Distante das ofuscantes luzes das cidades, após uma década em construção, a maior câmera digital já concebida pelo ser humano recebe os últimos ajustes no topo de uma montanha nos Andes chilenos. A câmera é o elemento central do Observatório Vera Rubin, um ambicioso projeto que vai mapear o céu do Hemisfério Sul a cada três noites e coletar uma quantidade impressionante de dados que podem, eventualmente, abrir caminho para revolucionar a astronomia e a física de partículas.
O nome do telescópio homenageia a astrofísica norte-americana Vera Rubin (1928 – 2016). Na década de 1970, junto com seu colega Kent Ford, ela realizou uma grande quantidade de observações de rotação de galáxias que parecem contradizer o que sabemos sobre a mecânica celeste. A partir dessas observações, outros pesquisadores postularam a existência de algum tipo de matéria que se mantém invisível aos nossos meios de observação, que foi chamada de matéria escura. A existência ou não e a composição dessa matéria escura tornou-se um dos grandes problemas em aberto, tanto na cosmologia como na física de partículas. A fim de impulsionar a pesquisa na área, teve início na década de 1990 o planejamento de um novo tipo de observatório, concebido para a busca pela matéria escura.
Em 1998, com a descoberta da expansão do universo e da energia escura, a empreitada ganhou mais fôlego e novas metas: a energia escura, associada à expansão acelerada do universo, também seria alvo de estudos. Em alguns anos, a ideia do programa de pesquisas ganhou um nome: Large Synoptic Survey Telescope (Grande Telescópio de Levantamento Sinóptico, LSST – na sigla em inglês) e, em 2015, sua construção teve início. Hoje, o projeto mantém a sigla, mas foi reapelidado de Legacy Survey of Space and Time (Pesquisa de Legado sobre Tempo e Espaço).
Uma vez que esteja em pleno funcionamento, o Observatório Vera Rubin, onde será realizado o programa LSST, se juntará ao hall de grandes empreendimentos que impulsionam o desenvolvimento científico e tecnológico à fronteira do pensamento. Ele se unirá a laboratórios e projetos como o CERN, onde está o maior colisor de partículas do mundo; o Dark Energy Survey, que durante seis anos coletou informações de mais de 300 milhões de galáxias para o estudo de energia escura; e o telescópio espacial James Webb, atualmente em operação, e que têm gerado imagens de alta resolução e dados utilizados no estudo da origem das galáxias.
A construção dessas grandes estruturas, da sua concepção até a entrada em funcionamento, leva tempo e envolve colaborações e financiamentos em escala internacional. Com o Vera Rubin não é diferente, e 28 países, entre eles o Brasil, estão envolvidos na construção. O atual coordenador do Grupo de Participação Brasileiro do Vera Rubin é o físico Rogério Rosenfeld, pesquisador do Instituto de Física Teórica da Unesp, câmpus de São Paulo. “O LSST vai nos dar informações sobre o que pode ser 95% do universo, algo que ainda hoje é desconhecido. Mas, além disso, ele também nos permitirá conhecer com mais detalhes o nosso quintal, o Sistema Solar, com informações de novos asteroides e outros objetos”, afirma Rosenfeld.
Estima-se que o Vera Rubin irá gerar, aproximadamente, 100 mapeamentos completos do céu do Hemisfério Sul a cada ano. Esses números superam projetos anteriores que chegavam a levar uma década para concluir um único mapeamento. Em pouco tempo, a sequência rápida de registros resultará na produção do primeiro “filme” do universo, abrindo a possibilidade para que pesquisadores, ao redor do mundo, acompanhem “ao vivo” as mudanças no céu noturno.
Rosenfeld diz que o Vera Rubin irá fomentar a pesquisa em quatro áreas centrais dos estudos astronômicos: um maior entendimento da natureza da matéria escura e da energia escura, a produção de um inventário detalhado dos objetos do Sistema Solar, um mapeamento da Via Láctea e a exploração dos objetos conhecidos como “transientes”, por mudarem de posição ou brilho ao longo do tempo.
Com previsão de início das operações para o primeiro semestre de 2025, a equipe internacional envolvida na construção e instalação do observatório está correndo contra o tempo. Entre as tarefas previstas está a utilização da Comissioning Camera (ComCam), uma câmera de testes que irá indicar se os componentes do telescópio estão funcionando corretamente, antes da instalação da câmera definitiva: a LSSTCam.
O universo em uma foto
Os cientistas, gestores, engenheiros e técnicos colaboram em diferentes frentes, incluindo a construção da infraestrutura necessária, o desenvolvimento e a montagem dos equipamentos, a criação de softwares e algoritmos que serão utilizados para analisar os dados, e a formação e a coordenação de equipes científicas que terão como foco o estudo de temas específicos. Isso só para citar algumas das muitas áreas que permeiam a estrutura desse mega-empreendimento.
