Em 2023, o Cerrado ganhou manchetes de veículos de comunicação do Brasil e de fora com o epíteto de bioma mais devastado do país. O noticiário fazia um contraponto a uma significativa melhora do desmatamento na Amazônia, traduzido em uma queda de mais de 60% nos alertas de desmatamento da floresta em julho, na comparação com o mesmo mês em 2022. Já o Cerrado apresentou um crescimento de 16% no mesmo período. Só este ano, entre janeiro e maio, foram desmatados 3.320 km2. Isso equivale a quase duas vezes a área da cidade de São Paulo. Só na região do chamado Matopiba , que compreende partes dos estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia, a elevada produção agrícola resultou no desmatamento de 494 mil hectares nos primeiros cinco meses deste ano.
Infelizmente, não há nada de novo nessa constatação, ou mesmo nesses números. Ano passado, já haviam sido registrados os maiores índices de desmatamento do bioma nos últimos sete anos: nada menos do que 10.689 km2 ao longo do ano, informou o Prodes Cerrado, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais. Segundo algumas estimativas, nada menos do que 49% da área original de cobertura vegetal do bioma teriam sido vaporizados pela atividade humana, primeiro através do garimpo e da mineração, e no século 21 pela agricultura de tipo monocultura intensiva e a pecuária extensiva.
Por trás da pecha de “celeiro do mundo” que alguns atribuem às vastas áreas no interior do Brasil de onde sai boa parte da alimentação consumida no globo, há também uma história quase sem paralelo de dano ao meio ambiente, com reflexos importantes sobre a fauna da região, e também sobre as águas que abastecem boa parte do Brasil, e até sobre o clima.
Porém, o fato de a produção e a proteção da biodiversidade estarem em conflito no Cerrado não deve ser visto, necessariamente, como uma sentença de morte para o ecossistema. Felizmente, o Brasil dispõe de uma comunidade de cientistas de alto nível que se debruçam sobre esse problema. A eles somam-se um terceiro setor atuante e comunidades locais bastante engajadas. Graças à mobilização destes atores, e às propostas que eles vêm elaborando, é possível vislumbrar um futuro em que os verbos produzir e proteger possam ser conjugados numa mesma frase.
“Em grande parte, o conflito direto por área entre o setor produtivo e as iniciativas conservacionistas do Cerrado pode ser evitado”, afirma o ecólogo Paulo De Marco Júnior, pesquisador da Universidade Federal de Goiás (UFG). De acordo com o cientista, autor de um estudo sobre o tema publicado em abril na revista Science, existem grandes áreas degradadas que não são usadas para produção. “A recuperação desses terrenos para a atividade produtiva, principalmente das pastagens degradadas, poderia reduzir a pressão que existe sobre as áreas naturais”, explica De Marco.
Apesar da possibilidade de alinhavar soluções, o fato de existir um déficit real de áreas públicas destinadas à conservação torna o conflito ainda maior. “É bastante evidente que essas áreas de proteção pública hoje disponíveis não são suficientes para a proteção da biodiversidade do Cerrado”, explica. Daí o caráter essencial de engajar a iniciativa privada neste esforço de conservação.
Números divulgados pelo projeto MapBiomas sobre a perda de vegetação no Brasil em 2022 deixa clara a urgência de uma atuação firme, e coletiva, de proteção ao Cerrado. Até porque o bioma também funciona como uma grande caixa d’água para o Brasil: nada menos do que 8 das 12 nascentes das principais bacias hidrográficas nacionais estão na região.
O mais recente Relatório Anual de Desmatamento (RAD 2022) divulgado pelo MapBiomas mostra que 2.057.251 ha foram destruídos em todo o território nacional na somatória dos grandes biomas brasileiros. A Amazônia e o Cerrado juntos respondem por 90,1% da área desmatada em 2022. Embora o Cerrado tenha uma participação de apenas 8,3% no número total de alertas de desmatamento usados para os cálculos gerais, a área total desmatada deste ecossistema representa quase um terço da vegetação natural suprimida no país (32,1%) em 2022, por causa da extensão dos desmates. Em termos proporcionais, os maiores aumentos da destruição ambiental ocorreram no Cerrado (31,2%).
É por causa desse quadro que um grupo de pesquisadores brasileiros defendeu, em uma carta dirigida à comunidade científica publicada na revista Nature, um plano de desmatamento zero para o bioma. Porém, limitar o desmatamento zero às terras públicas não seria suficiente para reverter, ou mesmo controlar, o rápido ritmo de desmonte do ecossistema. Será necessário estender esta política às áreas de propriedade privada.
