José Paes de Almeida Nogueira Pinto
É comum você ouvir em uma roda de conversa, especialmente quando ela ocorre entre pessoas de uma mesma faixa etária: “Música boa era a do nosso tempo, hoje é um horror!” A essa afirmação, normalmente, segue-se um exemplo de “música boa”, cantada a plenos pulmões e, na maioria das vezes, fora de tom e andamento, fatos plenamente justificáveis dado o habitual teor alcoólico dos cantores nessas ocasiões.
Provavelmente eu também já deva ter feito essas afirmações e, igualmente, tentado provar o quanto a música do meu tempo, do nosso tempo, era melhor. Hoje já não o faço mais, mas fico a me perguntar: quais as razões para esse comportamento? Nostalgia da juventude? Lembranças musicais associadas a momentos inesquecíveis? Falta de tempo e dificuldade de acesso à produção musical atual?
A resposta talvez seja uma mescla de todos esses pontos aqui levantados, mas o fato é que para a maioria das pessoas o prazer musical torna-se datado e associado a uma fase de suas vidas.
Anos incríveis
No meu caso, os anos 1960 e início dos 1970 foram marcantes. Cresci ouvindo e me deliciando com Beatles, Stones, Bob Dylan, The Who, The Mamas & The Papas, Simon & Garfunkel e tantos outros. Música brasileira? Chico, Caetano, Gil, Milton, Elis, Gal, Bethânia, Nara, Vinícius, Paulinho da Viola, Edu Lobo. Entendo e reconheço que foi uma época mágica, mas outras já ocorreram anteriormente a essas e muitas outras acontecerão no futuro.
Só para exemplificar: se os 60 e 70 foram mágicos, também não podemos nos esquecer da década de 1930 aqui no Brasil. Foram naqueles anos que Pixinguinha, Ismael Silva, Cartola, Noel, Ary Barroso, Bide e Marçal começaram a construir a música popular brasileira moderna. Recomendo a todos que ouçam na Rádio Batuta (Instituto Moreira Salles), a série maravilhosa produzida e apresentada por João Máximo, “Dez anos que mudaram a música brasileira (1929-1939)”, em que esse período tão rico é abordado.
Fica fácil entender o quanto esses compositores foram geniais e inovadores. Vários outros momentos importantes e especiais ocorreram em nossa música: não nos esqueçamos da Bossa Nova, do Tropicalismo e do Clube da Esquina. Um moto-contínuo de riqueza e inspiração, que faz de nossa música popular uma das principais expressões culturais de nosso povo.
‘Bolhas’ de ouvintes
Mas voltemos à nossa questão inicial: ainda temos uma música popular rica? Ou realmente “depois deles não apareceu mais ninguém”? Nessa fase pandêmica, tenho aproveitado e ouvido muita música e, confesso, renovei o prazer de descobrir jovens muito talentosos. Por indicações de amigos e familiares mais jovens, fui me aventurando nas plataformas digitais e pude, mais uma vez, constatar: há muita gente boa!
Então, quais são os motivos para que esses novos talentos não sejam conhecidos do grande público e fiquem restritos somente algumas “bolhas” de ouvintes? No passado, as dificuldades tinham início já na gravação do material, ou seja, a produção do disco (vinil) ou CD. Normalmente era necessário estar contratado por uma grande gravadora para que isso fosse possível. A produção “independente” era raríssima e, normalmente, fadada ao fracasso.
Uma honrosa exceção, nesse caso, foi o Grupo Boca Livre. Em 1979, seus integrantes lançaram, de forma independente, um LP que tornou-se um imenso sucesso, tendo vendido milhares de cópias e tornado o grupo conhecido do grande público.
Festivais da canção
Atualmente, tornou-se muito mais fácil gravar e produzir o seu próprio material, não havendo mais a necessidade de estar contratado por uma grande gravadora, possuidora de um estúdio supermoderno. A tecnologia digital tornou isso muito mais fácil, mas as dificuldades para se “fazer ouvir” continuam as mesmas, ou talvez sejam ainda maiores.