Desde 2023, vários dos equipamentos do Observatório Vera Rubin estão passando pela chamada Campanha de Testes. Nessa etapa, réplicas de cada equipamento são colocadas à prova para observar de que maneira o telescópio se comporta, antes da instalação das peças definitivas. Isso permite que a equipe antecipe possíveis falhas e conduza os ajustes necessários sem colocar em risco as peças finais.
“Observatórios desse porte são complexos por natureza”, afirma Bruno Quint, astrônomo brasileiro que integra a equipe do Vera Rubin e há três anos colabora com os testes. “Eles dependem de muitos componentes que devem operar juntos, como se fosse uma orquestra. Os testes são feitos admitindo-se que um componente pode funcionar bem quando operado de forma individual, mas se mostrar menos eficiente quando integrado com as demais peças”, explica. Cada vez que uma parte do equipamento não funciona da maneira como deveria, a performance do observatório é impactada. Para evitar o prejuízo, todas as partes passam por uma série de testes. Isso inclui as peças físicas, como os espelhos e a câmera, mas também os softwares que serão utilizados para captar e analisar os dados obtidos.
A primeira etapa de testes focou os espelhos que vão equipar o telescópio propriamente dito, que se chama Simonyi Survey Telescope (Telescópio de Varredura Simonyi, em português). Agora, a equipe está a todo vapor com os preparativos finais para colocar os “olhos” do observatório à prova. Estes “olhos” são a câmera LSSTCam, um dos grandes feitos de engenharia do observatório: com 3.200 megapixels, o aparelho tem uma resolução quase quatro vezes maior do que a atual câmera mais potente, a japonesa Hyper Suprime-Cam, de 870 megapixels. Dentro da estratégia de antecipar problemas, os engenheiros e cientistas do projeto irão conduzir testes com uma versão de 144 megapixels da câmera final, denominada ComCam.
O início dos testes que antecedem a instalação da câmera definitiva está previsto para o dia 17 de setembro. Durante seis semanas, a ComCam será responsável por produzir os primeiros dados astronômicos do telescópio para verificar se as instalações e os programas estão funcionando conforme planejado. “As operações com a ComCam vão testar todo o mecanismo do observatório, como a captura dos dados, o comportamento do telescópio e a transmissão das informações”, diz Rosenfeld.
Durante a etapa de testes, serão instalados os três espelhos definitivos do telescópio, o que permitirá à câmera capturar seu primeiro fóton, nome dado às partículas – sua primeira partícula de luz vinda do espaço. “Os astrônomos costumam falar que a câmera captou a “primeira luz” quando realmente está tudo pronto. Como vamos iniciar a fase de testes da câmera, a equipe começou a chamar essa etapa de ‘primeiro fóton’, porque o telescópio irá começar a coletar informações mas ainda sem a câmera final”, conta Rosenfeld.
Segundo Quint, os testes no céu irão se concentrar em quatro pontos: o sistema de ótica ativa, uma tecnologia capaz de promover ajustes nos espelhos para corrigir as distorções causadas por fatores externos, como mudanças de temperatura; os testes de verificação de requisitos dos hardwares; os testes de verificação de requisitos científicos, para analisar a qualidade dos dados astronômicos e imagens da ComCam; e, por fim, os testes para verificar o fluxo e o tratamento dos dados.
Capturando a luz do espaço
A fim de produzir um mapeamento completo do céu, um dos objetivos do Vera Rubin será a identificação de objetos astronômicos situados a distâncias muito grandes da Terra. A problemática dessa empreitada é que a maior parte desses corpos celestes está tão distante que a luz emitida por eles viaja pelo espaço há milhões ou até bilhões de anos. Como consequência, ela chega ao nosso planeta extremamente fraca, dificultando sua captação. Para lidar com esse desafio, uma equipe de engenheiros e pesquisadores do Richard F. Caris Mirror Lab, no Arizona, Estados Unidos, desenvolveu um intrincado sistema de espelhos, que é responsável por direcionar a luz vinda do espaço para dentro da câmera do telescópio.
Esse sistema é composto por três espelhos, de três tamanhos distintos. Em um primeiro momento, a luz vinda do cosmos atinge o espelho primário, que é a maior das peças, medindo 8,4 metros. O feixe é rebatido para cima, onde atinge o segundo espelho, de 3,4 metros para, então, ser lançado novamente para baixo, dessa vez batendo no terceiro espelho, de cinco metros. Por fim, a luz é direcionada para dentro da câmera, onde passará por três lentes. Em conjunto com os espelhos, o trabalho das lentes é concentrar a luz o mais nitidamente possível no plano focal — uma grade de sensores sensíveis à luz na parte de trás da câmera onde a luz do céu será detectada. O tamanho do primeiro espelho permite que o telescópio consiga coletar uma grande quantidade de luz, auxiliando no processo de identificar objetos cujo brilho é muito fraco.
