Pesquisa une geologia e antropologia para mapear os caminhos dos antepassados do homem pela Ásia e Europa

Equipe está à frente dos primeiros estudos brasileiros em paleoantropologia conduzidos fora da América Latina. Iniciativa busca projetar capacidade científica nacional e subverter o modelo tradicional do campo, dominado por nações com maior tradição científica.

Em 2019, um grupo de arqueólogos, paleoantropólogos e geólogos identificou um conjunto de artefatos que pode ajudar a reescrever a cronologia da expansão dos ancestrais humanos para fora da África. A partir das evidências encontradas em escavações no Vale do Rio Zarqa, na Jordânia, a equipe, que reúne pesquisadores brasileiros e italianos, estimou a idade das ferramentas de pedra escavadas na região em aproximadamente, 2,5 milhões de anos. Essas estimativas, obtidas pela aplicação de três métodos de datação diferentes, sugerem que a saída dos hominídeos em direção ao Oriente Médio se deu cerca de meio milhão de anos antes do que acreditava a comunidade dos paleoantropólogos.

As escavações que levaram à descoberta das ferramentas líticas ocorreram entre os anos 2013 e 2016 sob a coordenação dos arqueólogos Walter Neves e Fabio Parenti. E ainda hoje o grupo empreende investigações na região, buscando descobrir mais detalhes sobre a vida dos hominídeos para entender quais motivos teriam impulsionado aquele grupo de ancestrais humanos a iniciarem uma jornada tão desafiadora. “Temos um animal que deixa a savana na África, um ambiente conhecido e confortável, e entra no Oriente Médio, que é um deserto. Como foi possível isso? Como ele cruzou o Saara?”, questiona o geólogo Giancarlo Scardia, docente do Instituto de Geociências e Ciências Exatas da Unesp, campus Rio Claro. Identificar quais exatamente foram as condições climáticas que possibilitaram essa movimentação e de que maneira elas influenciaram na migração dos antepassados humanos é um dos projetos que Scardia coordena, também no Vale do Rio Zarqa. Participam do projeto pesquisadores e alunos da Unesp, USP, Unicamp e UFPR, além de colaboradores da Europa, dos EUA e da Jordânia.

Para o docente, uma possível explicação envolve a ocorrência de mudanças climáticas durante a época geológica do Pleistoceno. Estima-se que entre 2,5 e 1 milhão de anos atrás, a Terra começou a esfriar e o clima global ficou mais instável, ocasionando as primeiras glaciações nas latitudes médias do planeta: as regiões acima e abaixo dos trópicos ficaram cobertas por extensas camadas de gelo. Esse evento climático teria propiciado a saída dos hominídeos da África e levado ao seu espalhamento por toda a Ásia.

Nesse contexto de grande migração, o Oriente Médio, onde a Jordânia está localizada, teve um papel central, pois era o único caminho disponível conectando os dois continentes. “Se consideramos o clima semiárido atual, é evidente que o Oriente Médio poderia ter constituído um obstáculo biogeográfico para qualquer adaptação dos hominídeos, mas o Pleistoceno foi um período de grandes mudanças climáticas e as condições ambientais do passado poderiam ter sido diferentes das atuais. Mas, devido à falta de estudos científicos e registros sedimentares sobre a região, estes aspectos ainda são desconhecidos”, diz Scardia.

Parte do processo necessário para compreender o cenário terrestre de milhões de anos atrás passa por descrever e datar as ferramentas líticas encontradas. Essas pedras, de diferentes tamanhos, eram moldadas e utilizadas como ferramentas pelos ancestrais dos homens e servem como pistas que apontam para os padrões de comportamento e ocupação adotados por esses bandos. Em um artigo publicado recentemente na revista científica Journal of Paleolithic Archaeology, o grupo de pesquisadores do qual Scardia faz parte descreveu as características de 40 artefatos encontrados no sítio arqueológico 334, no Vale do Rio Zarqa, o palco das descobertas divulgadas em 2019.

Sítio arqueológico 334, onde foram encontrados os artefatos líticos mais antigos do mundo fora da África, com idade estimada de 2.48 milhões de anos. Crédito: Giancarlo Scardia


Identificando a presença humana em meio a rochas

As escavações na Jordânia exibem uma particularidade: os sítios arqueológicos não são escavados horizontalmente, perfurando o solo, mas sim, verticalmente. Isso ocorre porque a região no passado era banhada por rios, e sua ação resultou na formação de barrancos de pedras duras “feito concreto”. Munidos de martelos e britadeiras, a equipe multidisciplinar de arqueólogos, geólogos e paleontólogos perfura paredes de sedimentos e assim consegue extrair do terreno as pedras e restos de ferramentas pré-históricas.

