Professor da Faculdade de Filosofia e Ciências da Unesp no câmpus de Marília, Sérgio Luiz Cruz Aguilar é, há mais de duas décadas, um atento observador das nossas Forças Armadas. Egresso dos quadros do exército, doutorou-se em história pela Unesp em Assis e fez pós-doutorado em segurança internacional no departamento de política e relações internacionais da Universidade de Oxford, no Reino Unido. Suas pesquisas de campo o levaram a visitar países como o Haiti, o Timor Leste, a Etiópia e o Sudão, onde investigou as missões de paz da ONU, a participação dos militares brasileiros nas missões da ONU enviadas ao Timor Leste e ao Haiti e as dinâmicas de segurança internacional no cenário Pós-Guerra Fria.
Nesta entrevista, ele comenta os desafios e mudanças que as Forças Armadas brasileiras enfrentaram nas últimas décadas, o debate da Política Nacional de Defesa e o papel cada vez maior que os militares têm desempenhado nos diversos níveis do governo federal.
De 2019 para cá, mais de 6 mil militares foram empregados na administração pública, e muitas pessoas deverão ir às manifestações de sete de setembro para apoiar a ideia de uma atuação das Forças Armadas como uma espécie de moderadoras dos conflitos entre os poderes da República. O senhor se surpreendeu com o tamanho da participação dos militares na vida pública nos últimos anos, e o apoio a elas?
Sérgio: Sim. A reação à corrupção de governos anteriores, especialmente aos governos do PT, mas também à má gestão, já era sentida no meio militar. A reação à corrupção ficou mais forte com a Operação Lava Jato. Já a reação à má gestão, pode-se dizer que era mais antiga. Havia uma crítica, por exemplo, à incapacidade de utilizar adequadamente os recursos de vários planos que foram criados anteriormente, bem como a não consecução de obras essenciais de infraestrutura, as quais, como hoje está muito claro, não foram concluídas por conta da corrupção.
Com isso, era esperado que os militares apoiassem algum candidato que se colocasse como contrário, ou que apresentasse uma proposta diferente, principalmente em relação à pauta ideológica da esquerda. Por exemplo, no âmbito da educação, dos costumes, do Direito penal, etc. No entanto, a ocupação de cargos em diversos escalões da administração pública como tem ocorrido, me surpreendeu sim. Tanto pela quantidade como pela diversidade de áreas nas quais militares e ex-militares passaram a atuar.
Em 2021, completam-se 25 anos da criação da Política Nacional de Defesa, uma iniciativa para atualizar e clarificar as atribuições das Forças Armadas brasileiras num novo momento da comunidade internacional, pós-guerra fria. As ideias propostas à época se mantiveram, ao longo dos diversos governos desde então?
Sérgio: É estranho verificar que apenas no governo Fernando Henrique Cardoso (FHC) surgiu a primeira Política de Defesa brasileira. Apesar de ter sido preparada ‘a toque de caixa’, ela apresentou as linhas gerais que orientam a visão brasileira de defesa nacional. Algumas mudanças foram feitas nas políticas publicadas depois mas, na minha opinião, a sua essência foi mantida.
No entanto, é interessante ressaltar que ocorreram mudanças na forma como a Política de Defesa brasileira foi sendo elaborada, cuja atribuição passou da Secretaria de Assuntos Estratégicos — onde sua formulação sofria a influência de diplomatas e outros elementos — para o Ministério da Defesa, que ficou sob forte controle dos militares.
Um dos problemas está na operacionalização da política, que se dá por meio da Estratégia Nacional de Defesa. Ela estabelece as diretrizes para o preparo das Forças Armadas, sua capacitação, equipamento, seu emprego etc. A primeira Estratégia Nacional de Defesa foi aprovada em 2008 e, na minha opinião, foi demasiado ambiciosa. Além da ambição acima da real capacidade, uma série de obstáculos impactaram a sua consecução, e a das demais Estratégias que se seguiram. Alguns problemas eram recorrentes, como a constante falta de recursos necessários para cumprir os objetivos previstos na Estratégia. Aí reside, a meu ver, o primeiro problema das Estratégias: o de partirem mais dos desejos das Forças Armadas do que serem um documento cujas prioridades foram designadas pelo Estado.