Assim como a câmera, os espelhos também passaram por uma rodada de testes. “A equipe do Vera Rubin é supercuidadosa. Antes da instalação dos espelhos definitivos foram feitas cópias que possuíam a mesma forma e o mesmo peso, mas que não eram espelhos”, explica Rosenfeld. Essa etapa serviu para observar de que forma o telescópio iria reagir uma vez que as peças finais fossem instaladas. O objetivo era analisar se outras funções do telescópio, como sua capacidade de movimentação, seriam afetadas pelo peso e pelo tamanho do sistema óptico. Atualmente, o telescópio já teve instalado o segundo espelho, enquanto aguarda a instalação dos espelhos primário e terciário. Isso deverá ocorrer pouco tempo depois do início dos testes da ComCam.
O Brasil no Vera Rubin
O Brasil integra a lista de países que colaboram com a construção do Observatório Vera Rubin desde 2015. A entrada aconteceu a partir da demanda e organização de pesquisadores que já haviam participado de um outro grande projeto, o Dark Energy Survey (DES), cujo objetivo foi o estudo da energia escura. “Nossa participação no DES foi super bem-sucedida então, naturalmente, tivemos vontade de integrar o LSST”, conta Luiz Nicolaci da Costa, diretor do Laboratório Interinstitucional de e-Astronomia (LIneA).
A entrada de países em grandes projetos científicos costuma ocorrer de duas formas: na primeira, é preciso pagar uma taxa anual, modelo seguido pelo CERN, que cobra uma contribuição proporcional ao Produto Interno Bruto dos países associados. O Brasil passou a integrar essa lista neste ano a um custo de aproximadamente US$ 12 milhões ao ano; outra forma é por meio das chamadas “contribuições in-kind”, que ocorrem quando países oferecem prestações de serviços em troca da entrada de pesquisadores na colaboração científica.
Essa última possibilidade serviu como porta de entrada do país no Observatório Vera Rubin. Hoje, o Brasil conta com 120 pesquisadores envolvidos no LSST e que poderão colaborar e utilizar os dados gerados pelo observatório. Na Unesp, dois pesquisadores irão integrar duas das colaborações científicas estabelecidas: Rosenfeld, participará do grupo de estudo de Energia Escura e Valério Carruba, professor da Faculdade de Engenharia e Ciências, campus Guaratinguetá, participa do grupo que irá analisar as informações sobre os asteroides do Sistema Solar.
A entrada do Brasil no projeto se deu em dois momentos, primeiro em 2015, quando o Brasil, por meio do LIneA, do Laboratório Nacional de Astrofísica (LNA), da Rede Nacional de Ensino e Pesquisa (RNP), e da Fapesp, assinou um termo no qual se comprometeu a desenvolver a infraestrutura necessária para a transmissão dos dados, que irão viajar do Chile para os Estados Unidos via Brasil.
Em 2020 foi organizada a segunda proposta de colaboração, formalizada em junho deste ano, que prevê a criação de um Centro Computacional Único (Independent Data Access Center – IDAC, em inglês). Esse centro, que será montado no Laboratório Nacional de Computação Científica, em Petrópolis, receberá catálogos dos objetos celestes identificados nas imagens geradas pelo Vera Rubin e fará um tratamento das informações, que ficarão disponíveis para os pesquisadores. Serão construídos 10 IDACs no mundo inteiro, sendo o brasileiro o único da América do Sul.
Para Nicolaci e Rosenfeld, a participação do Brasil ainda não está completamente garantida e anos de negociações podem ser perdidos por falta de investimento do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação que, até o momento, não se posicionou para apoiar a empreitada. “Apesar da compra de cerca de 70% do material necessário para a infraestrutura do IDAC, ainda faltam os 30% restantes, que são recursos necessários para a manutenção da infraestrutura e da equipe do LIneA, que será responsável pelo gerenciamento do IDAC”, diz Rosenfeld.
Segundo o físico, sem o apoio direto do MCTI, os recursos para a manutenção da participação brasileira ao longo dos 10 anos do projeto não estão garantidos. Nicolaci, que coordenou e foi signatário dos dois acordos, compartilha dessa perspectiva e vê com preocupação a falta de envolvimento do ministério no que ele considera “o projeto mais importante da década”.
“Essa é uma oportunidade, principalmente para jovens pesquisadores, de participar da vanguarda do conhecimento”, diz o astrônomo. “Das 120 vagas que temos, 80% são para jovens pesquisadores. Então, o estudante que hoje está fazendo uma graduação, por exemplo, em dez anos será o pesquisador principal. É uma oportunidade de inserção internacional e de competitividade científica sem precedentes. Nos meus 45 anos de carreira nunca vi nada igual. Eu gostaria de ter 30 anos de idade novamente”, diz.
Imagem acima: Observatório Vera Rubin no Cerro Pachón, no Chile. Crédito: Olivier Bonin/SLAC National Accelerator Laboratory