Nesse estágio, uma das dificuldades está em distinguir entre pedras que são simplesmente pedras, moldadas ao longo de milhares de anos pela força do rio, e as que, na verdade, foram estilizadas por hominídeos para serem utilizadas como ferramentas. “Essa etapa é feita, principalmente, por meio da comparação”, explica Scardia. Com o material em mãos, o grupo comparou as amostras com exemplos de pedras ordinárias para encontrar três características principais: o grau de esfericidade de amostra, o nível da complexidade tecnológica dos cortes nas pedras e a existência de padrões de descamação, o que indica a interferência humana naquele material.

Uma a uma, as amostras foram manualmente analisadas e classificadas conforme as características. Aquelas que não atendiam aos critérios eram eliminadas pela impossibilidade de determinar com exatidão se eram ou não instrumentos líticos. Comparando os achados, o grupo pôde identificar que, apesar da utilização e alteração de rochas para uso humano, as amostras encontradas não seguiam formas e modelos específicos. Essa constatação, aliada à datação muito antiga, reforça a hipótese de que as amostras representam os primórdios do desenvolvimento das técnicas de descamação, que eram aplicadas na busca de formas que favorecessem o uso dos instrumentos, mas sem impor a eles algum padrão determinado.

Fotografias dos 40 artefatos líticos recuperados durante as escavações no Vale do Rio Zarqa. Crédito: Parenti et al., 2024.


O Brasil em busca de fossil power

As missões na Jordânia foram as primeiras investigações paleoantropológicas conduzidas por brasileiros fora da América Latina. Para o arqueólogo e antropólogo Walter Neves, do Instituto de Estudos Avançados da USP, essas iniciativas são essenciais para atrair a atenção internacional para a capacidade de pesquisa desenvolvida no país. “As nações que são fortes em paleoantropologia e que detêm os fósseis, o que chamamos de fossil power, possuem grande visibilidade no cenário internacional e atraem muitos recursos”, diz. “Então estamos inaugurando uma linha de pesquisa que pode trazer para o Brasil grande soft power em termos globais”, diz, e ressalta a exigência de coragem e de ambição para planejar missões de tamanha proporção.

O pesquisador Walter Neves examinando sedimentos em busca de vestígios arqueológicos na Jordânia. Crédito: Giancarlo Scardia

A nova aposta começou a ganhar contornos em fins do mês passado. Em 21 de abril, uma equipe brasileira liderada por Neves e integrada por Scardia e pelo arqueólogo André Strauss, do Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE) da USP, aterrissou na Romênia com o objetivo de inaugurar uma nova fronteira de investigação. Se no projeto da Jordânia o foco estava em etapas primordiais da história humana, na Europa Oriental os pesquisadores apostam em desvendar alguns dos mistérios que permeiam as etapas mais recentes da evolução dos hominídeos, que envolvem os últimos grupos de Neandertais e o estabelecimento dos primeiros Homo sapiens nos Bálcãs, por volta de 40 mil anos atrás. O estudo integra o projeto “A interação entre neandertais e humanos modernos no norte dos Bálcãs: uma abordagem paleoantropológica”, financiado pela Fapesp.

Ainda hoje não se sabe o motivo do desaparecimento do Homo neanderthalensis, o homem de Neandertal. Algumas hipóteses apontam para a existência de um contexto de competição por recursos entre neandertais e o Homo sapiens, com a nossa espécie levando a melhor. Outros estudiosos sugerem a possibilidade de que doenças tenham sido as responsáveis por dizimar a população neandertal. Apesar do debate em aberto, sabe-se que a chegada do Homo sapiens à Europa, após viver milhares de anos no Oriente Médio, coincidiu com o desaparecimento dos Neandertais. Além disso, a existência de pequenos percentuais de DNA do Homo neanderthalensis em nosso próprio genoma indica que, em algum momento da história, os dois grupos não apenas coexistiram, mas também se acasalaram.

O grupo decidiu focar na Romênia por algumas razões. Do ponto de vista geográfico, constituiu uma obrigatória área de passagem a ser transposta por Sapiens e Neandertais para alcançarem outras áreas da Europa. No entanto, são virtualmente desconhecidos os registros de fósseis de hominídeos escavados no país. Foram encontrados, porém, três fósseis de crânios de Homo sapiens, datados entre 40 e 30 mil anos. Apesar de serem poucas amostras, chamou a atenção dos arqueólogos, geólogos e paleontólogos o fato de que  um dos crânios apresenta 6% de DNA Neandertal. “Isso é uma porcentagem muito alta. A média de gene neandertal em Homo sapiens é em torno de 2% a 4%. Os estudos de DNA fóssil confirmaram que, apesar de os crânios pertencerem a humanos modernos, eles têm traços de Neandertais, o que indica um possível encontro próximo entre esses dois grupos”, diz Neves.