“Isso significa desestimular a remoção da vegetação nativa mesmo quando o proprietário rural poderia desmatar dentro daquilo que é previsto em lei”, afirma Ludmilla Aguiar, professora do Departamento de Zoologia da Universidade de Brasília (UnB) e uma das autoras da correspondência. “Esse cenário só pode ser alcançado se a manutenção da vegetação nativa for mais rentável do que removê-la para colocar plantios, como soja, milho, ou pastagens. Novos modelos de exploração sem degradação da biodiversidade devem ser implementados para valorizar produtos como óleos, essências, frutos, fármacos, fibras, plantas ornamentais e outros itens que existem em áreas nativas conservadas”, diz.
Outro caminho que deve ser privilegiado, explica a ecóloga, é o do pagamento por serviços ecossistêmicos. Segundo Aguiar, o fornecimento de água e os créditos de carbono, por exemplo, são itens previstos em lei mas que ainda precisam ser regulamentados. “Dessa forma, os plantios do agronegócio antes destinados a essas áreas seriam realocados para áreas já desmatadas e subutilizadas no centro e sul do Cerrado, evitando-se assim novos desmatamentos”, afirma a cientista da UnB.
Segundo De Marco, da UFG, existe toda uma cultura de restauração de áreas degradadas, principalmente nas públicas, que precisa ser implementada no bioma. Isso porque, segundo ele, área e conectividade “são essenciais para reduzir a probabilidade de extinção futura das espécies ameaçadas do Cerrado”.
São planos que precisam estar assentados em três pilares, segundo o pesquisador. O primeiro envolve gerar incentivos para que os produtores rurais impeçam o gado de entrar em áreas de Proteção Permanente e Reserva Legal. “Apesar dos custos aos agricultores, é uma ação com grande efeito sobre a qualidade das áreas para a proteção da biodiversidade”, diz De Marco. Incentivos técnicos e extensão rural voltada às soluções mais eficientes e baratas de restauração ambiental são um segundo conjunto importante de ações que também precisam ser deflagradas. “Os produtores reclamam que não têm acesso a esse conhecimento. Por isso, seria essencial implementar um programa de extensão rural com essa finalidade.” De Marco também defende que os produtores recebam incentivos sempre que conduzirem ações voltadas à recuperação de suas áreas. “Incentivos positivos como a facilitação de crédito rural são importantes para criar uma cultura positiva ligada à restauração”, diz o cientista da UnB.
Cerrado se tornou um “bioma-sacrifício”
Existe ainda uma questão de legislação que pesa contra o Cerrado. Pelo Código Florestal, apenas 20% da área de cada unidade de propriedade privada situada no Cerrado é considerada como legalmente protegida, isto é, não pode ser desmatada. Esse percentual chega a 35% no caso das áreas de Cerrado que se encontram oficialmente no território da chamada Amazônia Legal. Isto é uma desvantagem flagrante em relação à Amazônia, onde 80% das áreas de cada propriedade precisam ser protegidos.
A Constituição Federal de 1988 reconheceu apenas a Amazônia, a Mata Atlântica e o Pantanal como biomas-patrimônio nacional. “É fácil perceber que o Cerrado vem sendo tratado como “bioma-sacrifício” há algum tempo”, afirma Isabel Figueiredo, coordenadora do Programa Cerrado e Caatinga do Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN). “Hoje, com o aumento da proteção da Amazônia, o que estamos presenciando é um vazamento do desmatamento da Amazônia para o Cerrado, e isso é muito perigoso, porque estamos falando de segurança hídrica nacional, além de alimentar, energética e climática”, diz ela.
Devido ao aspecto da legislação, muito do desmatamento do Cerrado passa pelos órgãos estaduais de meio ambiente. Segundo Figueiredo, estudo feito com dados do ano passado pela ONG Imaterra, com apoio do ISPN, mostrou que 100% das licenças emitidas na Bahia, um dos estados que integra a região do Matopiba, contém graus diferentes de irregularidades. “O governo federal, por meio do MMA, já começou o diálogo com os estados a respeito, para desencorajar o desmatamento ilegal e regulamentar a emissão de Autorizações de Supressão de Vegetação Nativa”, explica Isabel Figueiredo.
Enquanto no âmbito nacional as leis jogam contra a proteção do Cerrado, no exterior as ONGs também estão se movimentando, explica Figueiredo. “Como a mudança na legislação brasileira é um processo lento, temos atuado também junto à União Europeia.”