Como as prioridades seriam apontadas pelo Estado, o Estado deveria fornecer os recursos orçamentários para concretizar o que fosse combinado e descrito na Estratégia. Enfatizo: deveria ser uma decisão de Estado, não de governo, algo mais elaborado, com a participação dos diplomatas, acadêmicos, economistas, etc. Mas a visão quanto ao que as Forças Armadas devem ser permanece, muito mais, como uma concepção estabelecida pelos próprios militares. E a execução dessa visão tem falhado. Com isso, há uma constante adaptação do meio militar no sentido de ‘fazer o que é possível com os recursos que tem’.
Ao longo deste período, a operação das Forças Armadas de maior visibilidade, inclusive internacional, não envolveu um conflito armado, mas sim a condução de uma missão de paz no Haiti a pedido da ONU. Por que o Brasil participou desta missão, e por que não houve outros empreendimentos semelhantes depois?
Sérgio: Na realidade, há décadas o envolvimento das Forças Armadas se dá no âmbito das chamadas operações de paz, e não em operações de guerra.
Vários países usam as chamadas operações de paz (ou outros nomes como operações de gerenciamento de crises, operações de apoio a paz etc.) por conta de seus interesses particulares. O grande envolvimento dos europeus nos Bálcãs na década de 1990 teve relação com interesses naquela região. O envolvimento europeu hoje, no Norte da África e no Mediterrâneo, tem relação inclusive com o combate ao terrorismo.
No caso do Brasil, a participação em operações de paz foi claramente o emprego dos militares em prol da política externa brasileira. No governo FHC, enviamos tropas para países de língua portuguesa recém-saídos de conflitos armados, como Angola, Moçambique e Timor Leste. No governo Lula, a participação brasileira no Haiti teve estreita ligação com a reforma do Conselho de Segurança da ONU, na qual a diplomacia brasileira investiu seu capital.
No seio das Forças Armadas, há vários motivos que levam os militares a ter uma posição extremamente favorável em relação à participação nessas missões. Isso inclui benefícios para a carreira e financeiros. Mas também há questões de doutrina, de treinamento, emprego em situações reais, logística, aquisição de novos equipamentos e materiais… E, principalmente, tudo isso é possível investindo-se recursos que vêm de fora do orçamento regular do Ministério da Defesa (MD).
Mas acho que dois pontos são importantes. Primeiro, essa decisão é sempre política e, no Brasil, leva-se muito em consideração os custos. O reembolso da ONU não cobre todos os gastos. É o povo brasileiro que paga parte da participação em uma operação de paz. Segundo, essa escolha vai depender de quem está no governo na ocasião, e do contexto nacional e internacional do momento. No governo Lula, por conta do entendimento do papel que o Brasil deveria ter no sistema internacional, dos contextos interno e externo naquela ocasião, do que era necessário para ter protagonismo na arena internacional, entre várias outras coisas, decidiu-se ‘investir’ no Haiti.
No governo Dilma, a diplomacia foi relegada a segundo plano, embora ela tenha mantido a tropa no Haiti. No governo Temer, após o encerramento da operação no Haiti, decidiu-se por não enviar tropas para uma missão de paz na República Centro-Africana, apesar dos esforços dos militares a favor, especialmente do Exército.
Se entendermos que a decisão de não participar da operação na África se deu para permitir a intervenção federal no Rio, isso demonstra uma visão política de usar prioritariamente as Forças Armadas para o uso de Garantia de Lei e Ordem (GLO) ao invés de permitir que elas se aperfeiçoassem para a defesa, ou que sejam empregadas em prol da política externa.
Isso como consequência leva à perda de prestígio internacional, de motivação, conhecimento, experiência etc. No atual governo, ocorreu a retirada da última tropa que participava de uma operação de paz, com o retorno de uma unidade da Marinha que operava no Líbano.
Qual foi o legado, para o nosso Brasil da participação do Brasil na Minustah, a missão de paz da ONU no Haiti? Muitos dos militares que hoje ocupam ou ocuparam cargos proeminentes no Executivo participaram da Minustah em funções de liderança.
