A educação voltada para valores humanos de Paulo Freire continua atualíssima

No centenário de nascimento do pedagogo, professora da Unesp comenta a relevância do pensamento freireano para o ensino e a construção da sociedade no século 21

Nesta semana em que comemoramos o centenário de nascimento do educador, filósofo, pesquisador e escritor Paulo Freire, relembramos sua vida e sua contribuição, tanto para a educação brasileira e mundial quanto para a análise da conjuntura social e política do nosso país. Mas também podemos apontar a relevância do seu pensamento ainda hoje, passados quase 25 anos após a sua morte.

Todos os pressupostos da pedagogia freireana continuam atualíssimos. Eles incluem o aprender a pensar autonomamente, o desenvolvimento do raciocínio lógico e da capacidade de trabalhar colaborativamente, o ser sujeito do conhecimento, o estar aberto a novas aprendizagens, a compreensão de que  saber é poder e a elaboração do conhecimento numa escola criativa, desafiadora e provocadora. 

Hoje, em meio a tanto avanços científicos e tecnológicos, constata-se também a falta de humanidade. Isso demonstra a atualidade do pensamento freireano e a necessidade de investir na formação humana por ele defendida, em todos os níveis de ensino e em todas as áreas do conhecimento.

Ademais, em nossa sociedade, há que se educar para selecionar e rever criticamente as avalanches de informações transmitidas pelos inúmeros meios de comunicação que, por vezes, vêm substituir os valores humanos, tão caros para a Humanidade e presentes no pensamento freireano. Estes valores continuam atuais e extremamente necessários para a concretização da sociedade humana e justa para todas as pessoas que sonhamos construir.

Trajetória de vida

Paulo Freire aos 10 anos

Paulo Freire nasceu em 19 de setembro de 1921, em Pernambuco. Em sua juventude, conheceu a pobreza e a fome. No livro Medo e Ousadia – O cotidiano do professor, publicado em 1986, compartilhou suas dificuldades e os questionamentos que elas lhes despertavam. “Não entendia nada por causa da minha fome. Eu não era burro. Não foi falta de interesse. Minha condição social não me permitia ter educação. A experiência me mostrou mais uma vez a relação entre classe social e conhecimento.”    

A despeito da origem simples, conseguiu avançar na escola e ainda no Ensino Médio se tornou professor de Gramática. Foi neste momento em que, a partir das reflexões sobre sua prática pedagógica, iniciou o trabalho na perspectiva de uma educação dialógica, esforçando-se para compreender as expectativas dos alunos. Conseguiu consolidar uma metodologia interativa que, ao mesmo tempo em que incentivava os alunos e alunas a questionarem o professor, conseguia alfabetizá-los em apenas 30 horas de aulas. A metodologia foi denominada método Paulo Freire.

Em 1963, foi nomeado diretor do Programa Nacional de Alfabetização do Brasil. Após o golpe militar de 1964 foi preso, em parte porque suas análises daquele momento histórico questionavam os problemas superestruturais, e também por trabalhar de forma integrada em suas práticas pedagógicas a educação, a cultura e a política. Do cárcere, conseguiu seguir para o exílio, primeiro no Chile, depois nos EUA, onde deu aulas na Universidade Harvard. A partir de 1970 estabeleceu-se na Europa. Foi no exílio que escreveu seu livro mais conhecido, Pedagogia do Oprimido, posteriormente traduzido para diversos idiomas.

Voltou ao Brasil com a anistia, em 1979 e passou a lecionar na PUC-SP e na Unicamp. Foi Secretário Municipal de Educação durante a gestão de Luiza Erundina (1989 – 1992). Em 1991 criou em São Paulo o Instituto Paulo Freire, com o intuito de preservar e difundir o seu trabalho. Faleceu em 1997, aos 75 anos.

Seu trabalho lhe valeu o título de “Doutor Honoris causa” em mais de 30 universidades da Europa e das Américas, além do prêmio Unesco de Educação para a Paz em 1986 e o título de Patrono da Educação brasileira em 2012.

