Ação no STF que contesta competência da CTNBio pode comprometer pesquisa em biotecnologia

Preocupação de especialistas é que decisão gere insegurança jurídica e impacte diversas áreas, da produção agrícola aos testes e vacinas para Covid-19

Uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) que tramita no STF pode tirar da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) a exclusividade da regulação sobre a segurança de Organismos Geneticamente Modificados (OGMs), também conhecidos como transgênicos. Para os pesquisadores que atuam na área de biotecnologia, a aprovação da ação seria um retrocesso capaz de interromper estudos em andamento no país, causar insegurança jurídica e comprometer as pesquisas na área.

A CTNBio foi criada em 1995, com o objetivo de prestar assessoria técnica ao governo Federal nos assuntos relativos à Lei de Biossegurança (veja box abaixo). A ADI 3526, ajuizada em 2005 após representação do Partido Verde (PV) e o Instituto de Defesa do Consumidor (IDEC), questiona uma série de dispositivos presentes na atual Lei de Biossegurança, a lei n° 11.105/2005. Entre os pontos contestados estão a exclusividade da CTNBio para exigir estudos prévios de impacto ambiental e para decidir sobre a liberação dos transgênicos. Em síntese, o texto argumenta, entre outros pontos, que a não exigência de estudos prévios fere o princípio da precaução como medida essencial de prevenção de riscos ambientais e enfatiza que a proteção do meio-ambiente é uma responsabilidade compartilhada entre União, estados e municípios, tal como aponta a Constituição Federal.

Cientistas que integraram e ainda integram a Comissão demonstram preocupação com uma possível decisão do STF em favor da ADI. Entre os riscos levantados pelos especialistas está um possível esvaziamento da função do órgão, a perda do rigor científico nas análises, a insegurança jurídica em relação à aprovação dos OGMs (uma vez que não está definida a forma como União, estados e municípios iriam compartilhar essa responsabilidade) e um impacto imediato nas pesquisas realizadas no país na área de biotecnologia.

Jesus Aparecido Ferro é professor da Unesp no câmpus de Jaboticabal e um dos titulares da Comissão, como especialista da área Vegetal. Defensor da competência da CTNBio para decidir sobre a segurança dos transgênicos, ele argumenta que a comissão reúne diversas expertises para avaliar os OGMs com base na melhor ciência que existe hoje, e que o princípio da precaução, embora importante, não deve ser levado ao extremo, sob o risco de inviabilizar qualquer decisão. “Se for preciso uma certeza absoluta e imutável para aprovar algo, não teríamos sequer antibióticos em uso. Uma análise de risco vê prós e contras. Se o risco for muito pequeno e o benefício for muito grande, segue-se em frente e continua-se monitorando o produto. É o que a Anvisa faz com medicamentos, por exemplo”, afirma.

Ao longo dos 15 anos de análises, a CTNBio comprovou a segurança de dezenas de plantas geneticamente modificadas. “Desde que a Comissão foi criada nunca houve a necessidade de realizar qualquer recall  porque as análises são muito bem feitas. Essa talvez seja a maior prova da competência do orgão”, argumenta.

O docente destaca ainda que a criação da CTNBio permitiu que fossem elaboradas legislações específicas para se trabalhar com OGMs no Brasil. “Seja em laboratórios de universidades e empresas, seja em experimentos no campo, esses trabalhos devem ser feitos dentro de regras específicas estabelecidas pela Comissão e sob fiscalização de órgãos regulatórios”, explica.

Em sua segunda passagem pela Comissão (Jesus integrou o colegiado durante três mandatos entre 2012 e 2018), o docente demonstra preocupação com o andamento das pesquisas  nos laboratórios brasileiros, caso a ADI seja aceita pelo Supremo. “Acho que seria um retrocesso absurdo. Seria necessário elaborar um novo ordenamento jurídico para a análise dos OGMs no Brasil e também interromper todas as atividades de pesquisa que acontecem atualmente nos laboratórios de universidades e empresas”, prevê Jesus. 

Idas e vindas no STF
A ADI 3526 foi ajuizada pela Procuradoria Geral da República (PGR) em 2005, tendo o ministro Celso de Mello como relator. Com sua aposentadoria, em outubro de 2020, a relatoria ficou com seu sucessor, Kassio Nunes Marques. Só então a ação entrou na pauta para julgamento, marcado para o dia 11 de fevereiro, 15 anos depois do início do processo. Entretanto, em virtude da discussão de outros temas, a ação não foi julgada e saiu novamente da pauta do Tribunal. Segundo a assessoria de imprensa do STF, não há previsão de uma nova data para julgamento. 

Para a professora da Unesp no câmpus de Araraquara e especialista em Processo Constitucional Soraya Gasparetto, a demora no julgamento da ação pode ter um alto custo para a sociedade. “Quando você escolhe não julgar, significa manter a lei constitucional e produzindo seus efeitos. Isso é grave”, afirma a docente que integra uma comissão de juristas presidida pelo ministro Gilmar Mendes para justamente sistematizar as regras do processo constitucional.”Existem questões que o STF julga rapidamente e outras que não. Não há uma regra que defina prioridades e este é um problema, uma vez que o processo vira uma ferramenta invisível de poder”, argumenta.

