Não são muitos os brasileiros que sabem identificar, num mapa da distante Ásia Central, a cidade de Tasquente. Mas os ótimos resultados que nossos judocas conquistaram no torneio mundial de Judô, que ocorreu por lá em outubro, inscreveram o nome da capital do Usbequistão na história do esporte em nosso país. A equipe brasileira voltou trazendo na bagagem dois ouros, frutos das vitórias de Mayra Aguiar e Rafaela Silva, uma prata, conquistada por Beatriz Souza, e um bronze, ganho por Daniel Cargnin. E a medalha de Mayra Aguiar teve um brilho a mais: ao terminar em primeiro lugar na categoria até 78 kg, a gaúcha de 31 anos se tornou o primeiro atleta do judô brasileiro a vencer três vezes o campeonato mundial do esporte.
A competitividade que o judô brasileiro alcançou internacionalmente reflete o amplo universo de praticantes que ele mobiliza internamente. Segundo dados de 2019 da Confederação Brasileira de Judô, o Brasil abriga cerca de 3700 instituições de ensino e prática da arte marcial, incluindo 1952 clubes. O total de atletas federados, capazes de disputar campeonatos oficiais, chega aos 84 mil. Mas o de praticantes eventuais é muito maior, e ultrapassa os 2,5 milhões.
Mas, para além de somar-se aos demais 7 ouros, 12 pratas e 29 bronzes que o Brasil já ganhou em mundiais, as quatro novas premiações servem também para jogar luz na comemoração daquela que é talvez a mais impactante conquista do judô brasileiro: a primeira medalha ganha em olimpíadas. Há 50 anos, nos Jogos Olímpicos de Munique, o judoca Chiaki Ishii levou uma medalha de bronze por seu desempenho na categoria abaixo de 98 kg. Seu feito abriu caminho para que as gerações seguintes de judocas ganhassem medalhas em todas as edições dos Jogos Olímpicos de 1984 para cá, consolidando o Brasil como uma respeitada potência no esporte nascido no Japão.
Chiaki Ishii nasceu em 1941 na cidade de Ashikaga, no Japão. Sua família contava com respeitados lutadores de judô, e ele iniciou seus treinos aos 3 anos de idade. Permaneceu até os 18 na sua cidade natal e destacou-se como atleta. Chegou a participar da seletiva para integrar a equipe japonesa que disputaria a Olimpíada de Tóquio, em 1964, a primeira edição em que o judô figurou como esporte olímpico. Perdeu a vaga para o atleta que viria a ganhar a medalha de ouro. Desiludido, embarcou num navio em direção ao Brasil. Estabeleceu-se em Presidente Prudente e começou a trabalhar como agricultor. A pedido dos locais, começou a ensinar judô. Mudou-se para a capital e abriu uma academia, naturalizando-se brasileiro em 1969. Em 1971 foi medalha de bronze no campeonato mundial em Ludwigshafen, na Alemanha, feito inédito que lhe valeu um convite para representar o Brasil na Olimpíada de 1972. E o resto é história.
A breve carreira de Ishii como professor no Brasil antes de ganhar suas medalhas não foi um trovão num céu azul. O grande número de imigrantes que desembarcaram por aqui, a partir de 1908, asseguraram ao país o posto de maior comunidade japonesa fora do Japão. Segundo a Embaixada do Japão, vivem aqui dois milhões de japoneses ou de seus descendentes. Em 1914, chegaram ao Brasil dois discípulos diretos de Jigoro Kano, fundador do judô (veja a linha do tempo). Eisei Mitsuyo Maeda e Soishiro Satake faziam desafios a lutadores de outras modalidades com o objetivo de promover a nova arte marcial. Boa parte das primeiras academias surgiu no norte do país e no interior do estado de São Paulo, que se tornaria um polo de difusão do esporte Entre os anos de 1924 e 1950, um número crescente de imigrantes adeptos do esporte aos poucos desenvolveu o aspecto organizacional da modalidade, uma vez que havia interesse em realizar competições entre os praticantes. As primeiras federações surgiram na década de 50, incluindo a Federação Paulista de Judô, que foi fundada em 1952. O primeiro campeonato brasileiro de judô foi realizado no Rio de Janeiro em 1954.