Em campo, a equipe brasileira trabalhou em conjunto com os romenos George Murtoreano e Marian Kosac, ambos da Universidade de Valahya, e Stefan Vasile, da Universidade de Bucareste. “A área da Garganta de Varghis, no Bálcãs, em que estamos trabalhando possui mais de 100 cavernas. Na maioria há a presença de ossos de animais e de ferramentas feitas por humanos. A expectativa é encontrar restos de humanos que nos ajudarão a documentar todas essas mudanças evolutivas que ocorreram 40 mil anos atrás”, diz Vasile, que é especializado em fósseis de animais e na possível interação destes com as comunidades de hominídeos.

A primeira visita à Romênia teve a duração de dez dias. A equipe visitou diversas cavernas com o objetivo de selecionar até duas que serão escavadas de maneira mais aprofundada em uma segunda visita, prevista para ocorrer entre agosto e setembro deste ano. Para essa etapa, a geocronologia é essencial: esse campo de pesquisa, no qual Scardia é especializado, tem como foco determinar a idade e a história das rochas da Terra. “A última coisa que nós queremos é gastar tempo com uma caverna que tem menos de 30 mil anos. Para nossos objetivos, não seria uma opção interessante”, diz Neves.

Para identificar o lugar ideal é essencial conduzir análises do sedimento das cavernas, a fim de identificar as diferentes camadas que compõem o solo da caverna. Essa técnica é conhecida como “estratigrafia”. Ela parte do princípio de que os sedimentos se acumulam por sobreposição de camadas e assim condensam a história do lugar onde se encontram. Ao identificar e descrever as características dessas diferentes camadas, os pesquisadores podem determinar os processos e os eventos responsáveis por sua formação e, assim, inferir a evolução de uma região ou de uma caverna.

“Precisamos pensar que essas cavernas podem estar lá há centenas de milhares de anos. Todo mundo já passou por lá: animais, Neandertais, Sapiens”, explica Scardia. “Elas presenciaram várias épocas geológicas, então existe uma ocupação muito complexa. Nesse tipo de estudo em geral começamos a identificar as ocupações mais recentes a partir da superfície, e à medida que nos aprofundamos no solo passamos a encontrar evidências de ocupações mais antigas.”

Equipe na Romênia coloca o sedimento extraído das escavações nas cavernas para secar e, posteriormente, peneirar em busca de pequenos fragmentos de ossos ou dentes. Crédito: Giancarlo Scardia

Outro parâmetro para a seleção de cavernas é a exigência de traços de ocupação humana antiga no sedimento. “Em algumas amostras de sedimento observamos a formação de pequenas incrustações de ferrugem e de outros óxidos. Isso é um sinal de que bastante tempo já transcorreu e que o sedimento não é moderno”, diz Scardia. Por fim, o grupo busca por cavernas que fossem acessíveis e seguras para os viajantes de dezenas de milhares de anos atrás, o que já exclui aquelas próximas a rios (devido ao risco de alagamento) e as situadas em regiões muito altas, cujo acesso demanda uso de equipamentos de escalada.

E há a expertise acumulada pelos colegas romenos. “Os arqueólogos romenos têm muita experiência. Os que trabalham naquela área leram todos os relatos de escavações dos últimos 100 anos. Então poderemos buscar por locais que apresentem características semelhantes às cavernas onde já foram encontrados materiais interessantes”, diz o pesquisador.

Neves destaca que essas missões são tão ambiciosas quanto desafiadoras. Apesar da perspectiva otimista, a pesquisa científica sempre envolve um grau de imprevisibilidade que é intrínseca a ela. “A pesquisa pode dar certo, apresentar resultados parciais, promissores ou mesmo negativos. Mas, pelo menos, serve para estabelecer conexões internacionais e cria um ambiente fértil para desenvolver novas ideias”, diz Scardia.

A efervescência de novas ideias e o potencial de projetar o Brasil no campo da paleoantropologia é o que motiva Neves a expandir os limites da arqueologia brasileira. “A tradição da nossa área é que os países ditos mais desenvolvidos conduzem missões em locais taxados como “menos desenvolvidos”. Estamos invertendo essa situação: somos um país emergente que está estabelecendo missões no Velho Mundo e, inclusive, na Europa. Estamos invertendo essa correlação de forças e me sinto muito satisfeito por ser parte disso.”

Imagem acima: pesquisa em caverna na área da Garganta de Varghis, na Romênia. Crédito: Giancarlo Scardia.