Mesmo em meio ao furacão sanitário denominado covid-19 que desde 2020 varre o planeta e já causou mais de 5,8 milhões de mortes, o mercado internacional de arte está dando sinais de que seus sinais vitais estão cada vez mais saudáveis. Os balanços do ano de 2021 das duas principais casas de leilão de arte do mundo, a Sotheby´s e a Christie´s, vieram cheios de boas notícias para investidores, marchands e artistas. A Christie´s anunciou ter movimentado o maior valor nos últimos cinco anos (7,1 bilhões de dólares) na comercialização de obras de arte. A Sotheby’s anunciou o melhor desempenho em seus 277 anos de história, registrando ganhos de US$ 7,3 bilhões em vendas. A maior parte desse valor veio da venda de obras de arte; só o comércio de peças contemporâneas, por exemplo, girou US$ 4,3 bilhões durante o ano passado.
Entre as obras leiloadas cujos valores chamaram a atenção estão Femme assise près d’une fenêtre, de Pablo Picasso, vendida por pouco mais de 100 milhões de dólares, e In this case, do norte-americano Jean-Michel Basquiat, ao custo de 93,1 milhões de dólares. Especialistas apontam a adoção de leilões virtuais em grande escala e a entrada no mercado de novos e jovens compradores como alguns dos principais fatores que agitaram o mercado, e contribuíram para a sua recuperação.
Para o público leigo, pouco habituado ao mercado da arte, os altíssimos valores surpreendem e levam fatalmente a um questionamento: por que algumas peças chegam a custar tão caro, e quais os mecanismos em geral que definem o valor de uma obra de arte?
A resposta não é simples. A precificação da obra de arte não se restringe aos aspectos técnicos de um trabalho, e costuma perpassar por aspectos e questões bem mais subjetivos. Entram também nessa equação, por exemplo, a capacidade da obra para se conectar com temas contemporâneos, e a capacidade do artista de estabelecer relações interpessoais. Além disso, a depender de qual a esfera do mercado de arte que se tenha em mente, a definição dos preços pode obedecer a diferentes critérios.
A maior parte das obras é considerada sem valor
O chamado mercado primário é o espaço para a venda de obras diretamente do artista, ou por meio de galerias e expositores com os quais o autor tem relação próxima. Já o mercado secundário é onde ocorre a revenda das obras, um tipo de transação sobre a qual o artista em geral não tem qualquer participação, podendo até já estar morto. É ao escopo do mercado secundário que pertencem os leilões milionários que ganham manchetes nos veículos de comunicação.
Embora algumas obras alcancem valores estratosféricos, Lilian Bado, pesquisadora do Instituto de Artes da Unesp que estuda o mercado de arte e a relação entre curadores e artistas, explica que este grupo constitui bem mais exceção do que regra. Na verdade, em sua imensa maioria, obras de arte não chegam a obter qualquer reconhecimento junto à sociedade, e terminam sendo descartadas. “Os trabalhos que são reconhecidos compõem coleções, são exibidas em museus, e acabam de alguma forma por representar a passagem do ser humano pela Terra”, explica. “São esses trabalhos que acabam ganhando valor.”
Um artista cuja obra definitivamente marca a passagem do homem na Terra é Leonardo Da Vinci. Não à toa, é do italiano a pintura mais cara já arrematada em um leilão. Em sessão realizada em novembro de 2017, o quadro Salvator Mundi foi comprado por um valor superior a US$ 400 milhões (mais de R$ 2 bilhões), causando surpresa entre os especialistas no mercado da arte e um certo frenesi nos espectadores presentes no leilão.
Salvator Mundi, de Leonardo Da Vinci, enquadra-se em uma categoria do mercado da arte chamada old masters, Nela estão os artistas considerados como fundamentais para a história da arte Ocidental, como Michelangelo, Caravaggio ou Rembrandt. Esse destaque fundamenta os valores pelos quais elas são negociadas. Além disso, todas têm em comum o fato de serem obras raras, de autenticidade comprovada, e que quase não podem mais ser encontradas nas mãos de colecionadores privados. A comercialização de uma obra de um old master é algo raro, e a soma desses atributos colabora para jogar o preço dessas peças nas alturas.
Embora Salvator Mundi correspondesse a todos os critérios citados acima, o valor obtido em leilão causou surpresa até mesmo entre os especialistas da área na época. O professor do Instituto de Artes José Paiani Spaniol pondera que o mercado de artes por vezes se aproxima da lógica do mercado financeiro, no sentido de tratar a obra como um investimento e até mesmo de se especular sobre seu preço.
“O público leigo, na maioria das vezes, se aproxima do tema da precificação da arte pela grande mídia. Na maioria das vezes ela acaba por reforçar o espetáculo e essa sensação de escândalo, o que colabora ainda mais para confundir o público”, aponta o docente, que também é pintor, desenhista, gravador e escultor com uma sólida trajetória de 40 anos no mundo da arte. Ainda que essa espetacularização confunda o entendimento do público quanto ao valor da arte, Spaniol observa esse processo até com certa naturalidade. “Não vejo grande problema nisso. Desde sempre, a arte tem entre as suas principais finalidades esse convite para que o espectador se envolva, questione e reflita sobre ela.”
Saber o preço do próprio trabalho é uma das funções do artista
Para além dos lances milionários e câmeras que povoam os leilões do mercado secundário, o mercado primário se fundamenta em uma estreita relação entre artistas, galeristas e curadores.
Por envolver, na maioria das vezes, obras produzidas por artistas contemporâneos, as avaliações do mercado primário obedecem a critérios bem distintos daqueles aplicados aos “velhos mestres” da arte Ocidental. “Um dos aspectos considerados nas avaliações da arte produzida pelos artistas contemporâneos é a capacidade que ela tem de fazer conexões com o que está acontecendo no mundo”, explica Lilian. Se a obra trata de temas que estão sendo discutidos nas ruas, ou que estão mobilizando a sociedade, tudo isso pode aumentar o seu valor.
Márcio Botner é sócio-fundador da galeria A Gentil Carioca, um espaço de arte contemporânea presente nas cidades do Rio de Janeiro e São Paulo, que atua no mercado primário da arte. Botner diz que, dentro da dinâmica desse mercado, o galerista pode ser visto como um parceiro que colabora no desenvolvimento da carreira do artista, projetando suas obras e apresentando-o a novos mercados e, consequentemente, consumidores. É de se esperar, portanto, que galerias que gozam de boa reputação no meio artístico também possam trazer um incremento para o preço do trabalho de seus artistas. Nessa relação, frequentemente cabe ao galerista determinar o preço das obras dos artistas mais jovens com quem trabalha. “A precificação de uma obra é algo complexo porque entra um pouco da sua experiência na área e do que você vê no artista, especialmente quando ele está no começo de carreira”, diz. Numa trajetória profissional ideal, se o artista começa a circular bem no meio e entrar em coleções privadas importantes, os curadores passam a convidá-lo para bienais e exposições, o que acaba agregando valor e preço ao seu trabalho. “Vai da sensibilidade do galerista fazer essa gestão da carreira em um tempo adequado que o mercado acompanhe”, diz.
Imagem acima: Instalação Entidades (2021), de Jaider Esbell. Crédito: Levi Fanan, Fundação Bienal de São Paulo.