortes causadas por HIV e malária naquele ano somadas. Para aumentar a visibilidade do problema, e estimular um esforço conjunto na busca de soluções, a OMS promove no mês de novembro a Semana Mundial de Conscientização sobre a Resistência Antimicrobiana. A efeméride conta com apoio da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) e do Programa Ambiental das Nações Unidas, e este ano ocorreu entre os dias 18 e 24.
Dentre os casos de resistência antimicrobiana, a OMS e as autoridades de saúde preocupam-se em especial com a resistência aos medicamentos antibióticos. Os antibióticos surgiram oito décadas atrás, e são um dos elementos fundamentais da medicina moderna. O desenvolvimento de novos antibióticos é uma tarefa cientificamente complexa e cara, que pode levar entre 10 e 15 anos e alcançar um custo médio estimado em US$ 1 bilhão. Segundo a OMS, se nada for feito para mudar esse quadro agora, o crescimento da resistência antimicrobiana pode ocasionar prejuízos da ordem de US$ 3,4 trilhões a partir da próxima década, e jogar 24 milhões de pessoas abaixo da linha de pobreza.
Devido ao processo de seleção natural, a circulação excessiva dos medicamentos antibióticos tem resultado comprovadamente na geração de bactérias resistentes a eles, abrindo brechas para que infecções generalizadas, e cada vez mais potentes, se espalhem. Outro ponto que faz dos antibióticos um caso mais sensível está no fato de que também são empregados para outros fins além da cura de doenças. Eles têm um grande uso na indústria de alimentos, em especial no setor avícola. A campanha da OMS tem como um dos objetivos moderar esse uso. Porém, no Brasil, a discussão sobre encerrar o emprego desnecessário de antibióticos na indústria avícola ainda está pouco desenvolvida.
Mitos sobre efeitos dos antibióticos nos alimentos e saúde humana
Juliano Gonçalves Pereira, docente da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnica da Unesp, câmpus Botucatu, comenta que o Brasil, também por ser signatário da ONU, OMS e FAO, está colaborando com a iniciativa encabeçada pelas instituições. “É um movimento mundial que prega o uso dos antibióticos, mas com muita parcimônia”, diz. Ele relata que vários estudos apontam para uma trajetória em que a resistência bacteriana será a principal causa de morte dos seres humanos até 2050.. “São dados bastante alarmantes”, comenta.
“A retirada dos antibióticos das dietas é um caminho sem volta. A urgência de utilizar estas moléculas de forma terapêutica, tanto na saúde animal quanto humana, nos traz a necessidade de encontrar alternativas do seu uso, visto que a ocorrência de resistência microbiana é elevada”, diz Tiago Goulart Petrolli, professor da Universidade do Oeste de Santa Catarina em Xanxerê.
Ricardo Rauber, veterinário e consultor especializado na indústria de alimentos há mais de 15 anos, diz que é preciso derrubar alguns mitos antes de entrar em uma subcamada mais técnica do debate sobre o uso de antibióticos pela indústria animal, pois o tema muitas vezes gera controvérsia.
O primeiro mito, e o mais disseminado, diz respeito à falsa ideia de que a segurança do consumidor seria ameaçada pelo alto emprego dessas substâncias na indústria de alimentos, o que é popularmente referido como “excesso de hormônios no frango”. “Todo produto que é vendido na gôndola dos supermercados é considerado como seguro para o consumo. O problema existe quando se consome carne sem um selo de inspeção. O trabalho que os meus colegas veterinários fazem nessa área de verificar a qualidade do produto é muito bom”, afirma Rauber, que por força de ofício procura acompanhar os diversos elos da cadeia de produção avícola nacional.
Para Rauber, o debate travado hoje no país tem a ver com saúde coletiva e, em nenhum aspecto, com as consequências sobre a saúde individual. “É também uma discussão relacionada ao futuro que queremos. Não se trata de algo apocalíptico”, pondera o veterinário.
Pereira destaca que o aspecto da segurança alimentar é delicado e importante e, por isso a questão exige atenção. “O controle feito pelo Ministério da Agricultura no Brasil é para resíduos, tanto de antibióticos quanto para produtos químicos em geral. Falar em segurança total é complicado. O programa que temos inclui a amostragem de carne, leite, ovos e mel. São feitas coletas rotineiras nos estabelecimentos para as análises. E são encontrados resíduos em alguns alimentos, é verdade, mas com uma frequência muito baixa”, diz o docente.
O uso de antibióticos entre frangos de corte se baseia, principalmente, por três vias. A primeira – e que vai continuar a existir desde que veterinários especialistas no tema estejam no processo – é a aplicação de forma terapêutica deste tipo específico de droga. Ela deve ocorrer quando realmente se detecta algum perigo para a população de frangos ensejado pela presença de bactérias entre os animais. O que deve ser preferencialmente evitado, como defende há mais de 15 anos a OMS, é o uso de antibióticos apenas de forma profilática, o que constitui a segunda importante função dessas substâncias, e que se verifica atualmente em vários países.