No passado, após o processo de gravação, o obstáculo seguinte era a distribuição do LP/CD para os pontos comerciais. Além disso, era fundamental que o artista aparecesse nas televisões e tocasse nas rádios. Na década de 1960, no entanto, você ligava o rádio e podia escutar Chico, Caetano, Elis, Bethânia e tantos outros. Na televisão, os festivais de música faziam um enorme sucesso e as pessoas se dividiam nas preferências, sendo a disputa assunto de boteco e dos almoços familiares de domingo.
Em 1966, por exemplo, na finalíssima do II Festival de Música Popular Brasileira, quando “A Banda” e “Disparada” dividiam as preferências, o país parou para ver a decisão. Era como se estivéssemos assistindo a uma final de campeonato de futebol. No ano seguinte, 1967, outra “disputa” musical monopolizou a população. Na grande final, Caetano, Edu Lobo, Chico e Gil disputaram o primeiro lugar, que teve “Ponteio”, de Edu e Capinan, como grande vencedora. Todo esse clima foi retratado em um documentário maravilhoso (“Uma noite em 67”), lançado há alguns anos. Nele podemos sentir a riqueza musical daquela década. Vale a pena assistir.
Novos talentos
E, hoje em dia, o que temos? Não há mais talentos como antigamente? Na minha concepção, eles existem, mas são solenemente ignorados pela imensa maioria das emissoras de rádio e televisão, a mídia tradicional. Onde podemos então encontrá-los? Procurem nas novas mídias e vejam que essa “molecada” tem criado trabalhos maravilhosos. Resta-nos achá-los, cultivá-los e disseminá-los por meio de nossas redes de relacionamento, sejam elas digitais ou pessoais.
Para falar de novos talentos da música popular brasileira, vou citar três exemplos que estão aí, com trabalhos que merecem ser conhecidos.
Luísa Lacerda – cantora e violonista, é formada em violão erudito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Seu primeiro álbum, “Meia Volta”, em parceria com o compositor e violinista Miguel Rabello, foi lançado em 2017. A seguir, em 2019, outros dois trabalhos foram apresentados, um deles com a violoncelista Maria Clara Valle (“Beira do Mundo”) e um segundo com o compositor e violonista Renato Frazão (“Cantiga do Breu”). Em 2020, lançou com o compositor e violonista Giovanni Iasi o CD “Nó”. Agora, em 2021, apresentou o seu primeiro trabalho solo, o EP “Zigue-Zague”. Com sua voz e violão, Luísa tem emprestado seu talento para mostrar jovens compositores brasileiros. Também tem encantado artistas já consagrados de nossa música. Vejam essa interpretação da valsa “Canção Desnecessária”, de Guinga e Mauro Aguiar. Ao final, Guinga comenta o talento dessa jovem artista.
Flaira Ferro – Nascida em Recife, viveu a infância rodeada de estímulos artísticos ligados às manifestações do carnaval de Pernambuco. Aos 6 anos de idade, começou a dançar frevo, tendo sido aluna do lendário mestre Nascimento do Passo. Em 2012, mudou-se para São Paulo e trabalhou em projetos do Instituto Brincante, de Rosane Almeida e Antônio Nóbrega. Possui dois CDs já lançados: “Cordões Umbilicais” (2015) e “Virada na Jiraya” (2019).
Luiza Brina – mineira, ingressou na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) para cursar Música, com ênfase em composição. O curso, entretanto, só foi finalizado no Rio de Janeiro, cidade em que residiu por quatro anos em busca de novas experiências musicais. De volta a Belo Horizonte, gravou em 2011 o seu primeiro CD, “A Toada Vem Pelo Vento”. Em 2017, lançou “Tão tá”, cuja produção ficou a cargo de Chico Neves, que já produziu nomes como, por exemplo, Lenine e Los Hermanos. O seu terceiro álbum, “Tenho saudade, mas já passou”, foi lançado em 2019.
Como diria Chico, “Evoé, jovens à vista!”
José Paes de Almeida Nogueira Pinto é professor do Departamento de Produção Animal e Medicina Veterinária Preventiva, da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da Unesp, câmpus de Botucatu. é assessor da Assessoria de Comunicação e Imprensa da Unesp.
Na imagem acima, Maria Bethânia e Vinicius de Moraes, 1972. Foto: Correio da Manhã/Wikimedia Commons.