Um dos caminhos escolhidos, segundo a representante do ISPN, é tentar encaixar o Cerrado em leis que regulam as importações de produtos livres de desmatamento. “O ISPN e parceiros da sociedade civil apresentaram na COP 27, no Egito, o pedido de inclusão do termo “other wooded lands” na lei que regula as importações de produtos livres de desmatamento.” Dessa forma, a produção de carnes e grãos em áreas do Cerrado, que não é considerado um bioma florestal mas sim savânico, também poderia ser barrada caso tenha sido feita em terras desmatadas recentemente. “Assim, os produtores que insistem nessa prática seriam pressionados pelo próprio mercado a se adequar e produzir de maneira sustentável e sem ilícitos”, ratifica Figueiredo.
Efeitos sobre a flora e a fauna
O fato de que em grandes áreas de Cerrado a vegetação foi substituída por pastos e lavouras desencadeia alguns problemas importantes, explica a bióloga Alessandra Fidelis, professora da Unesp de Rio Claro. O mais imediato é a perda de biodiversidade do bioma e a pressão que será cada vez maior sobre as principais nascentes brasileiras.
“E nesse sentido, quando falamos em recuperação do ecossistema, temos que ter em mente que ainda não sabemos muito bem como restaurar as áreas de Cerrado”, afirma a especialista. Do ponto de vista geográfico, segundo a professora da Unesp, a área que mais perde Cerrado é o já mencionado Matopiba, devido à sua pujança agrícola.
Segundo Fidelis, o fato de os programas de compra e venda de créditos de carbono estimularem o plantio de árvores é um problema em si para o Cerrado. “Isso funciona para as florestas. Mas no Cerrado, o mais importante, em um primeiro momento, é recuperar as áreas abertas com plantas que são mais rasteiras. Mesmo sendo árvores nativas, não adianta plantá-las apenas”, diz.
Em paralelo à questão da preservação vegetal, há outros fatores que devem ser atacados para assegurar a biodiversidade no ecossistema. “As espécies africanas de gramíneas usadas nos pastos, quando escapam para as áreas naturais, para as unidades de conservação, por exemplo, se tornam um problema grave de invasão. Como é muito complicado reverter esse quadro, é fundamental conduzir um monitoramento constante, para impedir que ocorram essas invasões.”
De acordo com a bióloga, em algumas áreas específicas do estado de São Paulo, existe também muita invasão de pinheiros. “Além disso, o Cerrado está muito fragmentado em São Paulo, o que dificulta ainda mais sua conservação.” A fauna invasora também preocupa. “Neste caso, o exemplo mais contundente é o do javali”, afirma a pesquisadora. Até por causa da invasão da espécie pelo interior do Brasil, o Ibama liberou a caça do animal, dentro de várias regras, em 2013. Em setembro deste ano, entretanto, o governo federal suspendeu a emissão de novas licenças que haviam explodido durante o governo do presidente Bolsonaro. As antigas continuam válidas até o vencimento dos documentos. Apenas em 2022, 465 mil javalis foram mortos no país. Eles são considerados uma praga. Por andarem em bandos costumam destruir lavouras e também são considerados uma ameaça sanitária para os rebanhos bovinos.
A mudança climática já é visível
Por mais que o Cerrado seja um bioma complexo – e até por isso nem sempre as técnicas de restauração florestal muito mais bem estudadas por causa da Amazônia e da Mata Atlântica servem para a região – um dado já é tido como certo. O bioma, por causa do desmatamento, vem passando por uma forte mudança climática na última década. Algo que tende a se acentuar nos próximos anos, com impactos tanto para a biodiversidade quanto para a própria produção.
“Alguns estudos já mostram que não é preciso esperar pelo impacto das mudanças climáticas globais no Cerrado”, afirma a ecóloga Ludmilla Aguiar, da UnB. Isso porque, segundo ela, a extensa remoção da vegetação nativa causada pela expansão do agronegócio desde os anos 1970 já vem cumprindo esse papel. Em 2021, uma das pesquisas, publicada na revista Global Change Biology, mostrou que a temperatura média do bioma subiu entre 2,2oC e 4,0oC entre 1961 e 2019, enquanto a precipitação baixou 15% no mesmo período. Em um outro trabalho do ano passado, divulgado na mesma revista mas feito por um outro grupo de pesquisadores brasileiros, a mesma tendência se confirmou.
“A remoção da vegetação nativa aumentou a temperatura média em 3,5oC para algumas regiões e reduziu a evapotranspiração potencial entre 39% e 44%. O que mostra que os extensos desmatamentos no Cerrado para a implantação de pastagens e cultivos causam problemas para a sociedade em geral e também para o próprio agronegócio, que gerou o problema”, afirma Aguiar. Também na avaliação dos prejuízos, não há conflito: todos sairão perdendo se a devastação do Cerrado não for controlada.