Uma revisão sistemática publicada em 2018 no The Lancet Planetary Health descobriu que as intervenções que restringem o uso de antibióticos em animais produtores de alimentos reduziram as bactérias resistentes a antibióticos nesses animais em até 39%. Foi a divulgação dessa pesquisa que levou a OMS a adotar novas providências no sentido de alertar os tomadores de decisão pelo mundo da gravidade do problema.
Na época, Kazuaki Miyagishima, diretor do Departamento de Segurança Alimentar e Zoonoses da OMS, também ratificou: “O volume de antibióticos usados em animais continua a aumentar em todo o mundo, impulsionado por uma crescente demanda por alimentos de origem animal, muitas vezes produzidos por meio de pecuária intensiva”.
Hoje, a OMS alerta que alguns tipos de bactérias que causam infecções graves em humanos já desenvolveram resistência à maioria ou a todos os tratamentos disponíveis, e há poucas opções promissoras para novos tratamentos contra elas em desenvolvimento nos laboratórios de pesquisa.
A terceira via pela qual os antibióticos aparecem como protagonistas na indústria internacional – e essa é ainda mais discutível – é na área de promoção do crescimento. Os animais costumam ser medicados com o objetivo indireto de aumento de peso por meio de uma melhor eficiência na absorção do alimento, diz Rauber. “Em geral, caracteriza-se pela utilização prolongada – acima do tempo recomendado para tratamento – de doses baixas de um determinado antibiótico”, esclarece o veterinário.
De acordo com a OMS, muitos países já tomaram medidas para reduzir o uso de antibióticos em animais produtores de alimentos. Por exemplo, desde 2006, a União Europeia proibiu o uso de antibióticos para auxílio do crescimento. Os consumidores também estão impulsionando a demanda por carne criada sem o uso rotineiro de antibióticos, com algumas grandes cadeias alimentares adotando políticas “livres de antibióticos” para seus suprimentos de carne. Opções alternativas ao uso de antibióticos para prevenção de doenças em animais incluem melhoria da higiene, melhor uso da vacinação e mudanças no alojamento dos animais e nas práticas de criação.
Pesquisa para substituir antibióticos
Com toda essa preocupação internacional crescendo – e no Brasil vários grupos da indústria já atuam no mesmo sentido com alguns, inclusive, banindo o uso de antibióticos em suas cadeias de produção – a pesquisa básica também avança.
“A grande maioria das pesquisas científicas na área de avicultura está direcionada à busca por alternativas para mitigar o uso de antibióticos como melhoradores de desempenho nas rações”, diz Tiago Goulart Petrolli.
Ele diz que os estudos em andamento investigam diversas possibilidades. A primeira envolve o desenvolvimento de formas para reduzir a carga microbiana intestinal, diminuindo inflamações e o gasto energético e fisiológico para combater tais situações. Também se investigam com bastante frequência alternativas que melhorem a qualidade intestinal – vilosidades, criptas, produção de muco e assim por diante. “O perfil microbiano intestinal, pensando em propiciar o desenvolvimento de espécies microbianas benéficas ao sistema digestivo, também está sendo investigado por vários grupos”, conta.
Em outra frente, explica Pereira, os cientistas estão estudando a questão da resistência bacteriana de forma mais abrangente. “Por exemplo, pegamos uma carcaça de frango que está lá no supermercado e analisamos qualquer elemento genético relacionado à resistência. Não ficamos apenas em uma bactéria, fazemos um sequenciamento maciço de tudo o que está presente na amostra. A ideia é tentar entender quais agentes estão em ação para transformar as bactérias em super-resistentes”, explica o pesquisador da Unesp de Botucatu.
De forma conjunta, segundo os especialistas, universidades, indústrias e as grandes instituições internacionais, como a OMS, trabalham na mesma direção, com o objetivo geral de retardar, a partir de um uso prudente dos medicamentos, a resistência antimicrobiana e, ainda, de preservar a eficácia dos antibióticos mais críticos para a medicina. Tanto que a própria OMS tem uma lista de antibióticos que precisam ser preservados, por serem muito importantes para a sobrevivência da humanidade, uma vez que são eficientes contra bactérias multirresistentes.
“A falta de antibióticos eficazes [por causa muitas vezes do uso indiscriminado] é uma ameaça à segurança tão séria quanto um surto súbito e mortal de doença”, disse Tedros Adhanom Ghebreyesus, diretor-geral da OMS, em 2017, quando a instituição internacional voltou a ratificar sua posição contrária ao uso indiscriminado de antibióticos na indústria de alimentos. “Uma ação forte e sustentada em todos os setores é vital se quisermos reverter a maré da resistência antimicrobiana e manter o mundo seguro.”
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