Sérgio: O legado foi extremamente positivo. A lista de benefícios é extensa e não caberia nessa entrevista, por isso destaco apenas alguns aspectos. Até a Minustah, todo o processo para envio de tropas era, vamos dizer assim, ad hoc. Havia órgãos nas Forças voltados para essa tarefa, mas careciam do pessoal necessário para lidar com a magnitude dos recursos que foram enviados para o Haiti. Então, a estrutura e os processos voltados para operações de paz foram desenvolvidos e aperfeiçoados.
Acho que o exemplo maior foi a criação de um Centro especifico para essas operações no Exército (mas ligado ao MD) e, posteriormente, na Marinha (voltado para operações de paz navais, por conta do envolvimento no Líbano). Melhorou o processo de ‘lições aprendidas’ utilizadas para a preparação dos contingentes. A doutrina foi aperfeiçoada. O entendimento dos processos das Nações Unidas voltados para operações de paz foi aperfeiçoado.
Devido às características da Minustah, os militares puderam aplicar lá as chamadas ‘operações de garantia da lei e da ordem’ e utilizar os ensinamentos lá colhidos em operações semelhantes no Brasil.
Quanto aos generais que desempenham papeis no Executivo atualmente, vou fazer algumas considerações que fogem um pouco das que normalmente têm sido apresentadas. O processo de seleção de militares para missões no exterior é muito bem conduzido. As Forças Armadas e o Brasil tradicionalmente prezam por manter uma boa imagem no exterior, e não falo apenas das operações de paz. Dessa forma, se um militar é indicado para uma operação de paz, significa que ele goza de um excelente conceito no âmbito da Força.
Os generais que foram designados para ser Force Commander na Minustah, bem como seus assessores (a nível de oficiais superiores) foram selecionados por conta dos critérios estabelecidos para a seleção e por certos atributos necessários, de acordo com o tipo da missão, o mandato da ONU a ser cumprido, etc. Não vejo ligação entre o fato de terem comandado as tropas da ONU, ou tropas brasileiras, no Haiti, e suas presenças no governo.
Vejo muito mais outra ligação, mas posso estar enganado. A maior parte dos generais no alto-escalão do governo atual foram contemporâneos do presidente na Academia Militar. Alguns estabeleceram ligações por conta de funções e cargos que ocuparam ao longo da carreira, por exemplo, trabalhando na Assessoria Parlamentar no Congresso, quando o presidente era deputado, ou em comandos no Rio de Janeiro, reduto eleitoral do presidente, e assim por diante. Já o modo como se deu a conjunção entre eles, e como trabalharam para que ocorresse a assunção do presidente ao poder, é algo que ainda tem que ser mais estudado.
Chama a atenção, também, ao longo deste período, a quantidade de ocasiões em que as Forças Armadas foram mobilizadas para atender solicitações internas de Garantia da Lei e da Ordem (GLO). Foram dezenas de vezes. Por que isso aconteceu?
Sérgio: Isso é um legado da Constituição de 1988. Eu vejo esse emprego como uma disfunção: as Forças Armadas deve existir para cumprir a função de defesa. A ordem interna, como a própria Constituição determina, deve ser garantida por outras instituições. A incompetência de governos estaduais em cumprir suas obrigações nesse campo há anos, principalmente do Rio de Janeiro, leva ao uso das Forças Armadas.
O que começou sendo algo episódico, como a Operação Rio na década de 1990, parece ter se tornado rotina. Esse tipo de emprego, que era apresentado como uma operação de apoio às policias estaduais, virou até uma ‘intervenção’ propriamente dita, como a ocorrida anos atrás no Rio de Janeiro. Essa ‘rotina’ levou até a criação de unidades ‘especializadas’ em GLO no Exército, num centro voltado para essas operações, etc.
Se há militares que vêm essas operações como uma oportunidade de dar ‘um senso de utilidade’ às forças armadas, como fonte de recursos extra-orçamentários, dentre várias outras motivações, acredito que boa parte dos militares veem essas operações da mesma forma que eu. Mas eles as executam por conta do velho lema de ‘missão dada é missão cumprida’. Houve uma tentativa de diminuir esse envolvimento com a criação da Força Nacional, no entanto, a meu ver, a maneira como ela foi estruturada e empregada causa também problemas e, na prática, não conseguiu diminuir o emprego das forças armadas nessas operações.
