Vamos investir em educação dificultando o acesso dos pobres aos livros?

É sistemático o esforço da Presidência da República para facilitar o acesso às armas e obstruir o acesso aos livros

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No dia 5 de abril, a Receita Federal publicou uma atualização de um documento com perguntas e respostas sobre a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) que fundirá o PIS/COFINS em um único imposto. Ao abordar a questão da incidência do tributo sobre a venda de livros, a resposta 14 afirma de maneira surpreendente que

famílias com renda de até 2 salários mínimos não consomem livros não-didáticos e a maior parte desses livros é consumida pelas famílias com renda superior a 10 salários mínimos […] Neste sentido, dada a escassez dos recursos públicos, a tributação dos livros permitirá que o dinheiro arrecadado possa ser objetivo de políticas focalizadas, assim como é o caso dos medicamentos, da saúde e da educação no âmbito da CBS.

A resposta, absurda e intrinsecamente contraditória (investir em educação dificultando o acesso dos pobres aos livros), revela uma política perversa de aumento da desigualdade social em um país que está entre os dez mais desiguais do mundo, segundo estimativas do Banco Mundial com base no índice de Gini.

Efeito adverso

Conforme mostram os dados de um estudo sobre os hábitos de leitura do brasileiro, Pesquisa Retratos da Leitura, do Instituto Pró-Livro, quase 26 milhões de brasileiros identificados nas classes C, D e E leem e compram livros. Esse dado vai de encontro à pretendida solução do ministro Paulo Guedes de que os ricos poderiam pagar mais pelo livro e o governo embutiria no recurso do bolsa família o valor para a compra de livros – as classes C  e D, 69% dos compradores de livro, de acordo com o Retratos da Leitura, não são contempladas por essa bolsa e o Brasil teria menos pessoas comprando livros.

O impacto da extinção de alguns impostos, como, por exemplo, o ICMS, já foi objeto de uma reportagem publicada no Portal da Unesp. A criação de um tributo oriundo da fusão do ICMS com outros exigiria uma constituição de um novo pacto tributário entre o Estado de São Paulo e suas três universidades – USP, Unesp e Unicamp – com vistas a manter o orçamento delas.

No caso da CBS, uma alíquota de 12% poderia causar um aumento em torno de 20% para os livros. A consequência imediata disso seria o afastamento da população pobre dos livros e o aumento do fosso social e cultural, já alargado por causa da pandemia.

Entidades protestam

Nove entidades representativas do livro no Brasil, a Associação Brasileira de Direitos Reprográficos (ABDR), a Associação Brasileira de Difusão do Livro (ABDL), a Associação Brasileira das Editoras Universitárias (Abeu), a Associação Brasileira de Editores e Produtores de Conteúdo e Tecnologia Educacional (Abrelivros), a Associação Nacional de Livrarias (ANL), a Câmara Brasileira do Livro (CBL), a Liga Brasileira de Editoras (Libre), o Sindicato Nacional dos Editores de Livros (SNEL) e a União Brasileira de Escritores (UBE), desde os primeiros rumores envolvendo a mudança da legislação,  já haviam se manifestado veementemente a favor de manter a isenção dos impostos para  livros.

Nesse mesmo caminho, o  Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil emitiu nesta quinta-feira (8) uma nota repudiando a extinção da imunidade tributária dos livros no Brasil, repúdio a que se somou a Frente Parlamentar Mista em Defesa do Livro, da Leitura e da Escrita.

A oneração de livros, jornais e revistas subverte a intenção da proposta inicial, feita por Jorge Amado em 1946 e incorporada à Constituição do Brasil. Vivemos um momento obscuro onde presenciamos o esforço sistemático da Presidência da República para a facilitação do acesso às armas e a obstrução do acesso aos livros. O processo tóxico de exclusão social tem muitas faces e não será ocultado sob o manto da simplificação do labirinto tributário brasileiro.

Marcelo Takeshi Yamashita é assessor-chefe da Assessoria de Comunicação e Imprensa da Unesp. Foi diretor do Instituto de Física Teórica (IFT) no período de 2017 a 2021.

Jézio Hernani Bomfim Gutierre é professor do Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia e Ciências do câmpus de Marília da Unesp e diretor-presidente da Fundação Editora Unesp.

Na imagem acima, o ministro da Economia, Paulo Guedes, em audiência pública virtual no Congresso Nacional. Foto: Reprodução/Canal do Senado Federal/YouTube.