 

Pedagogia voltada para a transformação

Alunos de Paulo Freire em conversa em 1963. Crédito: Instituto Paulo Freire

Durante os anos 1960, o contexto mundial registrava conflitos e tensões sociais em vários países devido à polarização entre a superpotência socialista, a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, e seu antípoda capitalista, os  Estados Unidos. As  mobilizações  críticas em defesa da democracia brotavam por toda parte, incluindo os protestos contra a Guerra do Vietnã nos EUA, o levante de Maio de 68 na Europa e a Primavera de Praga, na Tchecoeslováquia. Tais movimentos sofreram represálias policiais e, no caso da Tchecoeslováquia, até mesmo militares. Na América Latina, com os países sob o regime civil militar, vários estudantes, docentes e sociedade civil foram reprimidos em inúmeros episódios de repressão e massacre.  

Neste contexto, Freire aprofundou suas análises com a Revolução Cubana, com a Teologia da Libertação e com as teorias de Hegel, Marx, Hobsbawn, Goldman, Lukács e Sartre, que propunham um sentimento de transformação do sujeito e da sociedade pela práxis (revolução),  e que necessitavam conscientizar indivíduos carentes de libertação e emancipação política, social, educacional e cultural (consciência de classe) que viviam mergulhados em uma ‘cultura do silêncio’: os oprimidos, excluídos e esfarrapados do mundo. 

Freire explicava bem tal realidade, que ainda persiste, dizendo: “O que presta no capitalismo, no meu entender, não é ele. Para mim, ele é uma malvadeza em si mesma. Se se pensa na excelência do capitalismo no Brasil, eu me pergunto: que excelência é esta que produz 33 milhões de famintos?”.  

Na vida e na obra de Paulo Freire há uma profunda paixão pela liberdade humana e, ao mesmo tempo, uma rigorosa e sempre renovada busca de uma pedagogia emancipatória, além da incessante busca por coerência entre discurso e prática.

Se suas obras e ações foram inspiradoras naquele momento de luta contra o autoritarismo, hoje temos que recuperar seu pensamento e recriá-lo à luz dos novos desafios históricos deste século 21, no qual constatamos que o fato de vivermos numa sociedade democrática não garante que tenhamos direitos garantidos, ou tampouco a extinção do autoritarismo.

Mais do que uma proposta de alfabetização de jovens e adultos, Freire criou uma filosofia da educação, com um corpo teórico consistente que contempla uma pedagogia voltada à prática e à ação transformadora. Era o contrário da ideia de neutralidade, demonstrando que a neutralidade é impossível no ato educativo. Conforme explicita Freire: “lavar as mãos do conflito entre os poderosos e os impotentes significa ficar do lado dos poderosos, não ser neutro. O educador tem o dever de não ser neutro”. 

Esse tipo de neutralidade era afirmada na educação baseada na pedagogia tecnicista do período militar, que foi retomada pela ideologia neoliberal nos anos de 1990 e, atualmente, pelo projeto Escola sem Partido, na tentativa de  despolitizar a sociedade, o debate de ideias e o pensamento crítico.  

Os temas tratados em suas obras, tais como liberdade, visão dos oprimidos, esperança, autonomia, indignação, e os sonhos possíveis são fundamentais para uma educação voltada à mudança histórica e à ação transformadora.  Conforme Freire escreve em Pedagogia do Oprimido: “Os oprimidos, contudo, acomodados e adaptados, “imersos” na própria engrenagem da estrutura dominadora, temem a liberdade, enquanto não se sentem capazes de correr o risco de assumi-la.” 

Pensar a educação para além da escola

Crédito: Instituto Paulo Freire

As reflexões de Freire sobre as práticas educativas para além da escola, — no interior dos movimentos sociais, nas diversas formas de sociabilidade e convivência dos grupos populares, na ação dos partidos políticos, nas práticas dos governos e nas distintas manifestações da cultura popular — demonstraram a necessidade de pensar num âmbito mais abrangente, aliando teoria e prática.   

Desde o momento em que propôs uma outra alfabetização de jovens e adultos, Freire afirmava que o domínio da palavra, o saber escrever e ler, somente adquiriam sentido se traduzissem uma melhor capacidade de leitura do mundo, de reflexão crítica a respeito do contexto em que o ser humano vive. Para ele, a  leitura do mundo precedia a leitura de letras e da palavra. Ou seja, propunha o trabalho educativo na perspectiva da consciência política.  

