O Brasil tem pouco mais de seis meses para oficializar sua adesão como membro-associado do Centro Europeu de Pesquisas Nucleares (Cern), casa do maior acelerador de partículas do mundo, o LHC. A comunidade científica nacional tem demonstrado interesse nesse processo desde 2010, quando o Cern passou a aceitar a associação de países não europeus devido à crise econômica no continente. As negociações sobre a acessão do Brasil ao Cern tiveram início com uma visita, em 2012, do comitê do centro europeu ao nosso país, e ganharam força em 2019, com a primeira visita do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) à instituição.
O processo tem percorrido caminhos conturbados. A passagem de nove ministros pelo MCTI entre 2012 e 2022 dificultou a manutenção das negociações, gerando episódios nos quais o ministério chegou a ignorar as tentativas de comunicação do Cern, além de falhas nos pagamentos de taxas para manutenção e operação dos experimentos. Ademais, a escassez de recursos gerada pela pandemia de Covid-19 pode ter sido mais um agravante que resultou em sérios atrasos para os trâmites de adesão. A resposta do Cern foi estipular março de 2024 como prazo final para obter uma resposta definitiva. Segundo fontes do MCTI, a adesão irá acontecer dentro desse prazo, e os recursos para custear o processo já estão inclusive definidos. Nesse sentido, desde o início de 2023, o assunto ganhou renovado interesse por parte das autoridades brasileiras. Uma demonstração dessa mudança de atitude foi a visita da ministra Luciana Santos às instalações do centro europeu em junho deste ano. Na ocasião, ela reafirmou o compromisso do governo brasileiro com o processo de acessão.
Considerado o maior laboratório de física de partículas do mundo, o Cern é reputado internacionalmente por seus experimentos e pelo desenvolvimento de novas tecnologias. Até hoje, seis físicos que realizaram experimentos ou que trabalharam na instituição foram laureados com o Nobel. O nome mais recente é Peter Higgs, premiado em 2013 pela previsão teórica do Bóson de Higgs, partícula elementar considerada chave na explicação da origem da massa de outras partículas subatômicas. A “partícula de Deus”, como ficou popularmente conhecida, foi descoberta em 2012, em experimentos realizados no LHC. Além do campo de física de partículas e pesquisas em energia nuclear, o Cern também deu origem a algo que está no cotidiano de praticamente todas as pessoas do mundo: a world wide web, ou www.
Com tamanha relevância no desenvolvimento de ciência e tecnologia, não é de espantar que o centro atraia pesquisadores e instituições de todas as partes do mundo. Atualmente, o Cern reúne um corpo de mais de 12 mil pesquisadores, de instituições de 70 países. No caso do Brasil, as relações tiveram início em 1990, com a assinatura do Acordo de Cooperação Internacional. Atualmente o país conta com 112 pesquisadores colaborando nos quatro experimentos principais, que compõem o LHC: Alice, Atlas, CMS e LHCb. Além disso, o Brasil também tem sido responsável pelo desenvolvimento de novos componentes, como é o caso de hardwares e códigos criados pela equipe do Núcleo de Computação Científica da Unesp, campus Barra Funda, que serão implementados na atualização do LHC, prevista para 2027.
Direito a tomar decisões
Apesar de a cooperação entre o Brasil e o Cern estar bem estabelecida há décadas, uma mudança de status para membro-associado permitiria um envolvimento mais ativo da nação nas tomadas de decisão dentro da instituição. Marcia Barbosa, Secretária de Políticas e Programas Estratégicos do MCTI, explica os ganhos de uma eventual adesão com uma comparação: “por enquanto é como se estivéssemos alugando um apartamento, mas, para tomarmos decisões, é preciso comprá-lo”. A secretária diz que é um objetivo do governo fazer com que o Brasil passe a participar de maneira ativa das macrodecisões envolvendo a instituição e, ainda, que assuma um papel de liderança em novos experimentos.
Atualmente o Brasil conta com a pesquisadora Carla Göbel, do Departamento de Física da PUC-Rio, como a primeira e, até o momento, única liderança brasileira em experimentos do Cern. A física foi escolhida para atuar como Coordenadora Adjunta de Física do LHCb, um dos quatro experimentos do LHC, que tem como foco entender algumas questões fundamentais sobre a história do universo, tais como as razões para que exista mais matéria do que antimatéria, e os possíveis efeitos da chamada “nova física”.
Ao lado da coordenadora, Yasmine Amhis, Göbel tem como responsabilidade garantir a qualidade das publicações de física que serão submetidas aos jornais científicos. Segundo a pesquisadora, há anos a comunidade científica brasileira tem estado presente na instituição, consolidando sua participação em todos os quatro experimentos. “Agora, com a entrada do Brasil enquanto país-membro, surgirão muitas outras oportunidades, será possível que brasileiros e brasileiras se candidatem para cargos e vagas de estágio no Cern, além da possibilidade de termos representações brasileiras nos conselhos do centro”, comenta Göbel.
A “compra do apartamento”, entretanto, não é barata. Para manter a carteirinha de membro-associado, cada país deve arcar com um investimento proporcional ao seu PIB. No caso do Brasil esse montante deve ficar ao redor de US$12 milhões por ano. Atualmente o Brasil paga apenas os custos dos experimentos dos quais participa. Isto equivale a aproximadamente US$ 10 mil anuais por pesquisador doutor que assina os artigos da colaboração. Este é o “aluguel”, destinado a manutenção e operação dos experimentos.
