Novas orientações curriculares trazem desafios aos cursos de Licenciatura de São Paulo

Deliberação do Conselho Estadual de Educação transforma o Estágio Curricular Supervisionado em um eixo estruturante que deverá permear todo o curso de formação de professores. Atividade ganha o status de espaço privilegiado para a construção do conhecimento pedagógico e o desenvolvimento profissional de futuros docentes.

Professor do Departamento de Química Analítica, Físico-Química e Inorgânica do Instituto de Química, câmpus de Araraquara, e integrante da Câmara de Educação Superior do Conselho Estadual de Educação de São Paulo (CEE/SP)

Após mais de uma década de relativa estabilidade sob a égide da antiga Resolução CNE/CP nº 1/2002, a legislação específica que rege os cursos de formação de professores no Brasil tem passado por diversas alterações desde 2015, tanto em nível nacional quanto estadual. As mudanças mais recentes decorrem da publicação da Resolução CNE/CP 04/2024 e da Deliberação CEE 232/2025, que introduzem um novo arcabouço para a formação inicial de professores e exigem um engajamento crítico e propositivo das instituições de ensino superior (IES) paulistas.

A despeito das intensas disputas que orbitaram sua elaboração, a Resolução CNE/CP 04/2024, que revoga a Resolução CNE/CP nº 02/2019, consolida uma perspectiva de formação mais robusta e integrada para os futuros professores da Educação Básica. Entre as inovações notáveis, destacam-se a inserção curricular da extensão e uma maior especificação das atividades de Estágio Curricular Supervisionado (ECS), bem como a implementação obrigatória e presencial de vários componentes curriculares do curso.

O Artigo 13 da Resolução CNE/CP 04/2024 estipula que os currículos dos cursos de formação inicial sejam estruturados em torno de quatro núcleos, sendo o Núcleo III referente às Atividades Acadêmicas de Extensão (AAE). De acordo com a resolução, as AAEs devem ser realizadas presencialmente, em e com instituições de Educação Básica, totalizando 320 horas. Essas atividades, sob a orientação, acompanhamento e avaliação de um professor formador da IES, devem ser interdisciplinares e integradas aos componentes curriculares para fortalecer o diálogo entre os licenciandos e os diversos atores da comunidade escolar.

Resolução detalha o ECS

Ao contrário das três resoluções anteriores, a Resolução CNE/CP 04/2024 especifica e detalha sobremaneira o ECS. As atividades de estágio, pertencentes ao Núcleo IV, devem totalizar 400 horas e serem realizadas obrigatoriamente de forma presencial em instituições de Educação Básica, sob a orientação de um professor da IES com formação e experiência na área, e a supervisão de professores da escola parceira, responsáveis pelo acolhimento, orientação e diálogo formativo.

Além disso, conforme determinado pelo Artigo 6º, o ECS deve ser realizado desde o início e abranger todos os semestres do curso, com objetivos específicos articulados aos demais componentes curriculares, especialmente aqueles que envolvem a prática de ensino, proporcionando uma progressão de experiências para os licenciandos, desde as observações iniciais até a regência supervisionada em sala de aula.

Dados os inúmeros desafios impostos por esta nova caracterização do ECS, o Artigo 7º estipula que as IES devem garantir a formalização de parcerias com as redes/sistemas de ensino e instituições de Educação Básica para o planejamento, execução e avaliação conjunta dessas atividades. Essa formalização visa assegurar a presença dos licenciandos nas escolas parceiras ao longo de sua formação inicial, sob supervisão adequada e qualificada, além do apoio contínuo das IES por meio de ações formativas para a melhoria do trabalho desenvolvido pelas escolas e redes/sistemas de ensino que acolhem seus licenciandos.

Em consonância com essa concepção do ECS e seu fortalecimento, os Artigos 19 e 20 da Resolução CNE/CP 04/2024 atribuem ao Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) a responsabilidade de desenvolver um instrumento para avaliação in loco dos cursos e um novo formato para o Enade.

De fato, com a publicação da Portaria MEC nº 610/2024, o Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes para os cursos de licenciatura foi estabelecido. Conhecido como o Enade das Licenciaturas, o formato do exame agora visa avaliar o desempenho dos estudantes de graduação em cursos de licenciatura por meio de dois processos avaliativos: Avaliação Teórica e Avaliação Prática (AP). A AP deve ser realizada durante o ECS, em uma atividade de regência, e visa avaliar o conhecimento, as competências e as habilidades práticas dos licenciandos.

Como se depreende do exposto, a nova resolução enfatiza a articulação entre o currículo acadêmico e a prática profissional na formação inicial, reconhecendo as instituições de Educação Básica como um lócus formativo indispensável para uma preparação abrangente e contextualizada para as realidades educacionais que os futuros professores podem enfrentar.

Nova deliberação traz orientações para Estado de São Paulo

À luz dessas mudanças impostas pela legislação nacional, e em conformidade com os princípios federalistas, o Conselho Estadual de Educação de São Paulo (CEE) publicou recentemente a Deliberação CEE 232/2025, que aborda a realidade e as especificidades do sistema educacional do Estado de São Paulo. Assim, revogando as Deliberações CEE 111/2012, 126/2014, 132/2015 e 154/2017, esta nova deliberação, ao complementar as diretrizes nacionais, apresenta a necessidade de que as IES paulistas revisem seus projetos pedagógicos de curso para incorporar não apenas as diretrizes nacionais, mas também as nuances e exigências adicionais estabelecidas pelo CEE.