Freire  ainda afirmava que, se por um lado a cidadania ativa não dependia somente da educação, por outro lado, sem a educação, a cidadania ativa também não se construía. Com esta afirmação, ele apontava os limites e fragilidades das políticas educativas se estas não estivessem articuladas a ações econômicas, sociais, políticas, culturais e ambientais na perspectiva de um novo modelo de desenvolvimento fundado na justiça social, na equidade, na sustentabilidade, nos direitos humanos.  

Nos anos de 1990, foi enfatizada a importância da formação para a cidadania ativa, mostrando a necessidade de uma pedagogia democrática para transformar as relações e as formas de exercício do poder. Pois, conforme apontado não apenas por ele, mas também por outros autores e autoras,  o elitismo e o autoritarismo historicamente operados pelas classes dominantes enraizaram-se profundamente nas sociedades latino-americanas.

Nesta perspectiva, reafirmava-se  a necessidade de construir-se uma democracia integral e uma cidadania ativa para superação das múltiplas formas de opressão,  buscando concretizar  novas formas de exercício do poder numa cultura política radicalmente democrática. Ademais, conforme Freire explicita numa de suas falas mais famosas: “quando a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é ser o opressor.” 

A articulação entre educação e mudança social

Paulo Freire e Darcy Ribeiro num debate sobre educação no Rio de Janeiro

 Em seu artigo Três razões para estudar Paulo Freire hoje, para além da mais óbvia, Licínio Lima pondera que “Freire inscreve-se na teoria da democracia participativa e entende o conceito de participação como um ato de “ingerência” no processo da tomada das decisões”.  Lima pondera que a democracia participativa “[…] é base da pedagogia democrática que propõe, por outro lado, é princípio pedagógico próprio da aprendizagem da democracia”.  “Freire insistia na necessidade de os súditos se transformarem em cidadãos”, “ganhando voz, ganhando responsabilidade política”, diz Lima, e buscava contribuir para a democratização da sociedade como um todo, e não apenas do Estado e das instituições políticas formais. 

Também o debate sobre qualidade da educação vem à tona, pois era preciso que esta fosse idealizada e concretizada na perspectiva dos objetivos emancipatórios das práticas educativas, resgatando, assim,  a politicidade inerente à educação e a sua estreita articulação com a mudança social. Freire sustentava que “a educação é um ato de amor, por isso, um ato de coragem. Não pode temer o debate. A análise da realidade não pode fugir à discussão criadora, sob pena de ser uma farsa.”  Em seu livro  Pedagogia da Indignação, publicado postumamente, Freire critica os fenômenos de despolitização da educação dizendo: “nunca talvez se tenha feito tanto pela despolitização da educação quanto hoje”.   

Conforme ensina Freire, o estímulo à participação dos estudantes na escola é extremamente importante para a assimilação do que é ser cidadão e cidadã, e para sentir-se sujeito do processo educacional. A escola cidadã deve partir da necessidade dos alunos e das alunas defendendo sempre a educação dialógica. Para além dos conteúdos resultantes do conhecimento historicamente acumulado, a cidadania deve ser vivenciada na escola.

Para que esta formação seja completa, a formação crítica necessariamente tem que ser vivenciada. Esta educação, parte das necessidades populares, estimula e cria canais de participação como o planejamento participativo ou assembleias, numa escola que trabalha na perspectiva do aprendizado dos direitos e deveres de cidadania.  Nesta escola, todos (as) são importantes e ouvidos(as), desde estudantes, professores e professoras, demais trabalhadores(as) da escola e familiares cumprindo o direito à palavra que está contemplado na Constituição Federal  e na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional.  

A Escola Cidadã se articula com a cidade, o Estado, o país e o mundo. É uma escola de convivência, de respeito às diferenças inclusive de ideias e voltada para a transformação, que entende que os direitos humanos não estão garantidos para sempre e que a democracia não é uma conquista definitiva. Esta escola é feliz. Trabalhando também na perspectiva da Ecopedagogia, relembra que a sustentabilidade é necessária para a vida, para o bem-viver, valorizando a diversidade, que é vista como uma beleza, num projeto humanista.  

 Nesta escola, o trabalho será orientado para educar com sentido, educar com participação, educar para a criatividade, para a alegria e a esperança.  

Tânia Suely Marcelino Brabo é professora Livre-Docente do Departamento de Administração e Supervisão Escolar na Faculdade de Filosofia e Ciências da Unesp em Marília.