Muitos pesquisadores da área de segurança pública dizem que esse emprego das forças armadas é ilegítimo e até danoso. Esta atuação interna impactou de alguma forma as forcas armadas?
Sérgio: No caso das ações nas favelas, por exemplo, no início isso não era problema porque os militares faziam uma espécie de cerco, forneciam expertises diversas como comunicações, inteligência, logística, apoio aéreo etc. E as polícias é que realizavam as operações propriamente ditas. Isso se complicou quando passou-se a usar as forças armadas literalmente nas operações, inclusive na ocupação de morros por longos períodos. Daí veio a necessidade de investir em doutrina, treinamento, equipamento, etc. para diminuir essas deficiências.
Isso levou ao dispêndio de esforços e recursos para cumprir uma função que não deveria ser atribuída aos militares. A quantidade de operações enquadradas como de GLO nos diversos governos desde FHC é impressionante. Até porque vai além daquelas que são mais visíveis, tais como as que foram realizadas no Rio de Janeiro; envolvem também a segurança de eleições, de eventos, as greves de policiais e de caminhoneiros, a segurança de instalações, etc.
E sempre existe o risco de cooptação de militares pelos marginais, cujo exemplo marcante contemporâneo é o caso do Mexico, onde o envolvimento de militares no combate às drogas levou à chamada ‘mexicanização’ das Forças Armadas.
Muitos críticos dizem que o elevado número de militares na administração federal nos últimos anos – eles estiveram ligados a pelo menos uma dezena de postos de nível ministerial, sem contar os cargos de segundo e terceiro escalão – são indicativos de que estaria havendo uma militarização da máquina pública.
Sérgio: Eu acho sim que há um número elevado de militares na administração Federal. Sempre pensei que ‘lugar de militar é no quartel’. Exemplos interessantes sobre isso podem ser buscados nos Estados Unidos. A postura do Chefe do Estado-Maior Conjunto dos Estados Unidos, general Mark Milley, por ocasião da invasão do Capitólio, demonstra a importância da devida distância das Forças Armadas da política. Também nos EUA, um militar só pode assumir o cargo de Secretário de Defesa após alguns anos na reserva, impedindo ou atenuando sua proximidade com os escalões de comando das Forças Armadas.
O envolvimento em política é danoso para as próprias Forças Armadas. Eu acho que o envolvimento no governo atual, mesmo que não seja institucional, e mesmo que seja em sua grande maioria por militares da reserva, causa mais prejuízos que benefícios para os militares.
É interessante ressaltar que governos colocam nas suas administrações pessoas que sejam de sua confiança. Isso é normal, em qualquer país do mundo. Nada contra utilizar expertise onde ela for necessária. Mas envolver militares em áreas distantes do seu conhecimento e da sua experiência pode levar a barganha de cargos para dentro das Forças Armadas, mesmo que indiretamente, o que pode ser danoso à disciplina e à ética.
Sinceramente, não sei se podemos dizer que, com exceção dos altos escalões, esteja ocorrendo uma militarização da máquina pública. A quantidade é expressiva, mas inclui policiais militares e também militares que se encontram em órgãos como o Ministério da Defesa, o Gabinete de Segurança Institucional, a ABIN, etc. que já possuíam vários militares em seus quadros.
Talvez ocorra mais uma inserção de militares/ex-militares na máquina pública de onde eles estavam afastados desde a década de 1980. O tamanho desse envolvimento, as suas razões e consequências, incluindo se isso é parte de uma militarização — ou se, enquanto o governo usa os militares para lhe darem sustentação, a maior parte dos militares aproveita do momento para aumentar salários, ou ambos — serão, com certeza, bem estudados.
Como o processo ainda está em andamento, eu vejo a maior parte do que se tem produzido até o momento mais como opinião do que como produção acadêmica, com o seu devido rigorismo. Se bem que alguns trabalhos podem ser inseridos em campos onde a História atua, tais como a ‘História Imediata’ e até a ‘História do Tempo Presente’. Mas, num futuro bem próximo, os processos que operam nesses últimos anos serão melhor compreendidos em diversas áreas do conhecimento.
Imagem acima: desfile das forças armadas em sete de setembro de 2019. Crédito: Tomaz Silva/Agência Brasil.