Mas o crescimento do judô no país não se deveu apenas aos aspectos desportivos ou marciais, explica o judoca e treinador de judô Antônio Carlos Tavares Júnior. Ele conta que os aspectos relacionados a disciplina, etiqueta e educação também atraíram os brasileiros. “Devido a essa reputação positiva por seus efeitos nos aspectos físicos, sociais e culturais, médicos e outros profissionais de saúde começaram a indicar a prática de judô para crianças. E também despertou interesse junto aos pais que buscavam um esporte que transmitisse para os filhos valores sociais e educacionais como respeito e disciplina, que são muito fortes na modalidade”, diz Tavares Júnior, que é também mestre em ciências da motricidade e doutorando pela Unesp em Rio Claro, onde pesquisa a preparação desportiva no judô.
Esse heroísmo olímpico teve um apelo especial para um público específico. “Todo atleta olímpico chama a atenção para a modalidade e se torna referência de formação para os jovens”, diz Dalton Muller Pessôa Filho, docente do curso de Educação Física do campus de Bauru da Unesp, e que esteve à frente de projetos de extensão que traziam a prática da modalidade para escolas estaduais de São Paulo. “Basta ver como a inclusão de esportes como skate e surf nas edições recentes dos Jogos Olímpicos projetou uma imagem diferente para estas modalidades”, analisa.
A partir dos anos 1980, as crianças que viram Ishii ganhar sua medalha em 1972 já eram grandes o suficiente para brigar por resultados olímpicos. O paulista Aurélio Miguel começou no esporte aos 4 anos, por indicação médica, para tratar uma doença respiratória. Em Seul-88 ele tinha 24 anos, e ganhou para o judô brasileiro a primeira medalha de ouro, na categoria meio-pesado. E ainda conseguiu subir no pódio para receber o bronze nas Olimpíadas de Atlanta, oito anos depois.
Entre os anos de 1984 e 2020, o Brasil conquistou medalhas no judô em todas as edições de Jogos Olímpicos. A primeira medalha feminina no judô veio em 2008, quando Ketleyn Quadros foi bronze nas Olímpiadas de Pequim. Quatro anos depois, em Londres, a piauiense Sarah Menezes recebeu a primeira medalha de ouro feminina no judô brasileiro. Em campeonatos mundiais, a judoca Danielle Zangrando recebeu o primeiro ouro feminino em Tóquio em 1995.
O irmão ‘abrasileirado’ do judô
Ao mesmo tempo que o judô se difundia no Brasil sob o manto da cultura tradicional japonesa, aos poucos se estruturava uma arte nova marcial brasileira, porém descendente das mesmas raízes do esporte japonês: o jiu-jitsu. O jiu jitsu é fruto de um encontro entre alunos de Jigoro Kano, dos quais o mais importante foi Mitsuo Maeda, com membros da família Gracie, como Hélio e Carlos Gracie, que se especializaram em técnicas de imobilização e submissão na luta de chão.
Atualmente, o chamado brazilian jiu-jitsu tornou-se uma modalidade esportiva global, disseminada por professores e atletas brasileiros. Apesar das similaridades em relação ao surgimento, o judô e o jiu-jistu apresentam diferenças em diversos aspectos, tais como o conjunto de técnicas, a duração dos treinos e lutas, as regras de competições esportivas e a tradição. Segundo Tavares Júnior, alguns professores de jiu-jitsu adotam uma abordagem que reconhece muitas das tradições comuns ao judô, enquanto outro grupo segue uma linha mais “abrasileirada” e dispensam boa parte da etiqueta tradicional. “Até por uma questão cultural, como é uma modalidade que foi desenvolvida por brasileiros, existem essas diferenças entre as etiquetas que são constantes no tatame”, ressalta o pesquisador.
Professor da Unesp foi um dos pioneiros no judô universitário.
Um dos pioneiros no esporte em âmbito universitário, Mateus Sugizaki teve uma trajetória que alternou entre os tatames e a academia. Sugizaki começou no esporte ainda na academia do pai, um imigrante japonês que chegou ao Brasil em busca de melhores condições de vida. Em 1966, Mateus Sugizaki ingressou no curso de Ciências Biológicas da Faculdade de Ciências Médicas e Biológicas de Botucatu, que depois integraria a Unesp.
Em 1968, disputou o campeonato mundial universitário de judô, disputado em Lisboa, e foi o primeiro brasileiro a sagrar-se campeão. Reconhecido como referência no esporte, Sugizaki foi técnico da seleção brasileira e esteve na Olimpíada de Moscou em 1980. Em paralelo, seguiu sua carreira na universidade, tendo sido professor-titular e vice-diretor na Faculdade de Ciências de Bauru.
