Desde quarta-feira passada, a Câmara dos Deputados aprovou em votação a adoção do regime de urgência para o Projeto de Lei 191/2021, que regulamenta a exploração de recursos hídricos e minerais nas terras indígenas. Alguns dias antes que o líder do governo no Congresso, o deputado Ricardo Barros (PP – PR), apresentasse o requerimento de urgência, o presidente Jair Bolsonaro havia expressado pela internet sua preocupação de que houvesse um apagão no fornecimento de fertilizantes da Rússia para o Brasil, motivada pelo enfrentamento desse país com a Ucrânia, e defendeu a possibilidade da exploração dos recursos minerais no subsolo das terras indígenas como um meio para manter em funcionamento o setor do agro brasileiro. Dias depois, durante cerimônia de apresentação do plano nacional de fertilizantes, ele mencionou o PL191 — que, aliás, foi apresentado pelo próprio poder executivo federal — como uma medida essencial para garantir o abastecimento dos produtores brasileiros.
Para o antropólogo Paulo Santilli, professor do Departamento de Antropologia, Política e Filosofia da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp em Araraquara, esse argumento não se sustenta. Em entrevista ao Jornal da Unesp, Santilli, que fora da academia atuou também como coordenador do departamento da Funai responsável pela demarcação de terras indígenas, explica que o texto da Constituição Federal já assegura os meios jurídicos para que o governo possa ter acesso a tais recursos num caso realmente emergencial. “O que estamos vendo é um falso pretexto para alcançar a desfiguração do ordenamento constitucional, que se busca aprovar nesses últimos meses de mandato”, diz ele.
O governo federal diz que o contexto de guerra na Ucrânia e a possibilidade de dificuldades na importação de fertilizantes da Rússia tornam urgente a aprovação do Projeto de Lei 191. Este argumento faz sentido?
Paulo Santilli: Esse argumento é inexistente. Primeiro, não está demonstrada a relação entre a existência de jazidas em terras indígenas e os minerais necessários à produção de fertilizantes. Mas, antes disso, a Constituição Federal no seu artigo 231 diz o seguinte: “o aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos à pesquisa e à lavra de riquezas minerais em terras indígenas só podem ser efetivados com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas e ficando assegurada a participação dos resultados da lavra, na forma da lei”.
Ou seja, a Constituição Federal e a legislação atual já permitem isso. Se houvesse esse caso alegado de que “é preciso explorar essas jazidas, elas são estratégicas por uma questão de guerra”, basta ter autorização do Congresso Nacional. Se o problema estivesse realmente em explorar essas jazidas, caberia simplesmente esclarecer onde elas estão, mostrar que sua exploração é de interesse nacional, obter autorização do Congresso Nacional e então estabelecer uma interlocução com as populações indígenas afetadas. Essa interlocução iria esclarecer o modo como a exploração aconteceria, quais seriam as consequências, e poderia propor formas para lidar com as consequências dessa exploração em relação à população diretamente afetada.
Este PL, apresentado no ano passado, é na verdade apenas a mais recente iniciativa do governo federal para desmontar o arcabouço institucional que foi erguido a partir da Constituição de 1988.
De que forma o PL pode alterar o que foi estabelecido pela Constituição? Afinal, não se trata de uma emenda constitucional, e sim apenas de um projeto de lei.
Paulo: De início, cabe considerarmos que a Assembleia Constituinte vetou a exploração mineral em terras indígenas devido à complexidade do assunto. O tema foi, então, delegado para a legislação ordinária. Isso foi feito pela necessidade de mais estudos, e também em consideração às múltiplas e graves implicações que podem surgir da exploração mineral e do aproveitamento de recursos hídricos e hidrocarbonetos nas terras indígenas.
Uma primeira questão é que este PL deveria tramitar por diversas comissões técnicas da Câmara, pois o assunto toca em assuntos referentes a comissões diversas, tanto as técnicas como a CCJ. Pelo que vi, não houve relatórios gerados pela tramitação nessas comissões. Foi constituída então uma comissão especial, e mesmo nela se está atropelando a tramitação, e o regime de urgência indica a busca de um atalho para ir diretamente ao plenário.
Então o próprio cuidado dos constituintes em remeter esse assunto para uma legislação que seguisse uma tramitação normal, possibilitando ampla discussão pela sociedade, está sendo já desrespeitado. E essa decisão não foi tomada apenas por uma questão de formalidade ou de respeito. É devido à complexidade do tema, que requer um amplo e profundo debate. Coisa que, de início, não está havendo.
