Política de venda de terras no Pontal do Paranapanema adotada pelo governo do estado ignora histórico de grilagem na região, escreve Bernardo Mançano em artigo

Para docente da Unesp que há décadas conduz pesquisas na área, legislação promulgada no ano passado está levando a uma "grilagem da grilagem" .

Nas primeiras décadas do século 19, no Pontal do Paranapanema, um jornal de Presidente Venceslau informava: “Vendemos os melhores lotes de terras… Foram terras griladas, entretanto, sendo de fama internacional os falsificadores das escrituras, podemos afirmar que até mesmo os seus legítimos donos têm dúvidas quanto à autenticidade desses nossos documentos”.

Grilagem é uma palavra que denota falsificação de documento público para validar a posse da terra. O Pontal do Paranapanema é, de forma notória, uma área de forte atuação de grileiros desde a segunda metade do século 19, época da expedição pioneira do engenheiro Teodoro Sampaio ao que se chamava “Sertão do Paranapanema”. Naqueles tempos, o Brasil definiu o que seriam terras devolutas: aquelas áreas públicas remanescentes da época da colonização e que não estavam registradas em nome de qualquer pessoa.

Para entender a grilagem de terras devolutas naquela região, relembro alguns fatos históricos. Há dois grandes “grilos” no Pontal do Paranapanema que remontam à segunda metade do século 19: as fazendas Pirapó–Santo Anastácio, de 583 mil hectares, e a Fazenda Boa Esperança do Aguapeí, de 872 mil hectares. Somadas, suas áreas perfazem 1,455 milhão de hectares, ou 1,4 milhão de campos de futebol. A posse de toda essa terra é reivindicada a partir de ações de grilagem, de falsificação de documentos.

Houve diversas tentativas dos grileiros de legitimar esses “grilos”, sucedidas de um leque extenso de negativas oficiais do poder público. Em uma delas, em 22 de setembro de 1890, o então governador Prudente de Morais listou como razões a falsificação da assinatura do vigário da paróquia na qual a posse fora registrada e incoerências na demarcação das áreas.

A notória origem fraudulenta, por outro lado, não impediu que os grileiros fracionassem e vendessem os grilos, como indica o anúncio de jornal que abre este texto. Estes grilos são negociados até hoje. No início da década de 1940, os grileiros sofreram um golpe da ditadura Vargas, que criou novos obstáculos ao processo de grilagem da Pirapó–Santo Anastácio. A estratégia do interventor federal Fernando Costa (1941–1945) de criar reservas ambientais para salvar as terras públicas teve sucesso parcial. Foram criadas três reservas com área de 297.340 hectares: reservas Morro do Diabo, Pontal do Paranapanema e Lagoa São Paulo. Resta hoje apenas a reserva do Morro do Diabo, de 38 mil hectares.

Ao longo da história, os grileiros, entre outros artifícios, usaram o golpe da arrematação, que consistia em corromper o coletor de impostos, que aceitava receber imposto sobre o grilo, o que não era permitido pelo fato de os grileiros não serem proprietários. Depois, o grileiro parava de pagar os impostos e o grilo ia para leilão, que era arrematado pelo grileiro em acordo com os corrompidos.

Da terra grilada vendia-se tudo o que nela tinha. Os grileiros desmataram e formaram dezenas de serrarias. A exploração foi feita com o trabalho dos posseiros e depois dos colonos. Com a terra desmatada, foram plantadas diversas culturas, reservando uma parte da área para a criação de animais. A monocultura do café impulsionou o processo de grilagem, com o acúmulo de capital para a formação de fazendas. Nesses ciclos de exploração, os “grilos” se multiplicavam segundo um modelo de desenvolvimento predatório que ampliava as desigualdades. Os posseiros eram utilizados para o trabalho pesado no desmate e a formação de grandes áreas de pastagem e agricultura.

Nas tentativas de regularizar as terras devolutas do Pontal, o Estado utiliza-se de perímetros para desenvolver as chamadas ações discriminatórias. Os perímetros são áreas definidas com o objetivo de levantamento das situações dos imóveis.

A ação discriminatória é parte de um processo administrativo e jurídico. Os perímetros compõem os territórios de um ou mais municípios, possuem um numeral e uma sigla para identificar a sua localização. Temos, por exemplo, o 11º perímetro de Mirante do Paranapanema (11º MP) que ocupa parte deste município e os perímetros 1º e 2º de Teodoro Sampaio (1º TS e 2 º TS), que formam a área do Parque Estadual do Morro do Diabo, que compõem parte do território deste município. Os perímetros são utilizados como referências espaciais para a realização das ações discriminatórias.

Essas ações são procedimentos administrativos para identificar as áreas devolutas. Com a implantação deste procedimento, inicia-se a ação discriminatória por via administrativa, que se transforma em uma ação judicial. Na ação discriminatória, realiza-se um levantamento da cadeia dominial de cada imóvel que compõe o perímetro. Neste procedimento, é preciso recolher cópias das matrículas e das transcrições dos imóveis do atual proprietário até a origem, ou seja, o primeiro proprietário. No caso do Pontal, a primeira propriedade que origina o “grilo” é a Pirapó–Santo Anastácio.

Os posseiros sempre lutaram pela terra. Há muitas histórias de assassinatos a mando dos grileiros. A disputa territorial foi permanente e a primeira conquista dos posseiros aconteceu no município de Estrela do Norte: durante os primeiros anos da década de 60, aconteceu um violento confronto entre posseiros e o latifundiário grileiro da fazenda Rebojo, conflito que resultou na desapropriação da fazenda em 24 de março de 1964, pelo então presidente João Goulart. Na ditadura militar, a tensão na região permaneceu, mas foi invisibilizada.

O MST chegou ao Pontal do Paranapanema em julho de 1990 e mudou a correlação de forças. Entre 1988 e 2022, movimentos sem terra realizaram 452 ocupações, com 57.487 famílias. As ocupações são a forma de pressão mais efetiva para os governos desapropriarem as terras griladas. Hoje, existem no Pontal 117 assentamentos, com 6.627 famílias em 147.857 hectares. Esta é a única forma de resolver a questão da grilagem pela terra, pois o Estado não pode compactuar com a grilagem.

Ao vender as terras griladas com até 90% de desconto para as pessoas que compraram as terras griladas, o governo Tarcísio de Freitas está “grilando o grilo”. O primeiro “grilo” foi a falsificação das escrituras, o segundo “grilo” é vender as falsas escrituras com 90% de desconto para pessoas que participaram do processo de grilagem. Ou seja, o governo está vendendo terras griladas para pessoas que estão envolvidas na grilagem.

O que significa que o governo estadual, em vez de resolver a questão com uma distribuição das terras para famílias sem terra, democratizando o acesso à terra e fazendo justiça, passa a fazer parte da grilagem.

O Estado de São Paulo julgou devolutas a maior parte das terras do Pontal do Paranapanema, de modo que estas terras e as que ainda não foram julgadas jamais poderiam beneficiar as pessoas que grilaram ou que compraram as terras sabendo da origem fraudulenta. O governo Tarcísio de Freitas resolveu ignorar a história da grilagem e, pior ainda, acabou por replicá-la. Diante deste fato, somente o Superior Tribunal de Justiça para desfazer a grilagem da grilagem.

Bernardo Mançano é professor livre-docente da Faculdade de Ciências e Tecnologia da UNESP, câmpus de Presidente Prudente, e coordena a Cátedra UNESCO de Educação no Campo e Desenvolvimento Territorial.

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Imagem acima: Deposit photos