Ao contrário do que se poderia imaginar à primeira vista, o valor da anuidade não sairia do orçamento do MCTI, e sim do Ministério do Planejamento e Orçamento, de forma a preservar o financiamento da C&T no país, diz Barbosa. Esta condição foi reforçada pela ministra do MCTI, Luciana Santos, em visita ao Cern, que ocorreu no dia 9 de junho deste ano. “Esta parceria será de grande importância para a comunidade científica brasileira, mas, principalmente, para a indústria nacional de base inovadora”, afirmou.
A indústria brasileira na fronteira do conhecimento
Além da cooperar com as tomadas de decisão do centro, outro benefício reservado para os países-membros é a possibilidade de participar de licitações para o desenvolvimento de novas tecnologias que serão utilizadas nos experimentos. Assim, o Brasil pode assumir também o papel de prestador de serviços para o Cern o que, por um lado, impulsionaria a indústria nacional e, por outro, poderia servir como fonte de retorno do investimento pago na anuidade. Esse caminho, entretanto, não é simples. Uma vez aberta a licitação, o Brasil competiria com todos os outros membros-associados, que incluem países como Alemanha, França, Inglaterra e Itália. Para Sérgio Novaes, professor do Instituto de Física Teórica da Unesp, campus Barra Funda, líder do São Paulo Research and Analysis Center (SPRACE) e da colaboração brasileira no experimento CMS , não bastará que o país eleve seu status ao tornar-se membro-associado. Será necessário que o governo atue ativamente para implementar planos de incentivo e desenvolvimento da indústria nacional.
Novaes participou da comissão inicial responsável pelo processo de adesão, o qual teve início em 2010. Desde então, tem acompanhado os trâmites de maneira próxima. “Vai ser necessário criar planos de ligação entre a indústria nacional e a estrutura do Cern, caso contrário, não vai ser possível aproveitar as possibilidades abertas. Isso exigirá uma atitude proativa do governo, não é algo que caberá aos cientistas. Eles não têm o conhecimento nem as condições para desenvolver um planejamento desse tipo. A missão do cientista é fazer ciência, não ir atrás de licitações para a indústria nacional, por mais importante que seja essa tarefa”, diz.
Apesar das dificuldades, Novaes defende a importância de que o Brasil conclua o processo para se tornar membro-associado. Segundo o pesquisador, a entrada do país como integrante ativo da organização abre caminhos para a participação em mercados internacionais, fortalecendo sua atuação como polo produtor de tecnologias e não simplesmente exportador de matéria-prima. Quanto aos benefícios científicos, explica que os pesquisadores poderão identificar áreas nas quais gostariam de desenvolver instrumentação científica e ir atrás dessa possibilidade com o apoio do Cern e dos demais países-membros que compõem a instituição. Assim, o Brasil se associaria a uma rede de cooperação e desenvolvimento científico-industrial internacional.
Na mesma linha, Barbosa sustenta que essa pode ser uma via para posicionar a indústria brasileira na fronteira do conhecimento. Ela não duvida da capacidade de que o país venha a se mostrar competitivo no cenário industrial internacional, com boas perspectivas de sucesso. Aponta como exemplo a fonte de luz síncrotron Sírius, construída para estudar a composição da matéria, que é uma obra completamente brasileira. “O Sirius é o teste preliminar que mostra que, quando nossa indústria nacional é desafiada e dispõe de condições e apoio financeiro, ela tem capacidade de ser protagonista. Isso é a industrialização disruptiva que o Brasil precisa fazer, e ser membro-associado do Cern vai nos ajudar a alcançar isso”, defende.
Outros benefícios colaterais envolvem buscar reverter a fuga de cérebros que tem afetado o país. Com o desenvolvimento da indústria, Barbosa defende que será necessário contratar novos profissionais. Por outro lado, novas áreas de atuação profissional irão surgir, o que permitirá atrair pessoas que, hoje, só conseguem encontrar ocupações condizentes com sua formação técnica no exterior.
Trata-se de um objetivo ambicioso. A secretária sabe disso, e ressalta que não será um percurso fácil, nem tampouco realizável em apenas um governo. Será necessário que esta visão “seja mantida a longo prazo, e também incentivada nos governos futuros”, diz .
Antes de tudo, o processo da adesão do Brasil ainda precisa ser concluído na Câmara dos Deputados e, posteriormente, no Senado. A última atualização ocorreu no dia 14 de junho, com o parecer favorável na comissão de Relações Exteriores. Antes de seguir para votação no plenário, ainda é preciso passar por mais duas comissões. O tempo é cada vez mais curto. Mesmo assim, Novaes e Barbosa são otimistas. Para o físico essa provavelmente será a última oportunidade do Brasil marcar seu espaço no Cern. Barbosa diz que não há hipótese de que o país não se torne membro do centro europeu. Ela cita um encontro com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, no qual ele comentou que o Brasil é grande demais para pensar pequeno. “Concordo em gênero, número e grau”, diz. “Ao virar dona desse apartamento, eu quero dizer quais reformas vão ser feitas. Mas, mais do que isso, eu quero trazer a indústria e a ciência nacional para participar dessa construção”, diz.
Imagem acima: A Ministra Luciana Santos visitou o Cern em junho deste ano para articular a adesão do Brasil ao centro. Crédito: Raul Vasconcelos (ASCOM/MCTI)