Segundo Soraya, existem hoje no Supremo quase 7 mil ADIs como a ADI 3526 à espera de um julgamento. Além da lentidão no julgamento dos processos, a professora também atribui este alto número de ações à falta de qualidade legislativa no Brasil e à própria atuação dos partidos políticos, os maiores proponentes dessas ADIs. “Há quem se queixe que o STF se intromete demais nas questões políticas, mas muitas vezes o Supremo é empurrado para essa arena pelos próprios partidos”, afirma.

Consequências
Para Walter Colli, pesquisador sênior do Instituto de Química da USP e presidente da CTNBio entre 2005 e 2010, período em que entrou em vigor a Lei de Biossegurança, a aprovação da ADI pode comprometer a segurança das análises dos OGMs e esvaziar as atribuições da Comissão. No seu entendimento, o colegiado é um órgão de estado cujas decisões em relação à segurança dos produtos devem ser tomadas por cientistas especialistas e com conhecimento sobre a genética molecular. 

Vacina da Janssen chegando ao Piauí, no final de junho (Foto: Sesapi)

“É evidente que esse tipo de decisão não pode ficar a cargo de estados e municípios. Ela deve ser nacional e técnica, passar por uma comissão especializada formada por cientistas com ampla formação no assunto”, argumenta o professor. Ele acrescenta ainda que a aprovação da ADI 3526 pelo STF poderia burocratizar a aprovação dos OGMs, prejudicando desde o agronegócio até a aprovação de vacinas com as da empresa Janssen, cujo imunizante possui insumos geneticamente modificados. 

Embora os exemplos mais conhecidos de produtos transgênicos estejam nas culturas agrícolas como soja ou milho, é considerados como OGM qualquer organismo cujo material genético tenha sido modificado por qualquer técnica de engenharia genética, incluindo microrganismos usados na indústria ou medicamentos para a cura de doenças genéticas. Algumas vacinas desenvolvidas contra a Covid-19, por exemplo, têm em sua formulação tecnologias de engenharia genética e passaram pela análise de segurança da CTNBio antes de seguir para a Agência de Vigilância Sanitária (Anvisa), que decide sobre o seu uso comercial no país. 

De acordo com o último relatório anual da Comissão, em 2020, a CTNBio analisou 16 projetos de pesquisa para novos testes diagnósticos e vacinas contra o coronavírus, além de duas consultas sobre produtos destinados ao enfrentamento da Covid-19. Nesse sentido, é possível que uma decisão do STF em favor da ADI, embora mire as culturas transgênicas, acabe acertando no combate à Covid-19.

Aos 82 anos e com toda uma carreira dedicada à pesquisa em Bioquímica e em Biologia Molecular, Walter teme que uma decisão favorável à ADI pelo STF prejudique diretamente a pesquisa científica. “A CTNBio surgiu junto com um boom de pesquisadores dedicados à genética molecular. Muita gente faz pesquisa nessa área porque ela é regulada por uma comissão séria”, afirma o professor emérito da USP. “Seria um tremendo retrocesso para o país, mas o Brasil está vivendo um período de retrocessos, então eu realmente não sei o que pode acontecer”. 

Na imagem acima, foto de lavoura da cultivar de feijão BRS FC401 RMD, aprovada pela CTNBIo e lançada pela Embrapa Arroz e Feijão em 2020. (Foto: Rodrigo Peixoto de Barros/ Embrapa)

COMO FUNCIONA A CTNBIO

Criada em 1995 e reestruturada em 2005, no âmbito da própria Lei de Biossegurança, a CTNBio é um colegiado formado por 54 especialistas (sendo 27 titulares e 27 suplentes) de reconhecida competência científica. A sua composição prevê 12 representantes das áreas de Meio Ambiente, Vegetal, Saúde Humana e Saúde Animal, além de nove representantes de Ministérios e ainda seis especialistas das áreas de Agricultura Familiar, Biotecnologia, Direito do Consumidor, Meio Ambiente, Saúde do Trabalhador e Saúde. As indicações são feitas pelos próprios Ministérios e pelos próprios pares, por meio das sociedades científicas (SBPC e ABC).

Cabe mencionar ainda que todos os membros da Comissão têm no mínimo o título de doutor em suas áreas, e a segurança de qualquer produto precisa ser aprovada pela maioria absoluta dos titulares. Além disso, as pautas, atas e todos os pareceres que embasam as decisões da Comissão estão disponíveis online de forma pública e transparente.

Além da estrutura centralizada em Brasília, a CTNBio conta ainda com uma rede de Comissões Internas de Biossegurança (CiBio) obrigatórias em todas as instituições que se dedicam à pesquisa ou desenvolvimento de OGMs, sejam elas universidades, institutos de pesquisa ou empresas. Cabe a essas comissões internas, por exemplo, o cumprimento das normas de biossegurança nos laboratórios, a realização de treinamentos e o envio de relatórios anuais sobre as atividades envolvendo OGMs na instituição. “É um processo bastante controlado. A CTNbio sabe exatamente o que está sendo feito em todo o Brasil, seja em laboratórios ou no campo, em termos de pesquisa com transgênicos”, afirma o professor Jesus Aparecido Ferro, do Departamento de Tecnologia da Faculdade de Ciências Agrárias e Veterinárias (FCAV) da Unesp.