O texto do PL 191, já no seu primeiro tópico, diz que ele regulamenta o parágrafo primeiro do artigo 176 e o parágrafo terceiro do artigo 231 da Constituição. Essas alterações nesses dois parágrafos, conforme propõe o texto, desvirtuam completamente os artigos da constituição. E para fazer mudanças constitucionais exige-se uma votação de dois terços do parlamento, enquanto que para uma simples regulamentação, como é proposto aqui, basta obter a maioria simples do plenário da Câmara e do Senado. Então temos aqui, de modo evidente, uma inconstitucionalidade.
De que modo essas mudanças poderiam contrariar o texto constitucional?
Paulo: Já falamos como se daria o processo de autorização para exploração desses recursos por parte do Congresso Nacional e a participação dos índios no processo segundo a Constituição. No PL 191 está escrito: “compete ao Presidente da República encaminhar ao Congresso Nacional pedido de autorização para a realização das atividades previstas nesta Lei em terras indígenas. O pedido de autorização ao Congresso Nacional poderá ser encaminhado com manifestação contrária das comunidades indígenas afetadas, desde que motivado.” Ou seja, uma forma que desconsidera toda a manifestação das comunidades indígenas. Mesmo que elas se manifestem contrárias à exploração mineral no seu território, o texto permite que siga a exploração mineral independente da manifestação dos povos indígenas. Eles estão excluídos do processo desde o início.
E mais, o Congresso Nacional também é excluído. No capítulo oitavo do PL consta o seguinte: “as atividades de que trata esta lei serão consideradas autorizadas na hipótese de o Congresso Nacional não se manifestar sobre o pedido de autorização no prazo previsto no caput.” Essas questões são para lá de complexas. Você sabe que os estudos de impacto para a construção de hidrelétricas requerem anos, tanto devido aos efeitos ambientais, sobre a flora e a fauna, como também sociais. A instalação de uma usina hidrelétrica tem implicações diversas. Como também tem a exploração de jazidas minerais. Temos aqui uma forma pela qual o Congresso Nacional fica automaticamente alijado do processo.
Então, enquanto o texto constitucional explicita a obrigação de consulta e de participação dos povos indígenas, como também da autorização do Congresso Nacional, temos aqui numa lei ordinária, e que portanto é secundária em relação à constituição, a completa desfiguração de todos os direitos indígenas como são descritos pela constituição.
Além de desfigurar o texto constitucional, implica também desfigurar os tratados internacionais de que o país é signatário. Eu estou me referindo aqui especificamente à convenção da Organização Internacional do Trabalho, em que está estipulada a forma como devem se dar as consultas às populações indígenas afetadas. E esse é um tratado internacional de que o país é signatário, que foi referendado pelo próprio parlamento, portanto não é algo de menor importância.
E como os indígenas se beneficiariam da exploração dos recursos, segundo o PL?
Paulo: Ele propõe a criação de conselhos curadores compostos pelos índios afetados, com no mínimo três componentes. As mineradoras depositariam dinheiro nas próprias contas bancárias desses três indivíduos. Não se diz como são escolhidos, é de forma arbitrária. E esse conselho curador, formado de no mínimo três pessoas, vai receber em suas contas bancárias os valores depositados pelas companhias, e eles depois é que vão tratar de como repartir esse dinheiro entre as populações afetadas, as associações ou entidades indígenas.
Esses conselhos, criados dessa forma arbitrária e burocrática pelo PL, é que vão ter a atribuição de dizer quais são as associações realmente representativas dos grupos indígenas em questão, e quais não são. São esses conselhos curadores que vão receber o dinheiro, dizer a quem cabe ser repassado e quem fala em nome dos povos indígenas.
O PL 191 está destituindo a voz dos povos indígenas, que têm, ao longo desses anos fluído, e se feito ouvir pelo país e pelo mundo através das suas próprias organizações. Não cabe ao Estado dizer como os povos indígenas têm que se organizar, ou como eles devem gerir os seus recursos. Isso é uma outra afronta à Constituição. Então não adianta esse palavrório vazio, de que vai respeitar isso e aquilo, se já na criação de uma instância se estabelece que serão “três membros.” Mas não se diz como serão escolhidos, ou qual será a sua relação com a população, e se impõe esta forma burocrática a todas as populações.
Tudo isso é uma hecatombe para os povos indígenas. É claro que o que estamos vendo é um falso pretexto para alcançar a desfiguração do ordenamento constitucional, que se busca aprovar nesses últimos meses de mandato, atendendo aos interesses de um setor específico do agronegócio que talvez tenha essa avaliação: “se não for aprovado agora, não será nunca mais”.