Estudo desenvolvido por pesquisadores da Faculdade de Medicina (FMB) da Unesp, câmpus de Botucatu, mostrou que o uso de técnicas de estimulação elétrica no cérebro pode apresentar bons resultados na recuperação de pacientes que apresentam certo tipo de lesão cerebral causada pela ocorrência de um Acidente Vascular Cerebral (AVC). Os resultados da pesquisa, que contou também com a participação de professores e pesquisadores da Faculdade de Medicina da USP em Ribeirão Preto e do Hospital das Clínicas da USP, foram publicados em edição recente da revista científica Annals of Neurology.
O estudo analisou o uso da técnica conhecida como Estimulação Elétrica Transcraniana por corrente direta (tDCS, na sigla em inglês) em pacientes que apresentavam uma condição conhecida como Síndrome de Negligência Espacial Unilateral. A técnica se utiliza de eletrodos não invasivos e indolores, e foi empregada para estimular a parte motora e, principalmente, o reconhecimento do espaço à esquerda para o tratamento da síndrome.
O projeto de pesquisa, denominado Eletron Trial, contou com apoio da Fapesp e foi idealizado pelo médico neurologista e professor Rodrigo Bazan, do Departamento de Neurologia, Psicologia e Psiquiatria da FMB, junto com o fisioterapeuta Gustavo J. Luvizutto, pós-doutor em Neuroestimulação pela FMB (atualmente professor do Departamento de Fisioterapia Aplicada da Universidade Federal do Triângulo Mineiro) e pelo estatístico Hélio Rubens de Carvalho Nunes, docente do programa de pós-graduação do curso de Enfermagem da FMB. O projeto também envolveu a fisioterapeuta Taís Regina da Silva, do setor de Reabilitação do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Botucatu (HCFMB), que foi também aluna de doutorado do programa de pós-graduação de Fisiopatologia em Clínica Médica. Fora da Unesp, a equipe de colaboradores teve como líderes os docentes Taiza Elaine Grespan Santos Edwards e Octávio Marques Pontes Neto, da Faculdade de Medicina da USP de Ribeirão Preto, Adriana Conforto, do Hospital das Clínicas da USP e Vítor Mendes Pereira, do Western Hospital da Universidade de Toronto, no Canadá.
AVC é a segunda causa de mortes no país
O AVC é a segunda causa de mortes no país, além de ser extremamente incapacitante; estima-se que sete em cada dez pessoas que experimentam um não conseguem retomar integralmente as atividades que exerciam anteriormente e precisam passar por algum tratamento de reabilitação. No Brasil e na América Latina em geral chama a atenção a quantidade de pessoas abaixo dos 50 anos que são acometidas pela doença, em virtude da deficiência de controle para os fatores de risco. Bazan, que é coordenador da Unidade de AVC do Hospital das Clínicas da FMB, explica que esse quadro foi uma das razões que motivou o grupo de pesquisas que ele lidera a investigar o uso da tDCS como modalidade de tratamento de neuromodulação não invasiva. Os integrantes do grupo de pesquisa, porém, não possuíam experiência prévia no uso da técnica. O treinamento dos profissionais da Unesp foi possível graças à colaboração da pesquisadora Adriana Conforto, do Hospital de Clínicas da USP. Para a realização do estudo, a FMB adquiriu um aparelho alemão, considerado o melhor do mundo, pelo valor de 8,5 mil euros.
Por meio da Unidade de AVC do HCFMB foram recrutados 45 participantes. Todos haviam sofrido um AVC isquêmico – o tipo mais comum, considerado menos grave – e danos no lobo parietal localizado no hemisfério direito do cérebro. Essa estrutura está ligada à capacidade de reconhecer o espaço que se situa à esquerda do indivíduo. Uma lesão nessa região pode ocasionar a condição conhecida como Negligência Espacial Unilateral (NEU). Essa condição leva a pessoa a ter dificuldade para perceber estímulos sensoriais e sensitivos provenientes do hemicorpo esquerdo (braço, perna e campo visual), prejudicando muito a qualidade de vida e reduzindo a possibilidade de uma reabilitação adequada.