Seu filho, Mário Mateus Sugizaki, que também foi técnico de judô e hoje é docente na Universidade Federal do Mato Grosso, conta das condições adversas que seu pai teve de enfrentar para se tornar campeão. “Ele treinava sozinho e praticava golpes em árvores”, diz. “Não havia muitas oportunidades para treinos ou competições. Hoje os judocas são profissionais do esporte”, compara.
Na universidade, judô está ligado a ensino e pesquisa
Outra área onde o judô se expandiu foi na universidade brasileira, e desde 1979 a modalidade integra o currículo da graduação em educação física, especialmente para os discentes que obtêm a licenciatura.
No judô, são oito graduações até o atleta conquistar a faixa preta. O profissional formado em educação física pela universidade recebe uma graduação intermediária, “o equivalente à faixa laranja ou verde”, explica Dalton Muller Pessoa Filho.
Ele diz que a opção pelo ensino de lutas em escolas e espaços de iniciação esportiva não costuma se pautar pelo regime de busca de alta performance, mas sim focar o desenvolvimento do ser humano e de suas habilidades motoras a partir das técnicas do judô. “Para isso, o futuro docente estuda não apenas as técnicas do judô, mas também conhecimentos em didática e biologia”, diz.
A produção científica sobre o esporte tem gerado pesquisas e contribuições em áreas como fisiologia, biomecânica e pedagogia do treinamento, diz Tavares Júnior. Ainda existem lacunas entre o conhecimento produzido pela ciência do esporte e os métodos que são empregados na preparação esportiva dos atletas da modalidade, mas de forma geral melhorou a aproximação entre os dois universos. “Judocas de grandes clubes e das seleções brasileiras possuem uma preparação cada vez mais respaldada pela ciência, pois é muito comum que os integrantes dessas comissões técnicas possuam um excelente nível de formação acadêmica, inclusive títulos de mestre e de doutor”, diz.
Porém, o maior conjunto de praticantes de judô se concentra em pequenos centros, projetos e academias, espaços em que a lacuna entre a ciência e a prática é grande, ressalta o pesquisador. A transmissão de conhecimento sobre a prática esportiva, com pouco ou nenhum embasamento científico, ocorre entre as gerações.
Essa brecha contribui para o fenômeno da chamada especialização esportiva precoce, em que o processo de desenvolvimento de atletas é adiantado. Esse problema foi diagnosticado no judô brasileiro e tem influência no alto índice de desistência da modalidade que é registrado na passagem entre a infância e adolescência. Para Tavares Júnior, o ideal é que o conhecimento científico esteja presente em todos os níveis da prática esportiva, desde a iniciação aos ambientes de alto rendimento.
“No Brasil, esse conhecimento é produzido quase exclusivamente nas universidades públicas. Alguns profissionais formados nessas instituições acabam levando esse conhecimento para a prática”, diz o doutorando. Porém, ele destaca que há pouca aproximação entre as universidades e a Confederação Brasileira de Judô, e as federações estaduais. Uma proximidade maior entre as duas esferas facilitaria a transmissão do conhecimento científico produzido sobre judô no Brasil. “Recentemente, surgiram ações interessantes da FPJ, FJERJ e CBJ, que lançaram cursos de atualização de treinadores, com ementas acadêmico-científicas, além de pós-graduações lato sensu para treinadores de judô que foram lançadas nos últimos anos”, diz Tavares Júnior.
“Um ato heroico”
Os bons resultados trazidos pelos atletas brasileiros no mundial este ano em Tasquente devem contribuir para estimular o apetite pelo tatame em uma nova geração, reforçando o ciclo virtuoso que mobiliza a modalidade no país há meio século
“Os resultados competitivos gradualmente alcançados pelos atletas atraíram a atenção da mídia e do público”, diz Tavares Júnior. Isso se refletiu positivamente no fomento do esporte, através de investimentos e patrocínios que se mostraram essenciais para que o judô viesse a se consolidar como o esporte individual de maior sucesso olímpico no país.
Quando Chiaki Ishii começou a brilhar nos torneios locais em São Paulo, porém, o quadro era totalmente adverso, e incluía desde as dificuldades para obter apoios e patrocínio até a falta de estrutura para treinamento. “Embora o judô seja um esporte individual, o desenvolvimento do atleta depende da presença de mais judocas do mesmo nível para treinarem em conjunto”, explica Tavares Júnior. “Por isso, essa vitória obtida por Chiaki em 1972 aparece para nós como um ato heroico.”
Imagem de abertura e linha do tempo: Iara Coelho e Andrea Cardoso/ACI.