Ofensas, ameaças, humilhações, tentativas de chantagem. Pode parecer estranho empregar palavras tão adultas para descrever áreas mais delicadas do cotidiano das relações que pré-adolescentes e adolescentes travam nos dias de hoje. No entanto, a explosão do uso das tecnologias digitais entre os jovens trouxe a reboque uma intensificação também das agressões e violências que podem ser perpetradas por meios digitais. As chamadas cyberagressões são objeto de um extenso levantamento conduzido por pesquisadores da Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Moral (GEPEM), e que resultou em uma pesquisa de doutorado apresentada no Programa de Pós-graduação em Educação Escolar da Unesp, câmpus de Araraquara.
O GEPEM há décadas pesquisa os problemas de violência que marcam o cotidiano das escolas brasileiras. Líder do grupo, Luciene Regina Paulino Tognetta, que é professora do programa de pós-graduação e especialista em psicologia escolar, diz que diversos países experimentam o mesmo problema. Uma pesquisa da Unesco divulgada em 2019, que ouviu 100 mil jovens em 18 países, estimou que nada menos do que 246 milhões de crianças e jovens sofrem algum tipo de violência escolar. “E os estudos mostram que depois da pandemia, com a volta ao convívio presencial, os problemas de relacionamento se intensificaram”, diz.
Ela explica que a necessidade de manter crianças e jovens isolados em casa e longe dos espaços escolares durante a pandemia gerou um movimento de reinvenção das dinâmicas por parte das instituições educacionais, que adotaram as ferramentas digitais como único meio para ensino e convivência e se tornaram, em suas palavras, “escolas sem paredes”. Esta reinvenção, por sua vez, transformou também o modo de vida dos estudantes. Afinal, com a interdição dos pátios escolares, sobrou apenas o espaço virtual para que eles pudessem conviver e se divertir uns com os outros. E, se o intervalo de tempo em que se podia conviver com os colegas no ambiente físico da escola era necessariamente limitado pelos horários de funcionamento, no mundo virtual é como se a escola não fechasse nunca, e o pátio de recreio estivesse sempre aberto. “Não há mais como pensar as relações interpessoais na escola sem pensar nas cyber-relações”, analisa Tognetta. “E, mesmo antes da pandemia, os depoimentos dos alunos e alunas já indicavam que não havia como negar as cyberagressões, visto o caráter virtual cada vez mais presente no cenário das relações no mundo em que vivemos”, diz.
Essas constatações serviram de motivação para a pesquisa de doutorado do professor de educação física Raul Alves de Souza, que é integrante do GEPEM. Intitulada “Cyberagressão e pró-socialidade entre adolescentes”, a tese foi defendida em abril.
Utilizando-se de questionários, a pesquisa coletou dados de 3.469 estudantes do estado de São Paulo, dos quais 1.991 pertencem à rede pública de ensino e 1.478 à rede privada, com idades entre 11 e 17 anos. Nos questionários, Souza apresentou aos alunos 15 exemplos de ações classificadas como intimidadoras. As condutas destacadas variavam desde o simples ato de “enviar mensagens que ofendem” até ações mais elaboradas, tais como “usar fotos íntimas para chantagear alguém”, “hackear as contas de redes sociais de outra pessoa” e “criar um perfil fake para atacar ou humilhar alguém”. No questionário, o estudante era convidado a responder se, nos últimos três meses, havia testemunhado alguma destas ações, se havia sido objeto delas ou mesmo se havia sido o autor dos ataques (veja a íntegra dos resultados abaixo).
A ação mais prevalente, segundo a análise dos dados, foi a de “enviar mensagens ofensivas”. Em seguida, vieram “excluir uma pessoa, sem que ela queira, de uma rede social ou grupo porque não se gosta dela”, “ameaçar alguém por meio de mensagens na internet, nas redes sociais ou em situações de jogos online”, e “insultar ou zoar alguém por conta do seu tipo físico”.
Os dados mostraram que havia uma maior prevalência de alunos de escolas particulares, na comparação com alunos de escolas públicas, em nada menos do que 11 das 15 situações pesquisadas. E estudantes de escolas privadas relataram também chances maiores de presenciarem violência virtual em 10 das 15 situações. “Esse dado chama a atenção pois, em geral, é a escola pública que é mais associada à violência”, diz Souza. Uma possível explicação está no fato de que estudantes de escolas particulares tendem a encontrar maior facilidade para acessar a internet, além de disporem de conexões de qualidade maior. À pergunta “você tem computador em casa?”, apenas 2,1% dos estudantes da escola particular responderam que não, em comparação com 47% dos estudantes da escola pública. E indagados se possuíam seu próprio celular, 2, 22% dos alunos da escola particular responderam que não, contra 11,5% da escola pública. Além disso, estudos sobre o uso de internet no Brasil consultados por Souza mostram que 60% dos brasileiros desconectados da internet pertencem às classes D e E, enquanto as mesmas classes representam apenas 8% da população definida como plenamente conectada no país.
Diferenças entre meninos e meninas
Segundo Souza, alunos de escolas particulares apresentam três vezes mais chances de se engajarem em ações do tipo “enviar mensagens que ofendem” do que estudantes de escolas públicas. Em outras categorias, como “ameaçar alguém por meio de mensagens na internet, nas redes sociais ou situações de jogos online”, “criar páginas ou grupos para falar mal de alguém” e “‘cancelar’ uma pessoa por ter condutas ou opiniões diferentes”, os alunos de escolas privadas alcançam o dobro da prevalência na autoria, se comparados aos seus pares de escolas públicas.