Em consonância com as diretrizes nacionais, a Deliberação 232/2025 enfatiza a necessidade de um maior diálogo entre as IES paulistas e as secretarias municipais e estaduais de educação para a implementação dos ECSs e atividades práticas. Além disso, a norma apresenta maior detalhamento na organização curricular e na documentação exigida para autorização, reconhecimento e renovação de cursos de formação de professores no estado.

Ao contrário das diretrizes nacionais, a deliberação manteve a Prática como Componente Curricular (PCC) como um eixo estruturante da formação dos licenciandos. As 400 horas de PCC devem ser integradas ao Núcleos I e II para que os professores formadores possam articular teoria e prática nos diferentes componentes curriculares. No que diz respeito ao ECS, a norma determina que os cursos de formação de professores apresentem um projeto específico em conformidade com a Indicação CEE 223/2023, que trata do Estágio Supervisionado obrigatório para a Formação de Professores em escolas de Educação Básica.

A Indicação CEE 223/2023 levanta questões cruciais que merecem uma atenção mais aprofundada por parte das IES paulistas, intensificando a discussão sobre o ECS.

Tradicionalmente, o estágio tem sido visto como o momento em que os futuros professores “aplicam” o que aprenderam na sala de aula. No entanto, a indicação defende uma perspectiva muito mais rica e complexa de co-construção, reforçando o estágio como um espaço privilegiado para a reflexão sobre a prática, a construção de conhecimento pedagógico em interação com o contexto escolar e o desenvolvimento da identidade profissional do futuro professor.

Valorização do professor supervisor

Um dos pontos cruciais levantados pela Indicação é a ênfase na articulação entre a universidade e a escola de campo. Não basta que a universidade envie seus estagiários para as escolas; é essencial que haja um diálogo constante, uma parceria genuína e um planejamento conjunto. O papel do professor supervisor da escola de campo é valorizado, e sua formação para atuar nessa função torna-se uma prioridade, visto que é durante o desempenho das atividades no campo de atuação profissional que o estagiário pode realmente vivenciar a complexidade do cotidiano escolar, a diversidade dos alunos, os desafios da gestão e as nuances da implementação das políticas educacionais.

De fato, considerando os problemas historicamente denunciados pela literatura especializada na área, os fundamentos, princípios e estrutura de organização das atividades de ECS nos cursos de formação de professores propostos neste novo arcabouço regulatório constituem um grande avanço. No entanto, eles também impõem inextricavelmente desafios logísticos e pedagógicos às IES paulistas, entre os quais se destacam:

  • Atualização/Reestruturação Curricular: Isso envolve não apenas “encaixar” o conteúdo, mas também repensar a estrutura, a metodologia e a avaliação dos cursos, integrando as diretrizes nacionais e as especificidades paulistas.
  • Formação Continuada dos Formadores: Os professores universitários que atuam nos cursos de formação de professores precisam estar alinhados com as novas diretrizes e as demandas da educação básica, especialmente o ECS.
  • Qualificação dos Professores Supervisores nas Escolas de Campo: A Indicação aponta para a importância de que esses profissionais recebam treinamento e reconhecimento pelo seu trabalho. Isso implica parcerias mais sólidas entre as universidades e as secretarias de educação para oferecer cursos e apoio contínuo.
  • Expansão e Diversificação dos Campos de Estágio: Com a crescente demanda por estágios em diferentes etapas e modalidades, as IES precisarão expandir sua rede de escolas parceiras, garantindo que a qualidade da experiência não seja comprometida pela quantidade e que haja diversidade de contextos.
  • Orientação Qualificada: O papel do professor universitário como supervisor de estágio é fundamental, promovendo a reflexão crítica sobre a prática. Isso requer tempo, formação e, às vezes, uma revisão da carga de trabalho desses professores.
  • Integração Curricular do Estágio: O estágio não pode ser um apêndice, mas uma atividade orgânica que dialoga com outras disciplinas e serve como fio condutor para a construção do conhecimento pedagógico. Isso envolve repensar a posição e a função do estágio no projeto pedagógico do curso.
  • Desafios Logísticos e Financeiros: A gestão de um programa de estágio robusto e qualificado requer recursos humanos, financeiros e logísticos significativos. As instituições precisarão buscar modelos de gestão que lhes permitam atender a essas demandas com qualidade.

Em suma, as regulamentações atuais aumentam as expectativas e exigências da formação inicial de professores. Elas impõem, especialmente, uma nova perspectiva sobre o estágio, concebido não mais como um componente curricular desconexo, mas como um eixo estruturante que deve permear todo o curso. Apesar dos desafios e exigências, isso representa um convite para que os programas de formação de professores paulistas reforcem seu histórico compromisso com uma educação de qualidade, formando professores que sejam verdadeiros agentes de transformação social.

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