Pesquisadores do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Botucatu (HC-FMB) têm aplicado recursos da inteligência artificial a um conjunto de dados produzidos pelo Sistema Único de Saúde relacionados ao transplante de rim. A experiência resultou na criação de duas ferramentas que dão maior previsibilidade a questões fundamentais para os pacientes com indicação para transplante, tais como tempo de espera na lista de transplante ou o risco de morte por Covid-19. A experiência positiva tem estimulado a criação de um laboratório de ciência de dados aplicado à saúde na instituição.
Para o nefrologista Luis Gustavo Modelli, que coordena o Programa de Transplantes de Órgãos Sólidos do HCFMB, a área da saúde aproveita pouco a possibilidade de utilizar e processar os dados produzidos no SUS para empregá-los em áreas como análise preditiva, solução de problemas ou produção de pesquisas científicas. “Em outras áreas, esses recursos são aplicados cotidianamente. O sistema bancário já há algum tempo usa algoritmos para a análise das solicitações de crédito dos clientes. Peças de publicidade são dirigidas a públicos específicos usando estratégias parecidas. Na saúde, infelizmente, ainda precisamos trilhar esse caminho”, pondera.
E, efetivamente, o médico tem buscado trilhar esse caminho. Nos últimos meses, Modelli desenvolveu, em parceria com colegas, duas ferramentas de análise preditiva que combinam uma grande volume de dados históricos, algoritmos e técnicas de machine learning para fazer previsões com o máximo de precisão possível.
À espera do transplante
Atualmente, é difícil fazer estimativas sobre o tempo que um paciente deverá esperar até que chegue o momento de receber um novo rim. A principal razão, explica o médico, é porque a fila não funciona por ordem de chegada, mas por compatibilidade entre o doador e o receptor. No modo como funciona o sistema, critérios como a compatibilidade, o tempo de espera e a condição de saúde do paciente somam pontos, e com estes pontos cria-se uma espécie de ranking que determina quem recebe o órgão que estiver disponível.
Para desenvolver uma ferramenta que seja capaz de prever quanto tempo deve durar essa espera, o trabalho coletou informações dos últimos 17 anos de pacientes na fila de espera para transplante de rim, disponíveis na Base de Dados da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo (SES). Ao todo, quase 50 mil registros de doadores falecidos foram incluídos no levantamento. Partindo destas informações, a ferramenta conseguiu estimar o tempo de espera do indivíduo para receber o transplante no estado com uma precisão superior a 70%. Os doadores vivos representam cerca de 20% do total dos transplantes de rim do país, mas não são incluídos na base da secretaria porque a escolha não obedece aos mesmos critérios.
Para prever aproximadamente em quanto tempo o novo rim chegará, o paciente precisa incluir alguns dados pessoais como idade, sexo, presença de diabetes, tipo sanguíneo, local de residência e antígenos de histocompatibilidade (HLA). Uma vez inseridos os dados, a ferramenta mostra na hora a previsão do tempo de espera. Segundo o nefrologista do HC-FMB, essa informação é importante para o médico, uma vez que pode orientar de forma mais precisa o tratamento, e para o próprio paciente, que muitas vezes precisa se deslocar para as sessões de diálise. Existem atualmente 144 mil pacientes em diálise no Brasil.
Além de prever o tempo de espera com precisão satisfatória, a ferramenta, batizada de Keros, confirmou algumas premissas empíricas, como a de que crianças e pessoas vacinadas contra hepatite B precisam aguardar menos tempo para receberem o transplante. Isso ocorre porque os órgãos infantis, que tem uma dimensão menor, só podem se adaptar ao organismo de outras crianças. Já indivíduos vacinados tornam-se aptos a também receber um rim de alguém que fosse portador dessa doença. O artigo detalhando a metodologia usada na elaboração do Keros foi publicado na revista médica PLOS One.
A próxima etapa do projeto é ampliar a análise para incorporar também dados coletados em todo o Brasil. Esta etapa terá apoio da Coordenação Geral do Sistema Nacional de Transplantes (CGSNT) do Ministério da Saúde, que gerencia o maior programa público de transplante de órgãos do mundo. Para Modelli, isso permitiria fazer a previsão do tempo de espera individualizada para cada estado, e a analisar também a equidade desse sistema.
“O modelo poderia nos dizer se existe alguma característica que está sendo favorecida na determinação do tempo de espera, como o sexo do paciente ou as variações entre etnias, por exemplo. De posse dessa informação, talvez pudéssemos compensar essas distorções aumentando a pontuação para esses determinados grupos”, sugere.
Risco de morte por covid-19 em transplantados
Em agosto, outro artigo aplicando a ciência de dados para a análise preditiva na saúde foi publicado pela equipe de Modelli, desta vez abordando o risco de morte de covid-19 em indivíduos que receberam rins por transplante. O levantamento reuniu dados de 35 centros de transplantes do Brasil, totalizando mais de 1300 casos diagnosticados com a doença. Vale destacar que pacientes transplantados estão incluídos no grupo de risco para a covid-19 e têm um risco de morte entre 20% a 25%, enquanto na população em geral essa probabilidade varia entre 1,5% e 2%.
Mais uma vez, o modelo preditivo desenvolvido no HC-FMB aplicou técnicas de machine learning nesse conjunto de dados, considerando uma série de preditores de mortalidade facilmente disponíveis, e dentro de um período de 28 dias com a doença.
No aplicativo que o grupo disponibilizou gratuitamente na Internet, o usuário pode inserir informações sobre idade, peso, tempo de manifestação dos sintomas, quais sintomas possui, se o indivíduo é hipertenso ou se é fumante, entre outros dados. Ao final do preenchimento, a ferramenta calcula os pontos e mostra a probabilidade de morte em cada caso. A precisão da ferramenta alcançou 76%, neste caso.
A ideia é que os resultados encontrados a partir dessas informações orientem decisões precoces do médico a respeito do tratamento. “Com essas informações é possível, até mesmo por meio de uma ligação telefônica, indicar quando o risco de óbito é alto e dessa forma antecipar uma hospitalização, por exemplo”, explica Modelli.
O objetivo agora é criar um laboratório de ciência de dados no HC e estabelecer uma parceria com a Unesp para agregar estudantes e profissionais de diferentes áreas que atuam na área de ciência de dados e inteligência artificial. “Temos aqui uma área voltada à estatística clássica, temos profissionais de Tecnologia da Informação, pesquisadores e muitos estudantes interessados no tema. Nossa ideia é ter um pólo para reunir esses interessados e disseminar esse conhecimento aplicado à área da saúde”, explica.
Imagem acima: paciente durante sessão de hemodiálise. Crédito: Picsfive/Istock.