Horas de deslocamento até o trabalho, responsabilidades com a casa, cuidados com as crianças e os idosos da família, preocupações no emprego, na faculdade, no curso. No fim do mês, o medo das contas não fecharem, a sensação de não estar fazendo o suficiente e, para piorar, ninguém para conversar sobre tantas angústias. É assim, imersas em tantos receios e preocupações, que vivem muitas mulheres das periferias de São Paulo, com fortes impactos na saúde mental.
A Agência Mural foi ouvir delas quais os impactos de enfrentar tantos desafios sozinhas e sem políticas políticas que garantam acesso a direitos básicos, como moradia, renda, alimentação, educação e saúde. A sensação de sobrecarga e solidão da mulher periférica é crescente e se intensifica dia a dia, em especial entre as negras e as mais pobres.
Só e esgotada. É assim que se sente a produtora cultural e estudante de jornalismo Thainara Sabrine, 22, que nasceu e cresceu no Capão Redondo, zona sul da capital paulista. Quando conseguiu uma bolsa de estudos de 100% para estudar na PUC-SP, por meio do Prouni (Programa Universidade para Todos), ela deixou sua quebrada para morar no Morro da Paz, favela localizada na zona norte da, mais próxima da faculdade.
Em um contexto de urgência, com pouca grana, tempo escasso e longe da sua rede de apoio, ela teve que lidar também com o sentimento de estar só para enfrentar tantos desafios, o que afetou sua saúde emocional.
Para evitar transtornos logísticos ou chegar muito atrasada na faculdade, o que leva muitas pessoas a desistirem, acabei me mudando. Eu me mudei para conseguir estudar, o que eu acho muito triste, mas ao mesmo tempo uma grande conquista
Thainara Sabrine, 22
Hoje, a dificuldade financeira é o problema que mais pesa na balança e que mais afeta seu bem estar. A jovem vive apenas com o salário do estágio e com trabalhos esporádicos como freelancer.
“Preciso trabalhar para pagar o aluguel. Se eu não trabalhar, vou ter que sair e se sair não tenho como estudar. As coisas vão se atropelando. O valor [que recebo] no meu estágio não é o suficiente, então eu preciso procurar outros meios [para me sustentar]. Com isso, eu vou ficando mais cansada psicologicamente”, desabafa. “Morar sozinha não foi uma coisa que eu planejei. Preciso me desdobrar para trabalhar, estudar e ter o meu próprio dinheiro.”
O sentimento mais presente na rotina, ela admite, é a solidão.
“Fiquei muito mal por ter saído de casa e muitas vezes não sei para onde correr. É uma sensação de solidão”, desabafa. “Pensar na minha estabilidade financeira e em como me sustentar traz uma sensação de muita insegurança e medo do que pode acontecer se eu ficar sem emprego. Sempre vem um [pensamento] que diz que eu não posso parar para descansar”.
Quem cuida de quem cuida?
Moradora de Jandira, cidade localizada na região metropolitana de São Paulo, Pietra Stella, 27, é empreendedora e designer gráfica. É também mãe solo de três crianças: Ayla, 2, Ravi, 3, e Gael, 5, duas delas diagnosticadas com Transtorno do Espectro Autista (TEA).
Ela foi vítima de um relacionamento abusivo com o pai dos três filhos e, decidida a não passar mais por situações de violência, se divorciou. O ex-marido não manteve uma rotina de cuidados com as crianças e Pietra foi obrigada a assumir a maternidade solo, além de dar conta da casa e do trabalho em um call center.
“Eu já não tinha saúde mental no meu casamento, mas quando iniciei a minha vida sozinha piorou”, diz. “Depois dos laudos [de autismo dos filhos] complicou mais. Eu já estava sozinha e, como eu tinha que cuidar deles, decidi largar o serviço. A partir do momento que você tem filho, você tem que ser forte para ele. Então você esquece que tem que cuidar da sua saúde mental também”.
Todas as demandas com filhos, tarefas domésticas e vida pessoal a levaram a um estado que define como exaustão psicológica e física.
“Comecei a cuidar da minha saúde mental depois que tive minha filha. Vim de uma família não estruturada e informada e quando a gente falava em ter mais saúde mental ninguém nem sabia o que era isso. Se você fosse desabafasse com alguém, estava se fazendo de vítima. Se você falasse que queria um psicólogo, é porque você estava doido ou precisando de Deus, mas às vezes, a mente grita por socorro”.
Segundo a pesquisa “Esgotadas”, da organização Think Olga, 45% das mulheres brasileiras possuem diagnóstico de ansiedade, depressão ou outros tipos de transtornos. Ao todo, 86% das entrevistadas consideram ter sobrecarga de responsabilidades, em especial as mães-solos e as cuidadoras, para quem a situação financeira é um dos principais agravantes da saúde mental. O estudo ouviu 1.078 mulheres entre 18 e 65 anos, de todos os estados do país, em maio de 2023.
Direito à saúde mental
O sentimento de solidão e a fragilidade da saúde mental das mulheres periféricas são pontos interligados e agravados pelo abandono e por preocupações financeiras. É o que defende a psicóloga Karine Lima, especializada em Psicologia e Relações Raciais no Instituto AMMA Psique e Negritude.
“Muitas vezes, as mulheres são colocadas no lugar de ‘não escolha’, em um ambiente violento, sem afeto, sozinhas. Elas são empurradas a terem responsabilidades muito grandes desde muito cedo. Então, muitas vezes, chegam aos 30 anos lidando com o excesso de responsabilidade que é trabalhar fora e conciliar outras demandas da vida”, diz a especialista do Grajaú, zona sul de São Paulo.
A distância do trabalho também impacta na exaustão mental. “Mulheres que moram em grandes cidades, trabalham no centro e precisam voltar para os bairros periféricos, [gastam] só aí 2 ou 3 horas”, diz.
“Muitas vezes, elas se deparam com discursos na internet de positividade tóxica e de ‘mulher guerreira’. As jovens periféricas chegam aos 30 anos com sentimento de comparações e culpa por não darem conta da rotina”.
Karine Lima, psicologia especializada em Psicologia e Relações Raciais no Instituto AMMA Psique e Negritude
Porém, para além do discurso divulgado nas redes sociais, nem sempre caminhar no parque, ter uma alimentação saudável ou até mesmo acompanhamento psicológico ajuda a aliviar a exaustão mental. Isso porque, segundo a psicóloga, a não garantia de direitos básicos agrava e fragiliza a saúde mental.
“As mulheres são incentivadas a dar conta de tudo sozinhas. A gente aprende que pedir ajuda é errado. [A situação é crítica] principalmente para as [mulheres] pretas”, diz a especialista. “Ser forte e ser guerreira muitas vezes [significa] passar pelo sofrimento sozinha. Então acho que a gente pode criar uma rede de apoio já que a gente não teve isso dentro do ambiente familiar.”
Karine, enquanto especialista em saúde, reforça a necessidade de ampliar políticas públicas que promovam acesso a tratamentos psicológicos de qualidade, garantindo que as ações cheguem às mulheres das periferias.
“A gente sabe que a falta de direitos básicos adoece, a falta de dinheiro adoece”, pontua. “Quando a pessoa está adoecida, ela não deveria ter trabalho para procurar [atendimento psicológico]. Dentro das políticas públicas, faltam investimento em informação e nos [próprios] atendimentos. Você se depara com número muito grande de pessoas procurando e pouquíssimos psicólogos [disponíveis à população]”.
Reportagem publicada originalmente pela Agência Mural de Jornalismo das Periferias e reproduzida por meio de parceria de conteúdo com o Jornal da Unesp.