A tDCS já é bastante usada no tratamento de algumas doenças mentais e neurológicas, como a depressão. Bazan conta que alguns estudos anteriores já sinalizavam que seu uso em pacientes em reabilitação de AVC apresentava benefícios. Faltava, porém, um estudo organizado de forma mais estruturada, em termos metodológicos. Esse foi o diferencial da proposta do Eletron Trial, que seguiu um protocolo bastante rigoroso. Levando-se em conta as dificuldades de locomoção que costumam acometer as pessoas que sofrem um AVC, é mais fácil compreender por que um levantamento com estas características não havia sido realizado previamente. De um total de 1958 possíveis participantes, o estudo terminou por analisar 45 indivíduos.
Os pacientes foram organizados em três grupos de quinze integrantes. O primeiro serviu de grupo controle, sem receber efetivamente a terapia. No segundo grupo, a estimulação elétrica foi feita no hemisfério cerebral esquerdo, que não chegou a ser lesionado pelo AVC. “Com este grupo avaliamos uma outra técnica. Sabemos que, devido à plasticidade cerebral, quando um hemisfério apresenta problemas o outro pode apresentar modificações para tentar assumir as funções da área lesionada. Nesta abordagem, procuramos inibir o funcionamento do hemisfério“bom”, para que o hemisfério lesionado, através da plasticidade cerebral, possa ir se recuperando espontaneamente”, explica Bazan. No terceiro grupo a tDCS foi aplicada na região parietal do lobo lesionado. Os participantes passaram por duas sessões semanais de vinte minutos, durante sete semanas e meia de tratamento, durante as quais uma corrente elétrica de 1 miliampére era aplicada na região do córtex parietal posterior. A seguir, eles passavam por uma sessão de exercícios fisioterápicos.
Reorganizando o ambiente
O neurologista explica que a aplicação da corrente elétrica com o propósito de estimular a área lesionada resulta na reorganização do ambiente elétrico na região. “Células que estão nas cercanias da área lesionada podem assumir funções elétricas e permitir que a rede de neurônios como um todo se reorganize, favorecendo a recuperação da função”, explica.
Para aferir os resultados obtidos pelos três grupos, o estudo serviu-se de diversas escalas clínicas já validadas internacionalmente, incluindo o questionário Behavioural Innatention Test Conventional (BIT-C) e a Escala de Catherine Bercego. Outras escalas mediram também outras dimensões, incluindo a intensidade do AVC e a qualidade de vida experimentada pelos pacientes dos três grupos após os respectivos tratamentos. A comparação entre os resultados mostrou que não houve grande diferença, em termos de benefícios, entre o grupo que não recebeu qualquer estimulação e o que foi selecionado para receber estimulação com o objetivo de inibir o funcionamento do lobo não lesionado. Já os indivíduos selecionados para receberem a estimulação diretamente sobre a área lesionada, em combinação com o tratamento convencional apresentaram um resultadocerca de 30% superior, na comparação com o grupo que não recebeu a estimulação.
“Nós vimos que com a neuromodulação, o ganho da fisioterapia foi acelerado. Funcionalmente, percebemos uma melhora no estado de saúde do paciente no que se refere a parte motora, permitindo independência para se alimentar, para se vestir, para marcha. O resultado é visível e bastante promissor”, diz Taís Regina.
Bazan diz que o estudo tem como limitação o pequeno número de indivíduos participantes. Porém, os próprios editores da revista Annals of Neurology já solicitaram acesso aos dados brutos da pesquisa, com o objetivo de conduzirem futuramente uma meta-análise, isto é, uma análise integrada de vários estudos de pequeno porte com características semelhantes, a fim de consolidar as evidências em favor da segurança e, principalmente, da eficácia do uso desta técnica no tratamento de pessoas com como Síndrome de Negligência Espacial Unilateral. “Uma estudo de revisão nestes termos pode contribuir para que, futuramente, a técnica seja adotada na prática clínica dos consultórios, hospitais e centros de reabilitação. Já estamos conversando com profissionais da rede de Reabilitação Lucy Montoro, que é referência no estado de São Paulo, e eles têm demonstrado interesse em avaliar o uso da tDCS no atendimento desses pacientes”, finaliza Barzan.
Colaborou: Assessoria de Imprensa da FMB.
Imagem acima: o aparelho DC-Stimulator em uso. Crédito: Neurocare Group.