Quando se leva em consideração o gênero dos respondentes e a autoria das ações intimidadoras, diz Souza, é possível constatar que meninas apresentam mais do que o dobro de chances de apresentarem o comportamento “Criar páginas ou grupos para falar mal de alguém.” Já no quesito “enviar mensagens ofensivas”, as meninas apresentam prevalência de autoria 49% menor em relação aos meninos. E os rapazes apresentam uma prevalência 46% maior, em comparação às meninas, quanto à ação de “insultar ou zoar alguém na internet por seu tipo físico”.
Outra análise procura enxergar quais as possibilidades de que meninos e meninas sejam vítimas dessas ações. Meninas têm duas vezes mais chances do que eles de serem vítimas de grupos ou páginas criadas especificamente para criticar alguém; 27% mais chances de serem objeto de insultos por seu tipo físico; 40% mais chances de terem seus comentários pessoais publicados por terceiros sem autorização; 42% de receberem ofensas por mensagens; e 53% de serem excluídas, sem pedirem, de algum grupo ou rede social. Já os meninos têm uma possibilidade 29% maior de serem ameaçados por meio de mensagens na internet, redes sociais ou situações de jogos online.
“Comparando-se a tipologia dos maus-tratos vivenciados, podemos dizer que, segundo a nossa pesquisa, há um padrão mais grupal como disparador das agressões por parte das meninas, e um padrão mais individualizado, marcado pelas características físicas, no caso dos meninos”, diz Souza.
Em busca das boas ações no mundo virtual
Souza também procurou mapear as condutas pró-sociais expressadas pelos estudantes no mundo virtual. Esse termo denomina as atitudes que facilitam o dia a dia da vida em sociedade, ou seja, o esforço para incluir outros atores sociais. Assim como a empatia, o comportamento pró-social é uma habilidade que pode ser ensinada e deve aumentar com o passar dos anos. “Um exemplo de comportamento pró-social é quando observo que um colega está triste, em isolamento e o convido para se sentar com o meu grupo”, explica Souza. No mundo virtual, atitudes como falar com respeito, ajudar as pessoas, pedir desculpas, apoiar alguém publicamente e procurar fazer com que alguém que está se sentindo mal se sinta melhor são exemplos de conduta pró-social. “A pró-socialidade, assim como a empatia, forma a base de uma sociedade civilizada”, diz ele.
A avaliação do comportamento pró-social dos meninos e meninas participantes do estudo se deu a partir de um questionário especialmente desenvolvido. Os resultados detectaram uma diferença de 8 pontos a favor das meninas nos escores de pró-socialidade virtual. “Elas atuam mais do que eles com ações que visam ajudar outras pessoas no ambiente virtual”, diz o professor.
Outra avaliação separou os jovens em dois blocos etários, o primeiro entre 11 e 14 anos e o segundo entre 15 e 17 anos, e procurou medir diferenças na capacidade de condutas pró-sociais. A hipótese era a de que os jovens mais velhos seriam capazes de apresentar mais comportamentos empáticos. Mas não foi o que os dados mostraram.
“Isso nos surpreendeu, porque a falta de evolução nos mostra que estamos falhando enquanto sociedade. Se uma criança de 11 anos e um adolescente de 17 têm os mesmos níveis de pró-socialidade, significa que ele não evoluiu”, explica Souza. “Só acontece o aprendizado de matemática porque há intencionalidade da escola, da família em nos ensinar matemática. Mas o mesmo não acontece com a moral, que é um componente da pró-socialidade. Ou seja, não há uma proposta sistemática de aprendizagem desse conteúdo”, garante o professor. “A gente só supera a violência se fomentar a boa convivência. Caso contrário, vamos só ficar enxugando gelo”, acredita.
Encontrar saídas para as violências
Com mais de 20 anos de atuação, o GEPEM surgiu de uma parceria entre Unesp e Unicamp, com a proposta de avaliar a implementação de programas de convivência nas escolas. A criação destes programas atende a prerrogativas estabelecidas pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, promulgada em 1996, e, sobretudo, pela Lei 13.663, de 2018, que alterou a Lei de Diretrizes e Bases no sentido de estabelecer certa urgência para a necessidade de prevenção e combate ao bullying, buscando favorecer a criação da cultura de paz nas escolas.
A fim de possibilitar o monitoramento do ambiente escolar, a linha de pesquisa da qual Souza faz parte, “Convivência na escola: virtudes, bullying e violência”, propõe um programa de convivência dentro das escolas, que se materializa através de três frentes. A primeira é a criação de equipes de ajuda, em que estudantes com certo protagonismo se disponibilizam a auxiliar seus pares. A segunda é a avaliação das maneias pelas quais a escola intervém nos conflitos, e a terceira envolve o desenvolvimento de ações preventivas, que podem incluir, por exemplo, a realização de encontros semanais nos quais são discutidos assuntos relevantes para o cotidiano dos alunos, tais como a convivência nas redes sociais. “Trata-se de uma oportunidade fundamental em que discutimos também questões como a convivência online. Porém, nós do GEPEM sempre frisamos que ainda existe uma ausência de politicas públicas de formação de professores para prepará-los para atuarem além do conteúdo programático”, diz.
Raul Souza também considera que a atuação dos pais não basta para mudar os padrões de cyberagressão ou o comportamento dos filhos nas redes sociais. “A fiscalização dos pais é importante, mas os jovens sabem burlar esse controle muito facilmente, apagando históricos de busca ou utilizando páginas anônimas, por exemplo. Por isso, é fundamental desenvolver com eles um processo de reflexão sobre os riscos e benefícios do uso das redes. E isso deve acontecer concomitantemente na escola e em casa”, diz.
Foto acima: deposit photos